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30 de abril de 2004

COISAS SIMPLES

Fiz jantar para um. Bife grelhado rapidamente em pouca gordura, temperado com sal, pimenta e alho — nada mau. Arroz branco cozido a vapor, "à chinesa", só com água e sal — devia tê-lo deixado um pouco mais de tempo ao lume e carregado um pouco mais no sal. Afinal, sou capaz de fazer algo mais do que massas. Uma pequena vitória. Agora, uma chávena de leite e dois ou três Hobnobs — umas deliciosas bolachas inglesas redondas de aveia, estaladiças mas que se esfarelam na boca, enquanto a Ana Cristina não me telefona para a minha intervenção no programa do António Sérgio na Best Rock FM (96.6 em Lisboa para quem estiver aí a estas horas).

Prazeres simples. Mas, no fim de uma semana como esta, terrivelmente reconfortantes.

A SABEDORIA CÓSMICA DO JUNK MAIL

That was really stupid of you, lia eu no cabeçalho de um junk mail recebido esta manhã numa das minhas contas do Hotmail. Não faço ideia se se estavam a referir à discussão telefónica que tive ontem à noite com um dos meus irmãos, mas a ironia é inescapável.

ESTAMOS CONTIGO, PÁ

O facto de só ter havido quatro pessoas na manifestação de apoio a Pedro Santana Lopes parece-me significativo do apoio popular ao autarca.

TEMPO DE ANTENA

Grande momento de televisão, ontem no Telejornal da RTP-1: Fátima Felgueiras a aproveitar o máximo o tempo de satélite para ignorar olimpicamente as perguntas de José Rodrigues dos Santos e desenrolar o portuguesinho choradinho da vítima. Chegou a ser mal-educada na maneira como se recusava a admitir que estava alguém a falar-lhe do outro lado da linha, como parecia estar num púlpito a falar para os convertidos. Como estava convencida da imutabilidade e da irredutibilidade da sua verdade. Não ficámos mais esclarecidos em relação a nada. Mas isso também hoje em dia já não espanta ninguém: desde quando é que um noticiário esclarece o que quer que seja?

29 de abril de 2004

É APENAS TEMPO

É uma das mais belas canções de amor que jamais ouvi. Gostava de a poder dedicar a ti, hoje, quem quer que sejas, onde quer que estejas. Mas não posso. E para que ela não se perca, prefiro dá-la a M. e J., porque acho que é a história deles. E de quem nela se quiser rever.

why would I stop loving you
a hundred years from now?
it’s only time
it’s only time

what could stop this beating heart
once it’s made a vow?
it’s only time
it’s only time

if rain won’t change your mind let it fall
the rain won’t change my heart at all

lock this chain around my hand
throw away the key
it’s only time
it’s only time

years falling like grains of sand
mean nothing to me
it’s only time
it’s only time

if snow won’t change your mind let it fall
the snow won’t change my heart not at all

I’ll walk your length
and swim your sea
marry me
marry me
and in your hands
I will be free
marry me
marry me

why would I stop loving you
a hundred years from now?


- Stephin Merritt para The Magnetic Fields, "It's Only Time", in "i" (Nonesuch/Warner Music, 2004)

OUTROS BAIRROS

A caminho de casa para ir buscar o pijama sobresselente do meu pai, e depois no curto percurso para o hospital, olho para as ruas do bairro onde cresci e vejo-as antigas, decadentes. A velha loja da Maconde onde só se entrava com cartão de compras já há muito desapareceu, a sua porta dá acesso a um restaurante indiano de mau aspecto. A velha livraria Bragantina, onde eu passava horas todos os Setembros para comprar os manuais do liceu, já tem nas montras os sabonetes e shampoos das lojas de bairro que procuram resistir à crise. Os papéis pardos e esbranquiçados que tapam as montras de lojas vazias. Quem entrar no bairro pela rua Forno do Tijolo ainda terá um semblante de normalidade, apesar da velha Grande Feira do Disco ser hoje mais uma loja chinesa; quem sair pelas ruas que descem da Graça para o Intendente não reconhecerá nada. Penso nisto por causa da "nossa" casa, o velho apartamento onde os meus pais insistem em continuar a morar mas que começa a exalar o aroma bafiento das casas velhas onde moram aqueles que o mundo já esqueceu.

Os meus pais não estão esquecidos, muito longe disso; às vezes penso é que preferiam que o mundo os esquecesse.

UM PEQUENO FRASCO DE PEDRAS

Afinal, são um pouco mais de uma dúzia, de cor clara, esbranquiçada, algumas apenas fragmentos, outras do tamanho de um pequeno bombom. Exalam um forte aroma acre, têm ainda algumas gotas de sangue à volta. Estão guardadas num frasquinho de plástico translúcido. Como é possível algo de tão pequeno magoar o meu pai como magoava?

Duas horas na mesa de operações para retirar esta dúzia de pedras que resistiram ao raio laser com que se tentou destruí-las, mais para golpear a próstata e desinchá-la. Hoje é que o meu pai está ressacado, da anestesia que o fez vomitar ontem à noite, do cansaço e da tensão de estar no ambiente asséptico, anónimo e triste, de um quarto de hospital antiquado, com dois livros e um pequeno televisor suspenso do tecto como única companhia; do soro e da algália que o forçam a estar deitado na cama enquanto o organismo retorna lentamente ao normal.

É HOJE! É HOJE!


A Deusa voltou. And she is going to KILL BILL.

28 de abril de 2004

É QUARTA-FEIRA (E DAQUI A HORA E MEIA SERÁ QUINTA-FEIRA)

A dúzia de pedras que o meu pai tinha alojadas na bexiga já saíram e, diz quem viu — nomeadamente o meu pai, que assistiu à intervenção visto que a anestesia foi uma epidural localizada —, não eram nada bonitas de se ver. O alívio é generalizado, sobretudo para ele. Resta agora dormir no sofá mais umas noites até o meu pai receber alta e a minha mãe poder regressar a casa. É muito doloroso ver a minha mãe assim tão dependente dos outros, misto de criança grande e adulta lúcida, triste e revoltada por já não poder fazer nada sozinha. É também muito complicado porque sou eu, o filho solteiro que tem menos condições para o fazer, que tem de a receber em casa — mas, como soe dizer-se, roupa suja lava-se em casa e eu tenho ali uma carga inteira à espera de meter na máquina. Assim como assim, ver Pedro Santana Lopes a insistir na defesa ultrajada do seu plano do túnel, a sacudir a água do capote responsabilizando o ministério das Obras Públicas pela inexistência de estudo prévio de impacte ambiental já é irritação suficiente.

PS: Agradecimentos devidos, sinceros e sentidos: Ana Cristina, António, Filipe, Isabel, João B., João L., João M., João Carlos, João Maria, Jorge L., Jorge R., Maria, Marta, Nuno J., Nuno P., Rosário, Teresa, Zé.

27 de abril de 2004

É TERÇA-FEIRA

Apetecia-me dizer o quanto amei Uma Thurman em "Kill Bill Vol. 2".

Apetecia-me dizer o quanto gostei de ler este texto da brasileira Katia Abreu para o qual o Vítor Junqueira chamou, e bem, a atenção.

Apetecia-me dizer o quanto me desgostam Paulo Portas e os seus lacaios do PP; pela má educação da pastilha elástica, pela irritação birrenta e intolerante que manifestam com tudo aquilo que não é conforme às suas próprias ideias, pela insistência em valores de uma direita reaccionária e cada vez menos democrática, pelas críticas abertas às declarações do Presidente Jorge Sampaio. (Pormenor curioso: na parada do 25 de Abril, quando o ministro Portas foi vaiado, não vi nenhum militar que não tivesse esboçado um sorriso, por mais ténue e imperceptível que fosse.)

Apetecia-me dizer o quanto me agrada saber que o tribunal declarou a interrupção das obras do túnel do Marquês, o quanto me agrada a enormíssima bofetada na cara de Pedro Santana Lopes que essa decisão representa.

Apetecia-me dizer o quanto a inenarrável recensão de Maria Augusta Silva hoje no Diário de Notícias sobre o romance de Manuel Alegre, "Rafael", me aterrorizou pela queda no lugar-comum hermético do discurso intelectual(izado) de uma certa intelligentsia, ao falor da "utopia fundadora da busca", da "cultura do não-lugar", do "tempo da narração humanizante", da "figuração magnetizante" (nem falta a citação de Roland Barthes). Lembrei-me do vazio parentético, do esbatimento da clivagem e de outros momentos grandes do absurdo insignificável (e insignificante) da escrita intelectual nacional.

Apetecia-me citar alguns versos de uma canção chamada "Do Que um Homem é Capaz", do novo disco de José Mário Branco (há princípios e valores / há sonhos e há amores / que sempre irão abrir caminho), porque são precisamente aquilo em que preciso de acreditar, hoje.

Apetecia-me dizer isso tudo e muito mais. Mas o meu pai vai ser operado amanhã, a minha mãe vem cá para casa uns dias enquanto ele está no hospital. E, por isso, não me apetece dizer nada agora.

26 de abril de 2004

26 DE ABRIL

A questão, evidentemente, no meio disto tudo e para o caso de ainda não terem percebido, não é que se celebre o 25 de Abril.

A questão é saber o que é que se faz a 26: se se fica em casa a curtir a ressaca da celebração ou se se sai de casa à procura dos amanhãs que cantam (mesmo que cantem mal - ninguém nasce ensinado).

25 de abril de 2004

25/4/2004

O dia está lindo numa Lisboa solar, calor a antecipar o Verão. Uma pena ficar em casa nesta manhã. Saio com a máquina fotográfica.

