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29 de junho de 2004

A PRAIA

"Aparelho Voador a Baixa Altitude", de Solveig Nordlund a partir de J. G. Ballard, cruzado com "O Estado das Coisas" e "Paris, Texas" de Wim Wenders.

les flamands roses s'en vont
sans se faire la moindre illusion
sur les hommes
les femmes
nus

la marée haute s'en vient
par sa grâce il ne reste rien
de la foule
infâme
nue

je t'attendrai sur la plage
ou le long des piscines
en fumant la résine
en trichant sur mon âge
je t'attendrai sur la plage
près d'un aérosol
au sixième sous-sol
ou un pied dans la marge

les nuages font et défont
des mirages de plumes de goudron
pour les hommes
les femmes
nus

les flamands roses reviennent
dans le vent de l'est d'Eden
et la foule
infâme
les tue

je t'attendrai sur la plage
ou le long des piscines
en fumant la résine
résignée sur mon âge
je t'attendrai sur la plage
près d'un aérosol
au sixième sous-sol
ou un pied dans la marge.


- Home (Chiara Mastroianni & Benjamin Biolay), "La Plage", in "Home" (Virgin, 2004)
(obrigado, João)

O MELHOR DO MUNDO

De vez em quando a minha mãe começa a recordar a minha infância com a ternura com que só uma mãe consegue recordar a infância dos filhos, pontuada regularmente pela frase, "ai filho tu foste muito mau de criar".

Não gosto de recordar a minha infância. Não por ter sido boa, má, assim-assim. Apenas porque já ficou para trás, e já não me é possível recuperar a dicotomia simples e ingénua que a norteou, a distinção branco/preto que a idade vai progressivamente erodindo.

Mas a minha mãe gosta muito de recordar a minha infância, de me dizer como aos três anos eu já sabia ler (pudera, crescendo à volta da infindável biblioteca dos meus pais onde Jorge Amado e a Colecção Vampiro coexistiam alegremente) e como uma professora quis falar comigo por eu poder ser um sobre-dotado e a minha mãe recusou-se porque não queria que eu fosse um menino diferente dos outros. Não faço ideia se era ou não sobre-dotado (tenho as minhas dúvidas) mas I have got news for you, mãezinha: falhaste redondamente. Por muito que tentasses, os outros meninos sempre preferiram ver-me como diferente: gordinho, metido consigo, com óculos. A vítima perfeita das brincadeiras cruéis de intervalo para o recreio.

Por isso é que eu não gosto quando tu recordas com ternura a minha infância: porque a passei à espera de crescer, para poder finalmente fugir à impotência de ser criança.

E, nos momentos mais escuros e solitários, tenho medo de nunca o ter conseguido.

A HIPOCONDRIA É

Ver manchas acinzentadas no pulso, pensar que se tem algum tipo de envenenamento no sangue, sentir o pulso quente e dormente e só depois perceber que as manchas saem com água; são do cabedal novo das luvas do ginásio.

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #9

Depois de algumas semanas em que a fachada esteve em obras, agora a fachada do "antigo" Jardim Cinema, na avenida Álvares Cabral, a meio caminho entre o largo do Rato e o jardim da Estrela, está finalmente de cara lavada, embora eu não saiba muito bem por obra e graça de quem. E quando digo a fachada do Jardim Cinema, não é só a fachada do que é hoje essencialmente um estúdio de televisão — é também a fachada de todo o prédio onde ele se insere, completada pelo Monumental Salão de Jogos e pela respectiva tabacaria. Está tudo resplandecentemente claro, o velho friso emoldurando a parede "cega" que encima a antiga porta de entrada do cinema recuperou a sua precisão apolínea neo-clássica, devolvendo à arquitectura do edifício a definição que esteve obscurecida durante muito tempo.

O interior, infelizmente, é que já há vinte anos deixou de ser um cinema, depois de ter durante muito tempo sido esse clássico da sala de bairro que era o Jardim Cinema e, durante menos de uma década, uma salinha de estreia do grupo Lusomundo chamada Monte Carlo, para onde eram desviadas estreias de segunda e terceira linha a fazer a semana da praxe. Depois disso, foi o Jardim Cinema Loucuras, uma das "event discos" da moda a meio da década de 80, antes de se tornar em estúdio de produção televisiva (onde ainda hoje decorrem, creio, os programas da manhã e da tarde da SIC), destino curiosamente partilhado por outras salas "de bairro" como o Europa, em Campo de Ourique (propriedade da RTP, embora hoje inactivo), ou o Berna, a meio caminho entre o Campo Pequeno e a Praça de Espanha (onde a TVI esteve durante muito tempo).

