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24 de abril de 2004

ENTÃO COMO VAI SER HOJE?

Desde que me lembro que era o sr. Adelino que me cortava o cabelo. O sr. Adelino, mais conhecido pelo "Bigodes" devido ao seu bigode retorcido e bem cuidado, ia-me cortar o cabelo a casa quando eu era muito novo: eu sentava-me numa tábua posta em cima do cadeirão que o meu pai tinha na sala de jantar. Cresci e passei a ir à barbearia, que ficava na minha rua, um quarteirão abaixo. Era uma barbearia "à antiga": uma sala grande com três cadeiras de barbeiro e espelhos, e uma porta nas traseiras da sala que dava entrada aos moradores do prédio. O sr. Adelino tinha um ajudante, o sr. Manuel, mas era sempre ele quem me cortava o cabelo a mim e ao meu pai. Nunca gostei de cortar o cabelo no sr. Adelino, mas a força do hábito e a comodidade de morar ali ao pé ajudaram à inércia.

Não sei há quantos anos (mais de dez?), o sr. Adelino teve de ser operado. Passei a descer a rua e a ir cortar o cabelo à barbearia Pérola das Colónias. O sr. Adelino manteve a barbearia aberta, só com o sr. Manuel, e depois voltou à actividade, mas a barbearia já não durou muito mais tempo; o sr. Manuel foi-se embora ou morreu, não me recordo bem, e o sr. Adelino acabou por fechar a casa.

Fiquei cliente da Pérola das Colónias, que mudou de nome há pouco tempo; levou um lifting interno, mantendo as mesmas velhas três cadeiras de barbeiro, o espelho a todo o comprimento da parede e os mesmos sofás coçados cobertos com os jornais populares do dia; e passou a chamar-se Salão Pais (quão politicamente correcto), embora o proprietário continue a ser o mesmo sr. Pais que me corta o cabelo há dez anos e continue a trabalhar lá a filha. De tal modo que, quando deixei de morar no bairro das Colónias, continuei metronomicamente a ir lá cortar o cabelo. Uma vez experimentei ir ao barbeiro que fica na avenida Álvares Cabral, mas achei-o demasiado conversador para o meu gosto, com opiniões políticas de direita conservadora (dir-se-ia republicana nos EUA) e estupidamente lento a exercer o seu ofício.

Hoje foi o dia da visita bimestral ao sr. Pais, hoje sozinho no salão, sem a filha viúva que ainda não tinha chegado. A vantagem do corte de cabelo à máquina (pente três por igual, para os curiosos) é que, mesmo com os retoques cuidados que o sr. Pais dá ao trabalho, em dez-quinze minutos está a questão resolvida. Durante a minha estadia na cadeira, chegou o jovem aprendiz que o sr. Pais contratou há ano e meio; eu era o único cliente, e ele sentou-se a ver os jornais do dia, comentou em voz alta as revistas que o Correio da Manhã ou o Record trazia, perante a indiferença educada do sr. Pais, que já percebeu que não sou do tipo de falar e portanto se limita às perguntas da praxe: "então como vai ser?" "está bem assim?".

A minha mãe é que não acha piada nenhuma quando eu corto o cabelo. Ela não gosta de me ver de cabelo tão curto e fica apopléctica, ameaçando mesmo deserdar-me por eu lhe pôr a cabeça em água. Aliás, o corte de cabelo é uma das questão mais delicadas do nosso agregado familiar. Quando o meu pai — que já não tem muito cabelo — aqui há uns tempos o cortou mais curto do que lhe é hábito, caiu o Carmo e a Trindade e a minha mãe ia tendo um chilique.

Senti-me finalmente compreendido.

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