Pouca gente na rua, ainda menos carros em movimento. Apenas o pontual casal idoso que vestiu a melhor roupa de domingo para sair. Chegado ao Marquês percebo que afinal o desfile militar que eu pensava ter sido de manhãzinha ainda nem sequer começou, o trânsito está cortado e muita gente vestida de cores leves passeia pela Avenida da Liberdade. Aqui e ali soldados da polícia militar ou agentes da polícia conversam ou percorrem a avenida.

É quase meio-dia e muita gente acotovela-se já junto às barreiras montadas frente aos palanques erguidos em frente ao Parque Mayer para acomodar as individualidades.

Um senhor de cabelos brancos, impecavelmente vestido de branco, cola um autocolante da CDU na T-shirt, ao lado de um pin da JCP. Diz em voz alta para quem o quiser ouvir que parece que voltámos aos tempos da PIDE e que "esse Portas e esse Barroso" são fascistas. O senhor que está ao seu lado afasta-se discretamente.

Indianos (ou serão paquistaneses?) sobem e descem a avenida a querer vender cravos.

Um polícia militar que monta guarda de costas para o cinema São Jorge resmunga entre dentes, maçado por tudo estar atrasado, mas assim que percebe que um casal estrangeiro está a enquadrá-lo para uma fotografia faz pose marcial e, depois, sorri.

Uma senhora idosa quer atravessar a avenida pela passadeira, mas o mesmo polícia pede-lhe para ir atravessar mais à frente, ali é para a recepção das individualidades. A senhora levanta a voz numa indignação popular muito proletária, "atravessa-se é na passadeira", a contragosto avança alguns metros para atravessar numa zona onde parece já ser permitido, mas grita para trás "só não atravesso porque não quero!".

Vou subindo a avenida calmamente enquanto a parada começa ao som das bandas marciais; são mais que muitas as máquinas fotográficas, as câmaras de video assestadas sobre os soldados que marcham. Há mesmo quem desça a correr para voltar a apanhar um familiar, um namorado, um amigo que está no desfile; ou quem acene ou grite um nome. Um casal de turistas, polacos pelo guia que têm na mão, fica ali a ver, divertido.

25/4/1999

É o 25 de Abril de que tenho mais memórias. Na véspera (24) fui assistir ao casamento do Paulo M. e da Cristina, que ocorreu numa igrejinha junto à Graça e que seguiu para copo de água algures numa quinta suburbana de cuja localização não me recordo. Eu e o meu amigo Paulo S. voltámos para Lisboa à hora do jantar, fomos trocar de roupa às respectivas casas e seguimos para a Grande Celebração 25 de Abril Sempre que teria lugar em casa do Eduardo e da Manuela, com a presença de uma série de amigos comuns e muita palavra de ordem revolucionária — um bom pretexto para estar com os amigos, no fundo.

Já não me recordo a que horas acabou a noitada, mas lembro-me perfeitamente que o televisor estava ligado na SIC e a emissão ia interrompendo regularmente para dar lugar à emissão especial "A Hora da Liberdade", que dramatizava os acontecimentos do 25 de Abril em tempo real e ia sendo emitida ao longo da noite à mesma hora a que eles tinham originalmente ocorrido. Acho que foi nesse ano que Canas de Senhorim foi fazer peixeirada para a parada militar no Parque das Nações.

25/4/1974

Tinha seis anos e um mês a 25 de Abril de 1974. Ainda não tinha começado a primeira classe, isso só seria depois do Verão. Lembro-me de me ter levantado para ver os desenhos animados na televisão, como era hábito, e de apanhar em vez disso com a mira técnica e, na abertura da emissão e sem mais explicações, com um episódio da série "Daktari", que se a minha memória me não falha era uma cena de veterinários em África. Do resto não tenho ideia absolutamente nenhuma, a não ser aquela que o tempo se encarregou de me ir incutindo.

24 de abril de 2004

ENTÃO COMO VAI SER HOJE?

Desde que me lembro que era o sr. Adelino que me cortava o cabelo. O sr. Adelino, mais conhecido pelo "Bigodes" devido ao seu bigode retorcido e bem cuidado, ia-me cortar o cabelo a casa quando eu era muito novo: eu sentava-me numa tábua posta em cima do cadeirão que o meu pai tinha na sala de jantar. Cresci e passei a ir à barbearia, que ficava na minha rua, um quarteirão abaixo. Era uma barbearia "à antiga": uma sala grande com três cadeiras de barbeiro e espelhos, e uma porta nas traseiras da sala que dava entrada aos moradores do prédio. O sr. Adelino tinha um ajudante, o sr. Manuel, mas era sempre ele quem me cortava o cabelo a mim e ao meu pai. Nunca gostei de cortar o cabelo no sr. Adelino, mas a força do hábito e a comodidade de morar ali ao pé ajudaram à inércia.

Não sei há quantos anos (mais de dez?), o sr. Adelino teve de ser operado. Passei a descer a rua e a ir cortar o cabelo à barbearia Pérola das Colónias. O sr. Adelino manteve a barbearia aberta, só com o sr. Manuel, e depois voltou à actividade, mas a barbearia já não durou muito mais tempo; o sr. Manuel foi-se embora ou morreu, não me recordo bem, e o sr. Adelino acabou por fechar a casa.

Fiquei cliente da Pérola das Colónias, que mudou de nome há pouco tempo; levou um lifting interno, mantendo as mesmas velhas três cadeiras de barbeiro, o espelho a todo o comprimento da parede e os mesmos sofás coçados cobertos com os jornais populares do dia; e passou a chamar-se Salão Pais (quão politicamente correcto), embora o proprietário continue a ser o mesmo sr. Pais que me corta o cabelo há dez anos e continue a trabalhar lá a filha. De tal modo que, quando deixei de morar no bairro das Colónias, continuei metronomicamente a ir lá cortar o cabelo. Uma vez experimentei ir ao barbeiro que fica na avenida Álvares Cabral, mas achei-o demasiado conversador para o meu gosto, com opiniões políticas de direita conservadora (dir-se-ia republicana nos EUA) e estupidamente lento a exercer o seu ofício.

Hoje foi o dia da visita bimestral ao sr. Pais, hoje sozinho no salão, sem a filha viúva que ainda não tinha chegado. A vantagem do corte de cabelo à máquina (pente três por igual, para os curiosos) é que, mesmo com os retoques cuidados que o sr. Pais dá ao trabalho, em dez-quinze minutos está a questão resolvida. Durante a minha estadia na cadeira, chegou o jovem aprendiz que o sr. Pais contratou há ano e meio; eu era o único cliente, e ele sentou-se a ver os jornais do dia, comentou em voz alta as revistas que o Correio da Manhã ou o Record trazia, perante a indiferença educada do sr. Pais, que já percebeu que não sou do tipo de falar e portanto se limita às perguntas da praxe: "então como vai ser?" "está bem assim?".

A minha mãe é que não acha piada nenhuma quando eu corto o cabelo. Ela não gosta de me ver de cabelo tão curto e fica apopléctica, ameaçando mesmo deserdar-me por eu lhe pôr a cabeça em água. Aliás, o corte de cabelo é uma das questão mais delicadas do nosso agregado familiar. Quando o meu pai — que já não tem muito cabelo — aqui há uns tempos o cortou mais curto do que lhe é hábito, caiu o Carmo e a Trindade e a minha mãe ia tendo um chilique.

Senti-me finalmente compreendido.

23 de abril de 2004

O DOM

João Bonifácio sobre Carlos do Carmo. Ou como escrever um texto magistral sobre um disco que, apesar de tudo, não o merece.

É um dom escrever como este homem escreve. Ou como este homem.

São palavras belas demais para caírem esquecidas algures na vertigem, na voragem do tempo que corre. Ao pé deles, sinto-me muito pequenino, sinto-me ninguém, sinto que, soubera eu escrever a sério, talvez não andasse aqui a fingir que o sei fazer.

POLAROID CENTRO DE SAÚDE

A administrativa que processa a recepção das consultas procura desesperadamente encontrar um documento num dossier enquanto deflecte as perguntas repetitivas que alguém lhe faz do outro lado do telefone. Repete sistematicamente que a senhora pode vir esta tarde ser atendida na urgência ou na segunda-feira à doutora, mas a pessoa do outro lado parece não perceber o que lhe está a ser dito e insiste nas mesmas perguntas que recebem as mesmas respostas. A administrativa tenta interromper a chamada, dizendo que tem a sala cheia (verdade) e que tem pessoas à espera para atender, mas do outro lado da linha o interlocutor não lhe dá tréguas. Ninguém na sala parece estar incomodado com o interminável diálogo, à excepção da senhora que está sentada à frente da administrativa, que diz a certa altura que a senhora é "uma granda melga" que tem de ser despachada.

Na sala de espera, enquanto não entro para a consulta, há um senhor idoso que resfolega como um cavalo (algum tipo de perturbação da respiração, ou geração de muco). A sala está em silêncio, entrecortado apenas pelo som das televendas no televisor, no intervalo de um qualquer talk-show para domésticas provincianas, até que alguém sai de uma consulta e, encontrando um conhecido no corredor, iniciam um daqueles diálogos muito portugueses que versam essencialmente sobre as doenças de uns e de outros, sobre as fracas perspectivas de melhoras, sobre a resignação do "cá se vai andando", o todo a ecoar na pedra das paredes frias e modernas. Depois regressa o silêncio.

A comichão e o pequeno vermelhão que tenho ao lado do seio (também se usa a palavra para os homens? que estranho) há algumas semanas é, aparentemente, uma pequena dermatite eczemática sem nada de especial.