Não acredito que muita gente tenha saudades do velho Jardim Cinema ou sequer da derivação Monte Carlo; e, no fundo, é compreensível; nem todas as salas de cinema de Lisboa se alojaram de igual modo na memória colectiva dos cinéfilos lisboetas.

28 de junho de 2004

PARA QUE FIQUE REGISTADO

Embora tudo isto ainda esteja no reino das hipóteses (e como é divertido e entusiasmante ver o país, político e social, tomar posição a favor ou contra da possibilidade de uma dessas hipóteses se tornar em realidade), concordo com Manuela Ferreira Leite (coisa que nunca me passou pela cabeça vir a escrever, diga-se em abono da verdade).

E, independentemente de quem seja o nome que o PSD decida propôr para eventual sucessor de Durão Barroso caso este decida aceitar a Presidência do Conselho Europeu (pergunta aos semióticos: existirá alguma ironia neste condicional?), sou a favor de eleições antecipadas por uma simples razão: votar numa eleição legislativa não equivale a passar "cheques em branco" para o futuro. Quem votou no PS(D) em 2002 votou num PS(D) que não é necessariamente o PS(D) de 2004 (como todos sabemos, as forças políticas, com uma notória excepção, são também elas rios em constante movimento). Para além do precedente complicado que estes abandonos a meio do mandato (e já vamos em dois seguidos) se arriscam a configurar futuramente.

E estávamos nós a ter um Eurozinho tão sossegado. Estabilidade? Qual estabilidade?

27 de junho de 2004

I WANT TO BELIEVE (SLIGHT RETURN)

A esse propósito (desculpem, não resisti), vale a pena citar o fantástico discurso com que Kevin Costner, no papel de um jogador de baseball que passou ao lado de uma grande carreira e acaba num clubezinho regional, seduz Susan Sarandon, a groupie local que faz ponto de honra em dormir com um novo jogador do clube todos os anos, em "Jogo a Três Mãos" (1988), um filmezinho simpático de Ron Shelton sobre a dignidade dos falhados da vida:

Well, I believe in the soul, the cock, the pussy, the small of a woman's back, the hanging curve ball, high fiber, good scotch, that the novels of Susan Sontag are self-indulgent, overrated crap. I believe Lee Harvey Oswald acted alone. I believe there ought to be a constitutional amendment outlawing Astroturf and the designated hitter. I believe in the sweet spot, soft-core pornography, opening your presents Christmas morning rather than Christmas Eve and I believe in long, slow, deep, soft, wet kisses that last three days.

I WANT TO BELIEVE

De um lado:

(cortesia do Barnabé)

Do outro:

(cortesia do Acidental)

É para estas coisas que a bandeira foi feita — para a sentirmos nossa em nome de algo em que acreditamos.

26 de junho de 2004

QUERER É PODER

Não são precisos jogadores de futebol para nos erguerem o orgulho patriótico. Só é preciso acreditar que podemos fazer a diferença. E, se quisermos, podemos.

I
I will be king
and you
you will be queen
though nothing will
drive them away
we can beat them
just for one day
we can be heroes
just for one day

and you
you can be mean
and I
I'll drink all the time
'cause we're lovers
and that is a fact
yes we're lovers
and that is that

though nothing
will keep us together
we could only steal time
just for one day
we can be heroes
for ever and ever
what do you say

I wish you could swim
like the dolphins
like dolphins can swim
though nothing
though nothing will keep us together
we can beat them
for ever and ever
oh we can be heroes
just for one day

I will be king
and you
you will be queen
though nothing will drive them away
we can be heroes
just for one day
we can be us
just for one day

I remember
standing
by the wall
the guns
shot about our heads
and we kissed
as though nothing could fall
and the shame
was on the other side
oh we can beat them
for ever and ever
then we can be heroes
just for one day

we can be heroes
we can be heroes
we can be heroes
just for one day
we can be heroes
we're nothing
and nothing will help us
maybe we're lying
then you better not stay
but we could be safer
just for one day.