22 de abril de 2004

(FIRST) WE'LL TAKE MANHATTAN

Sinto-me num filme de Woody Allen; só ainda não consegui perceber se é uma das comédias, uma das "Histórias de Nova Iorque" ou um dos dramas bergmanianos. Talvez amanhã já tenha mais detalhes.

POLAROID JAZZ BAR

Passa da uma da manhã. A uma mesa encostada à parede, o casalinho executivo upwardly-mobile, periférico. Ele de fato e gravata de nó largo impecável, mesmo à uma da manhã, levanta-se num intervalo dos músicos, mãos nos bolsos, atravessa a sala até ao átrio. Ela levanta-se, fica a abotoar o casaco, lança-lhe um olhar lasso mas duro, ofendida mas resignada. Ele já saíu para o átrio, ela ainda está a acabar de abotoar o casaco e a levantar a mala e o sobretudo. Não têm idade para serem chefe e secretária; talvez um casamento gasto pela vida moderna, talvez um encontro de circunstância, blind date que não correu bem, talvez um affair ilícito que está a dar as últimas.

APOCALIPSES PARALELOS

Coincidências dos calendários de estreias cinematográficas. Em "Northfork", de Mark Polish (estreia hoje no Quarteto, em Lisboa, e no AMC, no Porto), conta-se o fim de um mundo: o de uma pacata cidadezinha rural americana, prestes a ser afogada por uma barragem, mas também o de um órfão doente que ninguém quer adoptar e que vive dentro dos seus sonhos. Em "O Renascer dos Mortos", de Zack Snyder (estreia hoje em todo o país), conta-se o fim de um mundo: a civilização ocidental tal como a conhecemos, dizimada por um vírus inexplicável que mata os vivos e os ressuscita como zombies.

Evidentemente, os filmes não podiam ser mais diferentes entre si. "Northfork" é uma elegia onírica e surreal, bizarramente lynchiana, onde rapidamente deixamos de perceber onde termina a realidade e começa o sonho febril, mas que consegue transmitir como poucos filmes o conseguiram o sentimento de se ter perdido algo que nos fazia falta. Em tempos T. S. Eliot escreveu que o mundo terminaria, "not with a bang, but with a whimper" — "Northfork" é uma crónica desse final silencioso, entendido aqui como a possibilidade de um recomeço noutro sítio.

"O Renascer dos Mortos", por seu lado, é um festim gore de sangue e vísceras, remake ágil e fiel de um clássico de culto que George A. Romero dirigiu em 1977. Sem a acidez do original nem a sua espontaneidade amadora (e quem conhece o original sabe como Romero consegue o máximo efeito com o mínimo de efeitos), esta remake de Zack Snyder consegue, contudo, criar, sobretudo no prólogo pré-genérico e em toda a primeira parte, o ambiente de horror incompreensível que qualquer boa história apocalíptica deve ter, acompanhando, de modo brutal e quase documental, uma enfermeira na transição do normalíssimo "dia antes" para o "dia zero" em que, sem explicação aparente, o mundo parece ter-se transformado no seu exacto negativo. O fim do mundo em directo, visto por meia-dúzia de sobreviventes que se refugiaram num centro comercial — a ironia do último reduto da civilização ocidental ser um altar do consumismo onde os zombies, alheios a outra coisa que não a sobrevivência pura e dura, não conseguem entrar já vem do filme original, mas ganha outra dimensão vista nos dias de hoje. Quem quiser vê-lo como filme de género fará lindamente, mas são os subtextos (herdados do original e relativamente respeitados, mesmo que diluídos) que ficam a remoer, sem sequer o conforto de um final feliz. Não se recomenda, mesmo nada, a almas sensíveis.

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #15

Porque raio é que logo hoje que eu queria comprar o "Inferno" do Joaquim Leitão (filme falhado de que muito gosto e que acho que ninguém percebeu) é que a loja da conveniência da esquina já não tinha o Público?

THE PIANO HAS BEEN DRINKING (NOT ME)

Lembram-se daquela célebre frase "a boca a saber a papel de música"? É inteiramente verdade.

NÃO, NÃO CANTARÁS

No Diário de Notícias de hoje: Jorge Coelho fala do 25 de Abril. Pedro Santana Lopes sai em defesa do túnel do Marquês. Mas não há ninguém que coloque uma providência cautelar para o homem deixar de usar a coluna como tribuna da sua presidência municipal????

21 de abril de 2004

A ÁGUA SUJA DO ANTI-IMPERIALISMO

Ou como a água suja do imperialismo — para usar a terminologia r/evolucionária — encontrou um adversário nos seus próprios termos. (Só para francófonos — o artigo original é do Le Monde.)

POLAROID ALMOÇO

Na casa de hamburgers onde hoje almocei, o televisor está ligado, com o som baixo, no canal VH1. Flashback da minha adolescência: o teledisco super-elaborado de "The Wild Boys", dos Duran Duran - a canção onde, depois de um período de fanatismo teenager, comecei a não lhes achar grande piada. Mas o teledisco continua a ser divertido, sobretudo quando aparece um pseudo-monstro cego de dentuça afiada.

Duas banalidades modernas mais à frente, flashback dos meus dez anos: Kate Bush com o seu ar de leoa pré-rafaelita, evoluindo na gravidade zero da neve carbónica no teledisco primitivo de "Wuthering Heights". Por onde andas tu, que há mais de dez anos que não dás notícias, oh diva?

O empregado que me atende o pedido lembra-me — até nos modos — um João Baião que tivesse engordado um tudo nada, com o ar envelhecidamente resignado de quem já foi e hoje atende bancários engravatados à hora do almoço.

Ao meu lado, um senhor com ar de Fernando Alves tenta explicar à senhora com quem almoça a diferença horária com o Brasil — mas ele próprio parece não a compreender, riscando o A4 dobrado em quatro onde toma notas a esferográfica preta em letras maiúsculas de escola primária.

20 de abril de 2004

O MAIS BELO SOM DEPOIS DO SILÊNCIO

Ia escrever aqui o meu equivalente do "FMI" do José Mário Branco ou do discurso frente ao espelho do Edward Norton no "25th Hour" do Spike Lee. O momento em que toda a bílis desesperada que ando a engolir em seco há várias semanas sai cá para fora num chorrilho de desabafos sentidos, sinceros, caóticos e politicamente incorrectos.

Mas estou a ouvir isto e tudo o resto deixa de ter importância.



Porque é Caetano tão divino, tão maravilhoso?

POLAROID COLOMBO

A caixa da Fnac não consegue abrir a protecção do DVD. Pede ajuda a um colega, mas este está ocupado a atender outro cliente. Ela tenta abrir mais algumas vezes, volta a pedir ajuda ao colega; a fila entretanto começa a aumentar e a caixa acaba por pedir desculpa à cliente, pede-lhe que aguarde só um instante e começa a atender o cliente seguinte. A senhora impacienta-se, diz que não tem tempo para isto, que já não quer levar o DVD; a caixa pede desculpa mas diz que tem de esperar pelo colega; a senhora diz que não vai ficar à espera nem vai deixar que toda a gente lhe passe à frente por eles não conseguirem abrir a protecção, porque é que a caixa não se levanta e vai ela ter com o colega; a caixa responde que não o pode fazer, não lhe é permitido abandonar o seu posto. Trago o disco novo do Caetano Veloso (divino, maravilhoso Caetano). Elas ainda lá ficaram.

Mais à frente, saio de uma papelaria e quase esbarro com uma senhora com ar de beata que avança sem olhar para os lados, mesmo rente às montras. Dou um passo para trás para não dar um encontrão à senhora, mas esta, sem abrandar, lança-me um ar de desdém, como se eu tivesse obrigação de saber que ela vinha aí, e segue em frente, como se nada fosse, sem se desviar um milímetro do caminho que traçara.

VIVA A HERÓICA LAGOSTA PROLETÁRIA

Confesso que já há largos anos que deixei de achar piada aos Ena Pá 2000; é o que acontece sempre que a ideia subjacente começa a ser mais divertida do que o resultado produtivo dessa ideia.

Por isso, confesso igualmente a minha agradável surpresa ao ler a entrevista que a Ana Markl (irmã do outro, sim) publica esta semana no Blitz aos rapazes 2000: algures, pelo meio do humor mais ou menos desbragado, eles dizem coisas sérias que raramente vêm ao de cima quando são entrevistados, até com uma certa amargura de palhaço a fazer pela vida. Como, por exemplo:

(sobre o título do disco, "A Luta Continua!") É uma homenagem ao José Mário Branco e às pessoas que não se deixam perverter pelo sistema, que se mantêm iguais a si próprias, às vezes em completa desarticulação com a actualidade. Em relação ao nosso grupo, isso também se aplica porque, apesar de existirmos há bastante tempo, temos de fazer sempre algum esforço por aparecer.

(sobre os convidados que participam) Neste disco, para variar, convidámos músicos que sabem tocar. Isto é um grupo, essencialmente, de amadores. A banda, talvez inspirada por certos ministros deste governo que tratam de assuntos dos quais não fizeram a recruta, era constituída por diletantes. Éramos um grupo de amigos que se juntava a arranhar violas. Só agora é que estamos a passar a uma fase profissional.

(sobre a canção "Talibã da Mamã") O talibã da mamã não é o verdadeiro fundamentalista. A música é uma homenagem a todos aqueles jovens rebeldes, que voltam para casa para comer uma canjinha feita pela mamã.

(sobre a canção "Tamagoxi") As pessoas precisam cada vez menos de pessoas e cada vez mais de objectos que incoporem a parte mais simples das relações. Porque as pessoas são complexas e imprevisíveis e um tamagoxi não.

19 de abril de 2004

O ACTOR FRENTE AO ESPELHO

Magnífica entrevista do actor Jude Law a Johanna Schneller, na edição americana de Março da Première.

A vida é uma lição, não é? O nosso único exame é o que escolhermos aprender com ela. Na minha opinião, viver dias difíceis, dias duros, especialmente no que diz respeito às relações, não deve ser usado como uma desculpa para nos isolarmos, para nos afastarmos. Isso acontece para nos instruir, para nos guardar. Uma coisa que estou agora a tentar — porque compreendi que não passei o tempo suficiente a fazê-lo durante a minha vida — é tentar aprender a gostar de mim próprio. Nunca pensei realmente nisso até este último ano, e é algo de mesmo muito importante.

(...)

Um dos momentos mais estranhos na carreira de um actor é perceber que se consegue arranjar trabalho, mas tem mais a ver com definirmos para nós próprios que tipo de trabalho queremos arranjar. Porque, durante muitos anos, queremos apenas arranjar trabalho, ponto final. O Ant
[hony Minghella, realizador de "Cold Mountain"] definiu-o maravilhosamente: "Ficas durante anos à espera de ouvir um sim, até teres de aprender a dizer que não." É essa a minha responsabilidade agora.

Como se representar fosse apenas mais um ofício entre os milhares que compõem este mundo e se regesse pelas exactas mesmas regras dos outros todos. E quem diz que não é?

OS JOVENS MILHARES

Aqui há coisa de vinte anos, houve um filme de Claude Lelouch que ficou meses a fio (mais de um ano, creio recordar-me), sempre com lotações esgotadas, num cinema de Lisboa chamado Star, na avenida Guerra Junqueiro, onde mais tarde esteve durante alguns anos a loja Marks & Spencer. Esse filme chamava-se "Uns e os Outros" e, ao longo de três horas, traçava os destinos de uma família parisiense desde a II Guerra Mundial aos nossos dias. Não me recordo bem do filme mas recordo-me de uma das canções do disco com a banda-sonora que o meu pai tinha em casa: chamava-se "Un Parfum de Fin du Monde", perfeitamente apropriado para a transição dos anos 70 para os 80 em que o filme fora feito.

Esse título dessa canção parece aplicar-se na perfeição aos tempos que correm, ao aroma de futuro hipotecado que parece lentamente invadir o nosso mundo. Este fim-de-semana, descobri um disco assombroso de um grupo americano chamado The Mountain Goats. Chama-se "We Shall All Be Healed" (4AD, 2004), e nele o seu cantor e compositor, John Darnielle, constrói uma série de polaroides sujas sobre a vida de um grupo de drogados que já não têm noção do mundo real que os rodeia, substituido por uma existência surreal entre o alheamento e a paranóia. Pergunto-me se será assim tão diferente do que nós sentimos hoje em dia, fingindo que tudo está bem à nossa volta e refugiando-nos nas nossas ilusões mais ou menos consumistas.

boats ease into the harbour bearing real suspicious cargo
and the sunlight on the water
sets a switch off in your brain
the things that you've got coming will consume you
there's someone waiting out there in an alley with a chain

the ghosts that haunt your building are prepared to take on substance
and the dull pain that you live with isn't getting any duller
there's a closet full of almost pristine videotapes
documenting sordid little scenes in living colour

here they come
the young thousands
here they come
the young thousands

you drive east from the ocean with both hands tied on the wheel
and you go past Garden Grove
as the pleasure index rises
the things that you've got coming will do things that you're afraid to
there is someone waiting out there with a mouthful of surprises

the ghosts that haunt your building have been learning how to dream
they scan the hallways nightly vainly searching for a sign
there must be diamonds somewhere in a place that stinks this bad
there are brighter things than diamonds coming down the line

here they come
the young thousands
here they come
the young thousands.


("The Young Thousands")

AH FADISTA

A minha mãe concorda comigo (vá lá, uma coisa em que concordamos por fim): a Aldina Duarte é fadista. E também concorda comigo em como a Aldina é muito melhor que a Mariza. Só não sei é onde é que ela foi buscar que a Aldina lhe faz lembrar Maria Teresa de Noronha, porque a mim lembra-me é Lucília do Carmo e não pode haver duas fadistas mais diferentes.

18 de abril de 2004

JOHNNY COME LATELY

Continuo a achar que o grande Steve Earle é um dos mais injustamente desconhecidos contadores de histórias que o songwriting americano revelou nos últimos vinte anos. A olhar para a Time desta semana e o seu portfolio fotográfico de soldados americanos no Iraque — há uma assombrosa, de David Swanson, que mostra um jovem marine a carregar munições; no seu olhar um misto de concentração maquinal, angústia latente e alheamento forçado; como quem está ali mas não quer estar nem sabe bem o que está ali a fazer — lembrei-me desta canção de 1988.

I'm an American, boys, and I've come a long way
I was born and bred in the USA
so listen up close, I've got something to say
boys, I'm buying this round

well it took a little while but we're in this fight
and we ain't going home 'til we've done what's right
we're gonna drink Camden Town dry tonight
if I have to spend my last pound

when I first got to London it was pourin' down rain
met a little girl in the field canteen
painted her name on the nose of my plane
six more missions I'm gone

well I asked if I could stay and she said that I might
then the warden came around yelling "turn out the lights"
death rainin' out of the London night
we made love 'til dawn

but when Johnny Come Lately comes marching home
with a chest full of medals and a GI loan
they'll be waitin' at the station down in San Antone
when Johnny comes marching home

my P-47 is a pretty good ship
and she took a round comin' cross the Channel last trip
I was thinkin' 'bout my baby and letting her rip
always got me through so far

well they can ship me all over this great big world
but I'll never find nothing like my North End girl
I'm taking her home with me one day, sir
soon as we win this war

but when Johnny Come Lately comes marching home
with a chest full of medals and a GI loan
they'll be waitin' at the station down in San Antone
when Johnny comes marching home

now my grandaddy sang me this song
told me about London when the Blitz was on
how he married grandma and brought her back home
a hero throughout his land

now I'm standing on a runway in San Diego
a couple Purple Hearts and I move a little slow
there's nobody here, maybe nobody knows
about a place called Vietnam

but when Johnny Come Lately comes marching home
with a chest full of medals and a GI loan
they'll be waitin' at the station down in San Antone
when Johnny comes marching home.

AINDA A PROPÓSITO DE MÃES E DA EDUCAÇÃO

A minha mãe também acha que a Mariza não tem nada que ir cantar o hino nacional e que a banda da GNR serve perfeitamente. Onde é que já se viu agora uma fulana como a Mariza ir cantar o hino? Como se ninguém conhecesse o hino. Ao que tive de pacientemente explicar-lhe: se a maior parte da juventude não tem grande ideia do que é o 25 de Abril, achas verdadeiramente que eles sabem o hino nacional? Ou haveria outra razão para Paulo Portas ter proposto que se cantasse o hino nacional na escola, no início de cada aula?

A esse (des)propósito, Marçal Grilo diz hoje na Pública que 60 por cento dos portugueses têm, no máximo, seis anos de escolaridade; 80 por cento dos empresários têm menos de nove anos de escolaridade; e 50 por cento da população diz que não quer aprender mais nada.

Os portugueses ainda pensam que isto de progredir é sobretudo uma questão de sorte. Não reconhecem que é uma questão de trabalho, de esforço, de estudo, de perseverança. Não reconhecem que a valorização das pessoas se faz pela educação e pela valorização do saber. (...) As nossas taxas de abandono escolar (...) repercutem muito esta forma de olhar com alguma desconfiança para a educação, sem acreditar no seu valor.

Mas isso é, acho eu, porque em Portugal não se dá valor ao trabalho intelectual: a minha mãe continua a perguntar-me quando é que eu arranjo um emprego a sério.

17 de abril de 2004

OS TRAJES ACADÉMICOS TALVEZ NÃO SEJAM MUITO PRÁTICOS EM DIAS DE VENTO

Está vento, fim de tarde. Um jovem universitário de traje académico procura equilibrar a capa ao ombro, sacudida pelo vento, enquanto molha um rolo num balde de cola e o passa na parede de pedra da entrada do metropolitano, para que um colega vestido "à civil" cole um qualquer cartaz a anunciar uma qualquer actividade. Com o rolo na mão direita, eleva a capa como se fosse um bastão e roda-a no ar para a ajustar de novo aos ombros, mas com o vento ela fica enrolada ao pescoço como um cachecol.

A ZARAGATA (PARTE 2)

A minha mãe não achou grande graça a "A Zaragata". E diz que achou que as senhoras da irredutível aldeia gaulesa (a propósito: alguém alguma vez reparou que a aldeia nunca tem nome?) são tão intriguistas quanto o intriguista contratado.

Em contrapartida, a minha mãe acha que a Mariza canta muito bem e que eu devia lavar os ouvidos. Ficámos esclarecidos quanto a isso. E também acha que eu não devia ter uma opinião sobre política, porque a política nunca fez bem a ninguém e este país está como está por causa dos políticos. Também ficámos esclarecidos quanto a isso.

A LUSOFONIA TREME

A cantora Mariza — uma voz assombrosa que ainda não tem maturidade artística suficiente para perceber que cantar não se resume a exibir o alcance da voz e que cantar o fado implica uma noção de interpretação que ela confunde demasiadas vezes com histrionismo amplificado — irá interpretar o hino nacional na sessão solene de comemoração do 25 de Abril na Assembleia da República, de amanhã a uma semana, tendo sido escolhida para tal honra por ser a "encarnação da lusofonia". E a lusofonia sabe? E concorda?