- David Bowie: "Heroes" (in "Heroes", RCA, 1977)

LOGBOOK #12: DEVAGAR SE VAI AO LONGE

Sesimbra: Cabo Afonso, sábado 26 de Junho, 11h18: 9.8m, 70min, 20º C

Do outro lado do Cabo Afonso, em dia de mar chão e brisa leve, a água terá uma visibilidade aí de quatro metros, não mais, perturbada por suspensão esverdeada e, aqui e ali, por o que parece areia em gravidade zero. Tudo à volta está repleto de enormes laminárias, ondulando ao sabor da corrente, escondendo a vida que se agarra às rochas. A cinco metros, enormes cardumes prateados rodopiam como nuvens. Estendo a mão para me afastar de uma rocha da qual estou demasiado próximo, incomodo sem reparar um polvo que dispara imediatamente para o fundo, escondendo-se por entre as laminárias.

É o meu recorde de permanência debaixo de água — 70 minutos e ainda trouxe 50 bares de ar para cima — muito ajudado pela fraca profundidade e pelo parceiro: o Luís (um divemaster certificado que trouxe ainda 70 bares para cima) parece-se com Michael Moore mas em mais magro, mora em Espanha, apenas mergulha em Portugal quando vem de férias uma vez por ano, e tem a idiossincrasia de não levar tradicional fato de duas peças ou semi-seco, mas sim dois fatos térmicos de 2mm sobrepostos, sem capuz (e eu é que ainda acabei o mergulho a começar a ter frio...).

Desconhecendo o rapaz o Cabo Afonso, aproveitei a ocasião para lhe fazer uma "visita guiada" onde pratiquei, titubeantemente mas com algum sucesso, algumas das técnicas de orientação que aprendi no nível avançado, e aproveitei para afinar a minha flutuabilidade (a ver se da próxima vez já consigo tirar um peso aos chumbos).

À saída, a expressão de felicidade do Luís, que não ia ao mar há ano e meio e entrava hoje de férias, resume na perfeição porque é que eu gosto tanto disto. E não só sou eu.

25 de junho de 2004

E AO INTERVALO...

De facto, só mesmo uma troca de primeiro-ministro poderia desalojar o futebol das aberturas de telejornais, o que não deixa de ser refrescante e agradável quando há quinze dias que os noticiários não falam de outra coisa que não seja o "beautiful game". Pese embora a surpresa com que tudo se revela, enquanto está tudo a olhar "para o outro lado", quer seja as emoções fortes do Europeu de futebol ou as inaugurações consumistas da semana.

O modo como a coisa acontece, contudo, não deixa de ser assaz futebolístico, reminiscente de uma substituição ao meio-tempo, com os treinadores de bancada já a lançarem os seus bitaites sobre quem será o jogador escolhido para render Durão Barroso, aparentemente a caminho do Parlamento Europeu. No fundo, no fundo, a táctica é a mesma; só muda o relvado.

EFUSIVA PARABENIZAÇÃO À REFERÊNCIA (E NÃO SÓ)

O Arame faz hoje um ano. Acho que já disse algures aqui (até mais que uma vez) que o Arame foi um dos impulsos para o arranque do Roda Livre, e continua a ser uma das minhas visitas diárias obrigatórias. Impõe-se, por isso, felicitar efusivamente o Alexandre Monteiro: sempre ecléctico, esquizofrénico, encantatório, elíptico, excêntrico, e muitas vezes extraordinário, o Arame é um dos meus blogues de referência e, se lhe derem algum tempo, pode ser também que venha a ser dos vossos. Há uma alma de escritor escondida ali dentro; e no dia em que o Alexandre finalmente escrever o seu livro, Bruce Chatwin poderá ter encontrado o seu gémeo português.

Parabéns, e que contes muitos.

(Por acaso — ou talvez não? — o Arame faz anos no mesmo dia de Sua Lisboeza de Benfica e de Ma Très, Très Chère Marta, que merecem igualmente, mas de outro modo, ser efusivamente parabenizados.)

24 de junho de 2004

PEQUENO POST CELEBRATÓRIO DA VITÓRIA IMPRÓPRIA PARA CARDÍACOS

(que, diga-se em abono da verdade, não era preciso ver, porque a ruidosa manifestação da vizinhança servia perfeitamente como descrição da acção; e com dedicatória a todos aqueles que entraram em hipertensão ou arriscaram o ataque cardíaco com as emoções fortes da noite):

time stands still
all I can feel is the time standing still
as you put down the keys
and say don't call me please
while the radio plays
"I Think I Need a New Heart"


Como de costume, Stephin Merritt sabe o que diz. (E, a despropósito, a música de "Pieces of April", o filme de que falo aqui em baixo, é dele: um instrumental, uma canção inédita e uma escolha de reportório pré-existente dos Magnetic Fields e dos 6ths.)

O PATINHO FEIO



"Pedaços de uma Vida" é um título muito idiota. O António Rodrigues diz hoje no Diário de Notícias que parece título de telefilme e tem toda a razão, mas o filme de Peter Hedges (estreia hoje: Alvaláxia, Corte Inglés, Quarteto, AMC e Freeport Alcochete) é tudo menos um "caso da vida". Rodado em câmara digital à mão, quase como um documentário-"vérité", é uma desconstrução inteligente do que significa (não) pertencer a uma família.

April, a "ovelha ranhosa", rebelde e iconoclasta, de uma burguesa e conformada família suburbana, convida-os para o almoço do Dia de Acção de Graças em sua casa, como gesto de boa vontade para "fazer as pazes" com a mãe que tem um cancro em fase terminal. Mas tudo conspira para o desastre: April é tão mal vista que a viagem até Nova Iorque mais parece um sacrifício insuportável, isto enquanto o fogão da miúda se decide a avariar na pior altura.

"Pieces of April" (excelente e subtil título original) parece ser uma comédia do desastre, mas é na realidade uma meditação sobre os laços do sangue, onde o essencial é mostrado quase de passagem, de modo elíptico, em duas, três cenas onde a intensidade dos actores e a inteligência da realização afastam todas as fachadas que não são mais do que preconceitos, obstáculos facilmente ultrapassáveis; um estudo sobre o que significa precisar de alguém. Doce-amargo, como sempre é qualquer filme que acerte na mouche do que é viver em família.

23 de junho de 2004

POLAROID 23 DE JUNHO

No Campo Grande, ouve-se a voz do condutor: "estação terminal, é favor abandonar o comboio". Um senhor de meia-idade que viaja ao meu lado pergunta-me se o comboio não segue para Odivelas; explico-lhe que este não, que são comboios alternados e o seguinte prosseguirá caminho.

A estação de Alvalade, que está em obras de ampliação, é uma das poucas estações que ainda não foi renovada (quase todas estão na linha verde, de Telheiras ao Cais do Sodré). Quando o metro se estendeu a Alvalade, aquele bairro era considerado "fora de mão", quase um subúrbio da cidade; a estação tinha a peculiaridade de ter não duas mas três linhas, com uma para os comboios que terminavam em Alvalade, e duas para os comboios que partiam de Alvalade — uma para Entre Campos, outra para Sete Rios, embora à saída da estação a linha dupla se transformasse numa única.

Hoje, o terceiro cais está tapado por chapas metálicas enquanto lá atrás se ouve o ruído de obras. No cais, contudo, continuam os velhos bancos de ripas de madeira castanhas-escuras, estilo jardim, os velhos azulejos azul e cinza, o chão e o tecto de cimento armado gris. Precocemente envelhecido.

Ao meu lado no comboio para a Baixa-Chiado, uma jovem escreve num caderno de argolas enquanto preenche afincadamente um livro de exercícios gramaticais de russo.

O metro está cheio de adeptos alemães e checos, No caso dos alemães, não seria preciso as camisolas brancas da selecção para percebermos que são alemães. No caso dos checos, não seria difícil perceber que não eram portugueses, mas como vêm quase todos com camisolas da selecção a identificação é facilitada. À saída do metro, no Rossio e nos Restauradores, o número de adeptos aumenta exponencialmente, sobretudo em esplanadas, com canecas de cerveja à frente, mas tudo ordeiro e civilizado.

Alguns jogadores da selecção grega passeiam sozinhos, sem serem notados, pela Avenida da Liberdade, traídos apenas pelas T-shirts que trazem vestidas.

22 de junho de 2004

O DÉSPOTA ILUMINADO PRONUNCIA-SE

Porque é que, geralmente, os fãs de artistas ou bandas medianos, sofríveis ou mesmo maus têm tanta tendência para defender apaixonadamente os artistas ou bandas de que gostam, para lá de toda e qualquer razão e relevância? Porque é que lhes é tão difícil aceitar que possa haver opiniões contrárias e insistem tanto em que a sua opinião é a única válida, e são tão intransigentes para com aqueles que não concordam com eles?