16 de abril de 2004

PRECISÃO AO ESCLARECIMENTO

Miguel Sousa Tavares precisa, no Público de hoje, a um leitor do Porto que resmunga contra a radiografia de um Porto deprimido que ele fez há algumas semanas atrás:

Queria apenas esclarecer o leitor que não fui eu que inventei que o Porto anda deprimido. De há meses para cá que não oiço outra conversa no Porto e às gentes do Porto.

Quisesse eu ser mauzinho e diria que não ouço outra conversa às gentes do Porto há alguns anos. Mas, por uma vez, nem me parece que essa funda depressão seja um exclusivo da Invicta. Vire-me para onde virar, toda a gente, de Trás-os-Montes ao Algarve, parece partilhar de tal opinião. Amiga de longos anos dizia-me hoje ao almoço que só não emigra para longe porque já não tem idade para isso — tivesse ela 28 anos e não ficaria neste país "sem futuro" nem mais um instante.

Portugal não está (apenas) em crise: Portugal está numa depressão. E o que é mais espantoso é que este país do desenrascanço, do fura-vidas, do cada-um-por-si e do salve-se-quem-puder, do cá-vamos-cantando-e-rindo, está absolutamente incapaz de se desenrascar dessa tal depressão: tão habituado a sacudir a água do capote está que não consegue perceber que desta não se safa a passar a bola para os outros. Ou faz pela vida ou está feito.

TUDO ISTO É FADO (SLIGHT RETURN)

(Na sequência deste post de há alguns dias...)

Foram hoje publicados os números de bilheteira contabilizados pelo ICAM referentes à semana em que estrearam "Lá Fora" e "Tudo Isto é Fado".

Nos 20 filmes mais vistos em Portugal (tabela criada a partir das bilheteiras informatizadas das salas de cinema — que, atenção, não contabiliza a totalidade das salas portuguesas), para o período entre 1 e 7 de Abril, "Lá Fora" surge em 18º lugar, com 3925 espectadores em 13 salas, e "Tudo Isto é Fado" (estreado com 30 cópias) nem sequer aparece entre os filmes mais vistos da semana, presumindo-se que tenha ficado abaixo dos três mil espectadores que o nº 20 da tabela fez.

Para terem uma referência, o nº 1 da semana, "A Paixão de Cristo", contabilizou 87 mil espectadores em igual período e o nº 2, "Kenai e Koda", 44 mil.

O QUE É NACIONAL, ETC.

Outdoor visto à entrada da rua Alexandre Herculano:

QUEM BEBE LEITE PORTUGUÊS FAZ CRESCER PORTUGAL

Sem comentários.

15 de abril de 2004

A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL ESTÁ A PASSAR POR AQUI

Visto nas paredes do Externato Fernão Mendes Pinto, na Estrada de Benfica:

IMIGRANTE = TRABALHADOR DESCARTÁVEL

Impõe-se, contudo, a correcção, pois é certamente um aforismo herdado de outros tempos. É que, hoje, não há nenhum trabalhador por conta de outrém, qualquer que seja a sua nacionalidade ou estatuto legal, que não seja descartável. É tudo uma questão de "bottom line" empresarial e orçamental. É tudo uma questão de dinheiro.

Os tempos dos empregos "para a vida inteira" já acabaram há muito, mesmo que haja quem ainda não se tenha apercebido disso.

AQUELE VERÃO



Há uma imensa seara de trigo, amarela, a perder de vista, sob um céu impiedosamente azul e um sol de Verão abrasador. E miúdos que a atravessam em bicicletas, naquela sofreguidão egoísta e insaciável da infância, de querer brincar até ao caír do dia com os amigos, de esticar ao máximo o tempo antes de ter que se voltar a submeter às regras do mundo real. Mas, no decurso dessas brincadeiras à solta, longe da vigilância familiar, um dos miúdos - o mais sensível e sonhador de todos os amigos daquele povoado miserável perdido nos confins da Itália rural - descobre um segredo. Um segredo que, sem ele o saber, não o afecta só a ele mas abarca toda a aldeia onde mora com a mãe carinhosa mas preocupada, com o pai camionista que passa a maior parte do tempo em viagem a tentar sustentar a família.

"Não Tenho Medo" é sobre como nunca estamos preparados para crescer e como, quando os momentos realmente decisivos na nossa vida surgem, continuamos a ser crianças. "Não Tenho Medo" é um filme infinitamente sensível que entrelaça com uma delicadeza invulgar as esferas do privado e do público, do pessoal e do social, porque aqui se fala dos erros que as pessoas cometem quando são levadas ao desespero pelo mundo que as rodeia, e de como por vezes basta um olhar inocente para mostrar a solução. É também - por razões que prefiro não revelar para não estragar a surpresa a quem o vir - um filme particularmente actual. Vem de Itália, é realizado por Gabriele Salvatores, estreia hoje com oito cópias, condenado a desaparecer por daqui a quinze dias. Devo ser a única pessoa a achar que é capaz de ser o melhor filme que estreou nas últimas semanas e que vai estrear nas próximas.

POLAROID LARGO DO RATO

No quiosque rosa em pleno largo do Rato, frente à loja de malas, título a garrafais na edição de hoje (ontem) do Correio da Manhã: "Preso por sexo satânico" (coisa que, na cabeça de muita gente em Portugal, o sexo é de qualquer maneira). Subtítulo: "Estofador de 27 anos esfaqueia e viola jovem de 17 em adoração ao demónio".

Sinal vermelho para os peões que atravessam a passagem de peões para o separador central frente à rua da Escola Politécnica: um pai jovem impede o filho de atravessar com o sinal fechado, "não é anda filho, tens de ter atenção ao trânsito". Do separador central para o passeio que dá entrada na rua Alexandre Herculano, contudo, o pai atravessa com o sinal vermelho para peões, com o filho atrás, dizendo-lhe "anda, filho".

Três jovens negras riem-se muito, paradas à espera que o sinal mude.

Passa uma velha carrinha Peugeot, preta, com o motor a fazer um ruído de mota de grande cilindrada, conduzido por uma senhora de meia-idade, forte, vestida de preto, com aspecto de característica pitoresca (varina, florista, à vossa escolha) e um cão sentado ao lado.

14 de abril de 2004

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #14

Impressoras imprevisíveis que se recusam ora a aceitar o tinteiro, ora a puxar a folha.

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #13

Os transeuntes que atravessam a rua com o sinal fechado para os peões como se ele estivesse aberto, indiferentes ao trânsito que circula, e que lançam um olhar desdenhoso ao automobilista que ouse buzinar-lhe para indicar que está em contravenção, chegando até a ousar insultar o condutor. Como se não fosse nada com eles e tivessem todo o direito de estar no meio da rua a bloquear o trânsito.

13 de abril de 2004

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #12

Do Forum Sons:

"O que se passa neste país?" pergunta o Adolfo [Luxúria Canibal] acerca do facto de o disco dos Mão Morta ter sido recusado por todas as editoras a que foi proposta a sua edição. O que se passa neste país em que um grupo como os Danças Ocultas têm de editar o seu disco fora de portas? O que se passa com este país em que para um artista nacional conseguir encher um Coliseu tem de actuar primeiro num Olympia? O que se passa com este país em que quase todas as bandas novas ou velhas que recriam o espólio tradicional português ou editam em edição de autor ou não gravam discos? O que se passa neste país em que a imprensa musical gasta rios de tinta a recordar bandas dos anos 80, ignora a edição de uma caixa de 3 CDs dos Minimal Compact? O que se passa com este país em que se tenta elevar o fado a património mundial e se corta na realização de festivais de músicas de raíz? O que se passa com este país em que apesar de passarem 20 ou 30 mil almas pelo festival de Sines só seis (repito, seis) almas é que compram mensalmente a Folk Roots na única loja que a vende em Portugal - a MC no Picoas Plaza? O que se passa com este país...

O desabafo é do Luís Rei. Mas não me parece que seja um exclusivo do meio musical... certo, Alexandre?

12 de abril de 2004

O INCONSTANTE

Não posso fugir a quem sou, nem posso fingir quem não sou. Mas posso encontrar a coragem de me aceitar como sou, procurá-la dentro de mim em vez de a esperar tomar de empréstimo. Estou cansado de fugir de mim mesmo - porque ao fazê-lo estou também a fugir de ti. E não quero fugir mais.

bien sûr j'ai voulu partir, mais c'est moi que je voulais fuir
dans l'inconstance
la licence, le plaisir et les substituts de toi
plonger cent fois
apaiser la crainte du vide
dans l'erreur
mon inaptitude au bonheur
bien sûr, si j'ai fait le con
tu as mille fois raison de perdre confiance
mais je dompterai l'orgueil et braverai mes peurs
et cette fièvre
que l'on pardonne à la jeunesse
désapprendre tout
pour réapprendre tout

réapprendre tout de toi
dans ta lumière et dans tes pas
je me fous de ce qu'on dira
et ce qu'on pensera de moi
je veux faire exploser mes chaînes
et tous les boulets que je traîne
je réapprendrai tout de toi
je réapprendrai tout de toi

bien sûr si j'ai fait le con
éternellement vagabond
en déroute
je t'ai dans la tête et le sang
ailleurs, je ne cherchais que toi
et dans tes bras
délesté du poison du doute
désapprendre tout
pour réapprendre tout

réapprendre tout de toi
dans ta lumière et dans tes pas
je me fous de ce qu'on dira
et ce qu'on pensera de moi
je veux faire exploser mes chaînes
et tous les boulets que je traîne
je réapprendrai tout, tout de toi
je réapprendrai tout de toi.


- Etienne Daho, "L'Inconstant" (2003)

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #11

Os motoqueiros da telepizza, telechina & afins, que voam por Lisboa sem terem a mínima atenção, interesse ou respeito por cruzamentos, sinais de trânsito, prioridades, luzes de presença, sobretudo ao fim-de-semana, numa espécie de corrida suicida a confiar no anjo da guarda.

11 de abril de 2004

A ZARAGATA

Telefonema surreal do fim-de-semana: o meu pai a perguntar-me se eu tinha em casa o álbum do Astérix chamado "A Zaragata", sobre um intriguista que é contratado para semear a discórdia na aldeia dos irredutíveis gauleses, e se o podia levar para a minha mãe o ler.

A minha mãe nunca gostou de banda-desenhada - à excepção de um álbum do Lucky Luke chamado "Mamã Dalton" (auto-explicativo). Mas a confusão que geralmente se gera lá em casa quando ela, como boa mãe proletária e alérgica a injustiças, toma partido por um dos três filhos contra os outros dois, com efeitos geralmente contrários aos originalmente pretendidos, levaram-nos a dizer comumente - e isto já há mais de dez anos - que, num dia mau, "a mãe é pior que o da Zaragata".

Finalmente, ela decidiu-se a perceber porquê.

POLAROID DOMINGO DE PÁSCOA

Lisboa deserta, como se toda a gente tivesse ido para fora (e, de certo modo, até foi). As largas avenidas estão vazias, de gente, de trânsito, sob um sol frio de Primavera ventosa, céu azul entrecortado de nuvens largas de algodão. Lojas, cafés, restaurantes, fechados, ajudam à sensação de intervalo, de pausa na lufa-lufa quotidiana. Os poucos que estão abertos têm pouca gente, respiram a calmaria que tantas vezes sonhamos para os fins-de-semana de bom tempo mas que quase nunca se concretizam.

Largo do Rato: o sem-abrigo que costuma estar a pedir esmola à entrada do metro, junto à esquadra, está de calções e pernas nuas, tisnadas, a ler com atenção os ingredientes num pacote de cereais de pequeno-almoço.

Avenida Praia da Vitória: uma das empregadas do restaurante chinês recebe uma cliente habitual, senhora idosa vestida de preto, óculos escuros e uma permanente grisalha, acompanhada pelo esposo, com dois beijos na face, à ocidental. Uma outra empregada, chinesa, fala português fluente, sem o sotaque habitual. Na televisão que está ligada no noticiário, uma peça sobre "acupunctura" surge identificada como "acumpunctura".

Largo do Carmo: dois jovens GNR reluzentes em farda de gala, na frontaria do quartel coberta de rede e andaimes devido a obras, comparam o lustro das botas altas de montar e das esporas, batem com os calcanhares num ruído de parada.

Fnac do Chiado: um senhor pega na banda-sonora das "Triplettes de Belleville" ao mesmo tempo que eu me inclino sobre o escaparate; pede-me desculpa e afasta-se para eu ver, eu afasto-me por seu lado para ele pegar no disco. À saída, uma das caixas, com pouco trabalho, pega no jornal para ler o horóscopo do dia.

Picoas Plaza: um casal compara os gelados que foi comprar isoladamente, prova os sabores um do outro, ela de longos cabelos escuros e voz determinada, ele de sapatos de vela, blusão desportivo e óculos escuros na testa.

10 de abril de 2004

(R)EVOLUÇÃO DE ABRIL

É a única resposta que posso dar ao debate idiota sobre o slogan do governo, pelas palavras de Etienne Daho. Que me perdoem os não-francófonos, mas isto tem de ir mesmo no francês original - há uma musicalidade que se perde completamente na tradução.

soldats de la rue
ou anges déçus
que tous les coeurs vaillants oubliés
et les âmes pures
revêtent l'armure
dans un monde réevolué
réecrire l'histoire
à nos étendards
de quel côté l'épée va frapper
pour un peu d'amour
au son des tambours
dans un monde réevolué

puisque l'avenir
dépend de notre foi
de notre irrépressible envie de vivre
le futur
sera bien plus que parfait
oh, debout et le poing levé!

pour la vérité
pour la liberté
le spirituel, la beauté
les arts et les sciences
et la différence
dans un monde réevolué

puisque l'avenir
dépend de notre foi
de notre irrépressible envie de vivre
le futur
sera bien plus que parfait
oh, debout et le poing levé!


- "Réevolution", 2003

LOGBOOK EM MODO ADVANCED #2: A BELA E A VÍTIMA

Depois de um mês de falsas partidas, entre indisponibilidades por motivo profissional e mau tempo, a manhã de sábado foi dedicada ao módulo que faltava para completar a especificação do nível de mergulho Advanced: o (des)controle de flutuabilidade por nove metros de fundo ao largo da praia de Sesimbra, prejudicado por um cinto de chumbos mal distribuídos e por uma garrafa um tudo nada mais pesada. Ainda assim, progressos, a serem confirmados em futuros mergulhos.

Como "bónus", aproveitando a calmaria de uma manhã de poucas saídas em meio de fim-de-semana prolongado, fui "recrutado" para servir de "vítima" à certificação Rescue Diver (nível seguinte ao Advanced) da Vanessa: técnicas de salvamento de mergulhadores em problemas. Coube-me então fazer de mergulhador em pânico à superfície, mergulhador inconsciente por oito metros de fundo e mergulhador inconsciente à superfície, com instruções bem específicas de não facilitar a vida à rapariga. A rapariga não se mostrou perturbada. E é bem ingrato ser-se "salvador" com uma "vítima" que não tem a cabeça no sítio certo, como hoje percebi. Saí de Sesimbra a olhar para estas coisas de maneira bem diferente - o que, estou certo, era também intenção do José ao "recrutar-me" como "vítima". Apetece-me tornar-me um mergulhador impecável, consciente, rigoroso e seguro. Sem pressas, lá chegaremos.

9 de abril de 2004

POLAROID ESPLANADA

A esplanada do Op Art, nas Docas de Alcântara, é capaz de ser um dos segredos mais bem guardados de Lisboa, sobretudo em tardes de Primavera e Verão com aquela luminosidade mediterrânica que só Lisboa tem, com a Ponte 25 de Abril quase ao alcance da mão.

Passa um grupo de ciclistas (dois casais mais amigos, late twenties/early thirties, t-shirts, calças de ganga, bonés, óculos escuros) em que duas das bicicletas vêm adaptadas para transportar os filhos bebés, cadeiras de plástico firmemente presas à armação, entre o selim e a roda traseira, com as crianças bem amarradas. Param a falar com uma amiga que está lá dentro, no café, e depois voltam a seguir; mais tarde um dos casais volta para se sentar na esplanada a tomar um refresco.

Barcos a motor entram e saem da marina a uma cadência irregular. Um homem tira uma máquina fotográfica do saco de desporto que carrega a tiracolo, dirige a objectiva para uma jovem de blusa vermelha, deitada no chão do pontão, à beira-rio, a apanhar o sol ainda insuficientemente quente de Primavera.

Um casal com três filhos senta-se na mesa do lado. Ao fim de algum tempo, as crianças, irrequietas, pegam nas cadeiras e puxam-nas para a beira-rio, como poltronas de primeira fila de balcão, até que a mãe lança um aviso ríspido.

Um homem vestido de escuro passa. Pede um cigarro numa das mesas. Ajoelha-se quando abandona a esplanada. Anda uns metros e, mais à frente, benze-se e volta a ajoelhar-se, como se estivesse a cumprir uma promessa.

Os comboios que passam na ponte fazem o barulho de um avião a aterrar.

8 de abril de 2004

O COELHINHO FOI COM O PAI NATAL E O COMBOIO AO CIRCO

Estreou hoje "The Brown Bunny", o mui polémico segundo filme de Vincent "Buffalo '66" Gallo: um coelhinho da Páscoa armadilhado que é um dos objectos a um tempo mais admiráveis e mais vãos do cinema moderno. Admirável, porque nele um cineasta se expõe até mais nada haver para mostrar a não ser o vazio deixado por um luto emocional de que não se consegue desfazer. Vão, porque Vincent Gallo não é um cineasta, embora gostasse de ser um. "The Brown Bunny" (no King e no Cidade do Porto) é um longo poema abstracto à beira do experimentalismo hermético, incapaz de emprestar densidade e significado ao seu frágil fio narrativo, convencido de que basta o tempo para encher o espaço. Mas não é bem assim, e Gallo (que fez o filme praticamente sozinho, contra tudo e todos) nunca consegue fazer passar para o espectador essa solidão existencial da sua personagem.

E, contudo, respeito profundamente a loucura magnífica de Gallo em arriscar tudo o que tem num filme de tal modo fora de tudo. Faziam falta mais cineastas assim - mas, de preferência, que soubessem o que estão a fazer e conseguissem comunicar com o espectador.

7 de abril de 2004

TONIGHT IS WHAT IT MEANS TO BE YOUNG



"Estrada de Fogo" tem vinte anos e é um dos filmes que mais marcou a minha adolescência. Para quem nunca o viu (e serão muitos), cito o realizador Walter Hill nas notas da capa da banda-sonora:

STREETS OF FIRE is, by design, comic book in orientation, mock-epic in structure, movie-heroic in acting style, operatic in visual style and cowboy-cliche in dialogue. In short: a rock'n'roll fable where the Leader of the Pack steals the Queen of the Hop and Soldier Boy comes home to do something about it.