Juro-vos: quando leio cartas de leitores irados ou posts de fãs magoados em jornais, chats, sites e afins, apetece-me parar de escrever sobre música. Se a única coisa que querem é subserviência, confirmação do seu gosto pessoal, fanatismo cego, textos de fanzine adolescente, então vão bater a outra porta. Eu não escrevo para quem fecha os olhos ao que não lhe interessa. Eu escrevo para quem tem paixão, mas aceita ouvir o outro lado da moeda e admite que há outras maneiras de ver o mundo; para quem não sente que o seu gosto é posto em causa por outros não concordarem. Eu escrevo contra o nivelamento por baixo, contra o corporativismo, contra o pré-mastigado, pré-congelado, pré-formatado. Gosto, não gosto, e procuro defender a minha dama o melhor que sei, com a ajuda dos 25 anos que levo a ouvir música.

Infelizmente, para os jovens punks que amam (hoje) os Evanescence (e amanhã outros gajos quaisquer) isso torna-me num cota irrelevante.

É fodido ser um cota irrelevante.

a despropósito: as três primeiras canções que a Best Rock FM tocou hoje depois das 10 da manhã: uma qualquer dos Evanescence; "Someone that Cannot Love" de David Fonseca; "Behind Blue Eyes" dos Limp Bizkit. Ainda bem que sou um cota irrelevante (mesmo que não desgoste do David Fonseca)

21 de junho de 2004

POR FALAR EM OBRAS

Agora que tenho a casa de retorno a um semblante de normalidade, o elevador do prédio está avariado, na sequência de uma falha de energia no poço das escadas na sexta-feira. Não me posso queixar, apesar de tudo; quem mora no quarto andar está com certeza bastante mais irritado com a situação.

20 de junho de 2004

OLHA QUE NÃO SEI

Não, Sara, não és a única obsessiva-compulsiva a ver genéricos até ao fim. Eu também sou; fico sozinho no cinema até o genérico acabar.

(E tenho o grato privilégio de poder chamar amigo ao Elvis Veiguinha, que é uma jóia de pessoa, mesmo que só nos vejamos, oh, para aí de ano a ano.)

A FLEUMA NECESSÁRIA

Sim, eu sei, nós ganhámos, 1-0, à Espanha, que andavam a fazer guerra psicológica e tudo, etc, etc, etc. Ora ainda bem. Mas não é preciso festejar como se já tivéssemos ganho o Europeu — ainda só passámos aos quartos-de-final. (Ou será que Portugal estava tão descrente da selecção que não punha a hipótese de ir aos quartos-de-final e a celebração resulta de ter sido apanhada de surpresa?)

Como dizia o outro, "it ain't over 'till the fat lady sings", e eu cá ainda não vi nenhuma diva gorda a aproximar-se do palco.

RUMINAÇÕES MUITO CÁ DE CASA

Há sempre qualquer coisa que fica por arranjar depois das obras — agora que já tenho tectos novos e paredes pintadas na casa de banho, na cozinha e na marquise, faltam-me os candeeiros para as iluminar devidamente. Na casa de banho, "esqueceram-se" de me recolocar o aplique que lá estava e o camarão que ancora a barra em L do cortinado do chuveiro (coisas que, infelizmente, exigem duas pessoas para serem feitas em segurança); na cozinha, vou finalmente poder substituir a raquítica lâmpada que estava lá à espera que o tecto fosse arranjado por um candeeiro fluorescente. No resto, passei a manhã a fazer as limpezas mínimas essenciais necessárias para devolver as partes de casa a um estado, enfim, não pristino (porque a tinta, infelizmente, ainda mancha os azulejos do chão) mas asseado, higiénico e habitável.

E, enquanto finalmente libertava o quarto e a sala de tudo aquilo que tinha sido temporariamente transplantado de uma para outra divisória, reparei como é muito mais fácil arrumar do que desarrumar e como, uma vez afastado tudo aquilo que não está efectivamente ali a fazer falta nenhuma, é surpreendente como tão pouca coisa é efectivamente necessária, desde que haja sítio para a arrumar — coisa que o escritório começa a não ter, e o IKEA está a abrir. Estou bem arranjado.