Since I much prefer films that make people remember things they've forgotten to those that try to discover something new, in STREETS OF FIRE I tried to make what I would have thought was a perfect movie when I was in my teens — I put in all the things I thought were great then and which I still have great affection for, custom cars, kissing in the rain, neon, trains in the night, high-speed pursuit, rumbles, rock stars, motorcycles, jokes in tough situations, leather jackets and questions of honor.


Fui buscar a velha cassete de video gravada, numa noite em que o filme deu na televisão, no velho Panasonic dos meus pais. O som já está a distorcer, a cor a desbotar, mas ainda deu para ver outra vez e perceber o encanto (cadê o DVD, Universal?). "Estrada de Fogo" é a série B para acabar com todas as séries B, reciclando diálogos, situações e personagens dos velhos westerns, transpostos para um cenário urbano dos anos 50, com o rock'n'roll como motor primário da história: uma cantora de sucesso em concerto de regresso a casa (Diane Lane) é raptada pelo líder psicótico de um gang de motards vestidos de cabedal (Willem Dafoe) e o antigo namorado, um ex-militar desordeiro (Michael Paré) parte em heróica missão de salvamento.

O que se segue ao longo de hora e meia é o retorno a uma idade primitiva do cinema, sem cinismos nem sofisticações; está necessariamente datado, mas isso apenas o enaltece mais. É um filme que acredita, vinte anos depois, que é possível reencontrar, por hora e meia, a inocência perdida e voltar a acreditar no poder redentor da música. E, de caminho, um dos muito poucos filmes a saber integrar o rock na sua narrativa sem se tornar ridículo.

Ou, como Jim Steinman diz na canção climáctica que encerra o filme (interpretada por ele próprio e pela sua orquestra rock de músicos sob o alter-ego Fire Inc., mas que no filme é "playbackada" por Diane Lane):

I've got a dream when the darkness is over
we'll be lyin' in the rays of the sun
but it's only a dream and tonight is for real
you'll never know what it means
but you'll know how it feels
it's gonna be over
before you know it's begun

it's all we really got tonight
stop your cryin' hold on
before you know it is gone
tonight is what it means to be young
tonight is what it means to be young

let the revels begin
let the fires be started
we're dancing for the restless and the broken-hearted
let the revels begin
let the fires be started
we're dancing for the desperate and the broken-hearted

(...)

say a prayer in the darkness for the magic to come
no matter what it seems
tonight is what it means to be young.


Bruce Springsteen nunca o conseguiu descrever melhor.

A METÁFORA DO PENSO RÁPIDO (¿QUÉ ES MAS MACHO?)

O problema nunca são os outros (dizia o outro) mas sim nós próprios. Tenho estado a pensar nisto e é absolutamente verdade: eu não ando à procura de ti (quem quer que tu sejas), mas sim de algo que não existe (porque nada, nunca, existe com o grau de perfeição simétrica que imaginamos). E tu nunca poderás equivaler-te a esse arquétipo. E o mesmo é válido para o que tu (quem quer que tu sejas) procuras: nunca o encontrarás em mim. Porque não é possível encontrarmos o que procuramos. ("Be reasonable: demand the impossible", li eu numa T-shirt de passagem; terá sido ontem? no metro? no ginásio?) Teremos de nos contentar com o que somos; e isso pode perfeitamente ser suficiente.

Dito isto, o vazio que lateja aqui dentro não se mascara com pensos rápidos que amanhã saem com a água do duche. Mas para o encher preciso primeiro de o limar; porque, como ele está, não há nada que consiga lá entrar. É uma questão de expectativas.

(e agora invertendo a questão)

Mas nivelar as expectativas por baixo não será (pergunto eu) tão mau como nivelá-las por alto? E a pescadinha de rabo na boca daí resultante não relança a questão para um loop insolúvel?

A palavra a Laurie:

standby. you're on the air.
buenas noches señores y señoras. bienvenidos.
la primera pregunta es: ¿qué es más macho, pineapple o knife?
well, let's see. my guess is that a pineapple is more
macho than a knife. si! correcto!
pineapple es más macho que knife.
la segunda pregunta: ¿qué es mas macho, lightbulb o schoolbus?
uh, lightbulb?
no! lo siento. schoolbus es más macho que lightbulb.
gracias. and we'll be back in un momento.

(...)

ah desire! it's cold as ice
and then it's hot as fire.
ah desire! first it's red
and then it's blue.
and everytime I see an iceberg
it reminds me of you.
doo doo doo doo doo
doo doo doo doo doo
¿qué es más macho iceberg or volcano?

(...)

ah desire!
ah desire!
ah desire! so random. so rare.
and everytime I see those smoke rings
I think you're there.
¿qué es más macho staircase or smoke rings?


("Smoke Rings", 1986)

Aceitam-se contribuições para o debate.

6 de abril de 2004

À JANELA

Das janelas de minha casa poder-se-ia ver a ponte 25 de Abril e o Tejo se não houvesse o prédio da frente e o jardim de um prédio de uma rua contígua que tapam a vista (dois pisos acima, nas águas-furtadas com varanda panorâmica, vê-se a ponte e o céu azul sobre Lisboa; é lindo).

Das janelas de minha casa vêem-se as janelas e as varandas dos prédios da rua, os candeeiros ou os televisores acesos que iluminam uma sala de estar; vê-se uma lua branca e luminosa suspensa num céu azul profundo que a irradiação lunar torna quase negro, só a espaços cortado pela luz cintilante de uma ou outra estrela. E, por volta das dez da noite, pelos faróis de presença de três ou quatro aviões que sobrevoam Lisboa, baixo, à espera de vez para aterrar no aeroporto, como enormes e pachorrentos insectos que procuram sem pressas sítios para pousar.

THE HORROR, THE HORROR

Ando a reler "Os Maias" (Eça de Queirós legisla despoticamente, para parafrasear o pessoal do Forum Sons), como vocês que acompanham mais regularmente estas confissões quotidianas já decerto perceberam. E, em conversa telefónica com um amigo sobre o assunto, discutíamos que o problema não é que Portugal ande um marasmo — é que (a julgar por Eça, pelo menos) Portugal já há um século andava um marasmo e hoje continua a sê-lo, com meras operações plásticas pelo meio. Aquele delicioso tempo de antena do PS que passou hoje na RTP-1 antes do Telejornal parecia, sem tirar nem por, uma das tiradas parlamentares do Gouvarinho; e as quezílias bolorentas sobre construções e demolições de igrejas e substituições de padres que regularmente aparecem nos noticiários da TVI parecem as balbúrdias do Jockey Clube. É espantoso como, em cem anos, nada parece ter mudado — e como ainda há quem ache que isso é chic a valer!.

5 de abril de 2004

MARGINÁLIA

Ainda a propósito da Marginal: existe mesmo algo de mágico naquele trajecto à beira-mar, que num dia como o de hoje faz deitar para trás das costas preocupações, ansiedades, problemas e - literalmente - lava a alma. Os vinte, trinta minutos entre a 24 de Julho e Paço d'Arcos que faço uma vez por semana são, em dia de calor primaveril e trânsito desafogado, com água à vista e Lisboa ao longe a reluzir sob um céu solar, as janelas abertas e a brisa morna a varrer o interior do carro, um bálsamo que faz maravilhas pela paz de espírito. A minha amiga Isabel diz que é um dos mais belos trajectos de carro que se pode fazer em Portugal inteiro e eu subscrevo em absoluto. Sobretudo num dia como o de hoje.

O QUE HÁ DE ERRADO COM ESTA IMAGEM?

A Marginal num dia de Primavera ao som de Lloyd Cole revigora uma pessoa. E, como é hábito, há sempre uma canção de Cole que cai no momento exacto.

smile, she said, and if you want
I'll look the other way
until you regain your melancholy disposition
or until you
get over yourself

you're such a european s. o. b.
could you exist without your irony?
I guess that you're afraid to be alone or be alive
or be a boy
without a girl

monday morning
feeling all right
what's wrong with this picture?
nothing at all
open your eyes
there's nothing but blue skies
what's wrong with this picture?
nothing at all

could you believe in anything?
could I believe in you?, she said
and maybe I don't want to be your mother
and could you bear
to be sincere
for just one day

smile, she said, and if you want
I'll look the other way
and you can go back to your "Five Leaves Left"
and you can call me when you
get over yourself

monday morning
feeling all right
what's wrong with this picture?
nothing at all
open your eyes
there's nothing but blue skies
what's wrong with this picture?
nothing at all

4 de abril de 2004

BLOGO, LOGO EXISTO #6: UNIVERSOS CONTÍGUOS

E se a razão pela qual aqui me exponho diariamente fosse uma espécie de pedido de ajuda? Um chamamento a uma alma gémea (quem quer que seja, onde quer que esteja) que me ajude a fazer sentido das coisas, a sair do casulo que construí para mim próprio? Uma procura de alguém que me diga: sim, não estás sozinho, não, não estás louco, sim, há mais como tu, perdidos, à procura de um sentido, de uma lógica, de um recanto?

E se tudo isto não passasse de uma tentativa de provar a mim mesmo que sei o que faço, que tenho valor, que não sou apenas mais um cidadão anónimo entre milhões e que tenho algo que me torna diferente, talvez não melhor mas certamente diferente?

E se tudo isto for apenas a solidão a falar? Ou a necessidade de atenção? Ou apenas um desabafo? Ou apenas a misantropia que nunca identifiquei e agora vem ao de cima? Ou, apenas, um momento mau? Ou apenas uma qualquer perversa terapia pública?

O mundo lá fora é-me demasiado estranho; dele me protegeram durante a minha infância e parte da adolescência, para depois ser eu a resguardar-me. Hoje percebo que foi o pior que podia ter feito. Criei um universo paralelo que intersecta o mundo real à distância de um teclado, de um écrã, de um telefone. E, nas palavras de David Byrne, "I feel an empty space where love could be/ in adjoining universes/ touching here and there". É esse o vazio que me consome. Não hoje, apenas, mas desde há anos, sem eu o saber. Como um cavalo de Tróia que se infiltra sem darmos por isso até ser demasiado tarde e o estrago estar feito.

Escrever estes posts pode ser - é - uma espécie de analgésico: um modo de adormecer a dor, de fingir que não se tem nada. Mesmo que por pouco tempo.

3 de abril de 2004

O MAIS BELO SOM DEPOIS DO SILÊNCIO

Magnífica, a entrevista de António Pinho Vargas a Carlos Vaz Marques publicada ontem no DNa. Rematando com uma das mais certeiras definições do Portugal contemporâneo que tenho lido:

Cá em Portugal parece que se criou uma espécie de aversão ao silêncio, que é um sintoma de medo colectivo. Revela medo do silêncio, medo de pensar. As pessoas vivem, o tempo todo, numa espécie de euforia mais ou menos demencial. Assumiu-se, como socialmente verdadeiro, que temos de estar sempre excitados, sempre alegres, sempre em rapidez. Isso verifica-se nos programas de televisão, no ritmo da publicidade, na rapidez com que se move a câmara. Deixou de haver espaço para pensar. Se eu estou a dar uma entrevista para a televisão e quero ficar a pensar três segundos cortam-me a palavra.

Provavelmente porque desapareceria o auditório se houvesse esse silêncio.

Sim, mas é interessante que eu vi uma entrevista ao compositor Arvo Pärt, no terceiro canal alemão, em que lhe fizeram uma pergunta e ele ficou a pensar seguramente mais de trinta segundos. Aquilo foi um momento de televisão extraordinário. Está a imaginar isso cá em Portugal? Não está, pois não? Nem eu. E é pena.

UMA GOTA

eu sinto os teus passos
na escuridão
pressinto o teu corpo no ar
aqui
e vou
como se o mundo todo fosse
sugado para dentro de ti
e não houvesse nada a fazer
senão deixar-me ir

pressinto os teus gestos
quando não estás
procuro os teus sonhos perdidos
e hoje mais que qualquer outra noite
há qualquer coisa que me fere
e que me faz querer tanto ter-te aqui

não importa se às vezes tudo é breve como um sopro
não importa se for
uma gota só
de loucura
faço oscilar o teu mundo
e desfaço a fronteira
entre a lua e o sol

se o gesto cair assim
despedaçado
se eu não souber recolher
a dor
se te esperar a céu aberto onde se esconde
o que tu és que eu também sou
é que hoje mais que qualquer outra noite
há qualquer coisa que me fere
e que me faz querer tanto ter-te aqui

não importa se às vezes tudo é breve como um sopro
não importa se for
uma gota só
de loucura
faço oscilar o teu mundo
e desfaço a fronteira
entre a lua e o sol


- Mafalda Veiga

(para todos os/as João na minha vida; porque há noites em que a solidão fere como um bisturi que nos atravessa o corpo, cirurgicamente apontado aos sítios onde a dor é mais intensa, e quanto mais me esquivo dele mais ele acerta no alvo. E, porque nessas noites, a música da Mafalda é um abrigo momentâneo e fugaz.)

2 de abril de 2004

POLAROID JANTAR

Já passa das oito e meia quando entram; ele de fato escuro, gravata clara impecável sobre camisa branca, ela de conjunto bege. Discutem o menu; ela protesta, "então vais pedir logo o que de mais forte está no menu? queijo da serra e tornedó?", antes de ficar agarrada ao telemóvel a falar com os filhos: primeiro a Maria, uma vez, depois o Tomás, duas vezes, tratando-os alternadamente por "tu" e "você". "Tem dinheiro? Não? Peça ao tio Vasco. De quanto precisa? Acha que cinco euros chega?".

A voz ressoa no restaurante com pouca gente, às tantas levanta-se uma espécie de altercação polida com o Tomás, que vai sair à noite e não quer esperar pela chegada da mãe; esta nunca altera o tom de voz (limita-se a mudar do familiar "tu" para o mais formal "você"), mas o companheiro (esposo? amigo? companheiro?) irrita-se e, num tom peremptório, quase executivo, de patriarca ofendido na sua dignidade, diz que ela não tem nada que dar satisfações, que desligue o telemóvel. Ela não faz nada disso, embora comente que "o José está aqui a ficar irritadíssimo". "Fez a barba? E já jantou? Pergunte à Maria o que é que ela comeu. Não saia sem jantar e peça dinheiro ao tio Vasco."

OS TEMPOS QUE CORREM

Substituam onde apropriado e digam lá se não se podiam aplicar estes pronunciamentos aos tempos que correm.

— Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.

(...) o Ega falava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta de independência. Um receio tão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em deixar cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal (...) Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a Galiza estendida até ao Douro...

(...) E enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via ele a "salvação do país" (...)

— Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio português! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos (...) estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilização como outrora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o st. emilion.

(...) E, no silêncio que se fez, Dâmaso (...) ergueu a voz pausadamente, disse, com ar de bom senso e de finura:

— Se as coisas chegassem a esse ponto, se se pusessem assim feias, eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris...

Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se, pirar-se!... Era assim que de alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!...

(...) Ega rugiu. Para que estavam eles fazendo essa "pose" heróica? Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecia no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarde raça da Europa?...

— Isso são os lisboetas — disse Craft.

— Lisboa é Portugal — gritou o outro. — Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...


- Eça de Queirós, "Os Maias" (1888)

1 de abril de 2004

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #10

O ruído de metralhadora da chuva forte que cai obliquamente sobre a caixa de lata dos estores de minha casa; como o ruído inescapável de um velho disco de vinil já muito ouvido que impede a fruição absoluta da música, como o ruído branco de um canal televisivo que de súbito perdeu o sinal.

TUDO ISTO É FADO

Facto curioso e inédito: dois filmes portugueses com ambições de sucesso estreiam no mesmo dia. Dir-se-ia que os responsáveis poderiam perfeitamente ter-se entendido para não se canibalizarem mutuamente; afinal, tanta gente se queixa do desinteresse do público no cinema português, mas quando chega o momento os produtores e distribuidores preferem entrar em picardias em vez de decidirem o que é melhor para o filme. (Ironia significativa: "Tudo Isto é Fado" estreia com 30 cópias - das quais só três em Lisboa - contornando completamente o circuito de salas da Atalanta Filmes de Paulo Branco, produtor de "Lá Fora", que o estreia com 15 cópias das quais nove no seu circuito e cinco em Lisboa. Cá estaremos para ver os números de bilheteira do ICAM, daqui a duas semanas.)

Não que eles saibam o que é melhor para o filme - basta olhar para os cartazes e anúncios de cada um deles. O cartaz de "Lá Fora", de Fernando Lopes, usa como imagem uma obra de arte (ilustração? pintura?) de cores vivas e formas estilizadas, muito pop, que pretende simbolizar os principais temas do filme, sobre a qual os créditos são sobrepostos em fontes banais tiradas de computador básico. À imagem do filme, é uma imagem fria, mais estética que calorosa, mais teórica que emocional, pouco apelativa, que nada diz a quem a vê e projecta uma imagem de aspiração artística e/ou intelectual. Como obra de arte, pode ser bonito, mas como objecto de marketing é ineficaz.

Ao pé do cartaz de "Tudo Isto é Fado", de Luís Galvão Teles, contudo, o cartaz de "Lá Fora" parece uma obra-prima. Veja-se o anúncio que saiu hoje no Diário de Notícias a promover o filme, que comete o pecado capital número um do marketing: a informação mais importante - o nome do filme - está de lado à esquerda, sem leitura de espécie alguma, e a imagem dos três actores por si só não é especialmente atractiva. Como anúncio, é completamente desastroso: a imagem forte nada diz do filme e surge afogada por um sem-número de informações paralelas que apenas criam ruído visual.

Esta tendência para descurar o marketing de um filme é clássica no cinema português. Continua a achar-se que o nome do realizador ou dos actores é que leva o público às salas - se isso fosse verdade, Manoel de Oliveira teria sempre grandes êxitos de bilheteira. Continua a achar-se que o simples facto de o filme ser português é suficiente para o lançar - quando, cada vez mais, a nacionalidade local afasta as pessoas do cinema, cansadas de apanharem secas monumentais com filmes que geralmente assumem que o público ou é mais estúpido ou é mais inteligente do que realmente é.

As duas estreias de hoje não são excepção, infelizmente - "Lá Fora" é um filme a espaços belíssimo, mas que não passa de um exercício elíptico de cinema de autor, ilustração sábia de um argumento essencialmente teórico, sem uma narrativa linear que mantenha a atenção do espectador médio presa. "Tudo Isto é Fado" é uma tentativa bem-intencionada de fazer uma comédia "à antiga portuguesa", confrangedor pela incapacidade de construir um argumento com um mínimo de solidez, pelo resguardo no humor bacoco e boçal de sub-produtos revisteiros tipo "Os Malucos do Riso", pelo desperdício do talento envolvido.

Se calhar, eu é que ainda acredito no Pai Natal quando penso que ainda pode haver esperança para o cinema português - este ano ainda não vi nada que justifique essa esperança.