19 de junho de 2004

LOGBOOK #11: O BODIÃO EQUILIBRISTA

Sesimbra: Ponta da Passagem, sábado 19 de Junho, 11h48: 13.3m, 54min, 16º C

À volta da passagem propriamente dita que dá nome à Ponta, há uma série de "carreiros", "desfiladeiros" naturais por onde podemos passear olhando para a vida que se afixa às "paredes" de rocha. Num desses, que sobe dos doze aos cinco metros, com fundo arenoso coberto por laminárias de um castanho translúcido, há a meio uma rocha redonda onde um bodião granjola parece fazer equilibrismo, virando a sua barriga esbranquiçada, deixando ver as guelras enquanto as suas barbatanazinhas, quais asinhas, o mantêm em posição perfeitamente vertical. A visão foi certificada por uma fotografia do Pedro.

É curioso mergulhar em "acompanhamento" de um fotógrafo: a velocidade do mergulho trava imediatamente, devido à atenção redobrada que se presta à máquina, ao enquadramento, ao assunto. Numa zona em que não haja nada para ver, o parceiro está bem arranjado; na Ponta da Passagem, onde há tanta coisa para ver, é um prazer. Ainda por cima, a baixa profundidade (o grosso do mergulho faz-se sempre acima dos dez metros) prolonga a estadia e redobra o prazer.

18 de junho de 2004

MÃE, O QUE É UM ALVALÁXIA?

Hoje estive no Alvaláxia, o tal conceito pioneiro de lazer que está ali anexo ao Estádio Alvalade XXI. Fui lá a uma projecção de imprensa organizada nos cinemas do local, que me parecem muito simpáticos, muito confortáveis, muito civilizados e muito vazios — a julgar não tanto pela minha experiência (não costuma haver sessões públicas às onze da manhã) mas pelo que sei de amigos que frequentam e que nunca viram o mega-complexo de Paulo Branco a abarrotar com as massas como o Colombo em domingo chuvoso à tarde.

À saída da sessão, à hora de almoço, perdi algum tempo a vaguear pelo Alvaláxia e consegui não perceber exactamente o que é que aquilo é suposto ser. Tem lojas, mas não é um centro comercial; aliás, não se percebe bem se aquilo são lojas ou banquinhas de uma qualquer feira pós-moderna do século XXI, onde o comércio é todo virtual e já não há paredes físicas entre esta e aquela loja. Tem algumas comidas rápidas (as mesmas dos outros sítios todos), mas tudo com aspecto meio-cheio (ou meio-vazio), sem filas de espera nem multidões reunidas.

O Alvaláxia tem, já, um aspecto de experiência pioneira que correu mal; de visionarismo do género "isto é o futuro do lazer!" que chegou umas largas dezenas de anos antes do que devia. Tudo ali me remete para aqueles conceitos utópicos de arquitectura futurista dos anos 60, até nas formas desiguais, nos ocos forrados a napa: uma zona de lazer inventada, programada, esperando uma comunidade que ainda não existe nem parece, para já, vir a criar-se. Lembrou-me o "Fahrenheit 451" de Truffaut. Não sei bem porquê.

A LOJA DA PROFISSIONALIZAÇÃO

No ano passado, passei muitas manhãs na Hemeroteca Municipal de Lisboa, folheando revistas antigas no âmbito de uma pesquisa que andava a fazer sobre música. A colecção completa da Flama na década de 50 não me deu grandes informações significativas sobre aquilo que procurava, mas pelo contrário explicou-me muito evidentemente — pelo meio do rococó florido e elíptico que naquela altura era o jornalismo nacional... — que ser oficial do exército português era o equivalente da altura do estatuto contemporâneo de um gestor de craveira: cachet, prestígio, estatuto. Surpreendeu-me ver isso nas revistas e, a posteriori, de facto fazia sentido que assim fosse, numa altura em que era mais importante parecer do que ser, em que a fachada era tudo.

Hoje, contudo, esse prestígio e esse estatuto parece andar pelas ruas da amargura: na esquina da rua Braancamp com a Alexandre Herculano, no mesmo prédio recém-acabado de construir onde daqui a uns tempos vai ter sede a Federação Portuguesa de Futebol, ao lado do Mercado do Rato e da fantástica garagem Belle Époque que é o Auto Palace, acaba de abrir a Loja da Profissionalização. E o que é a Loja da Profissionalização? É um centro de recrutamento para as Forças Armadas. Que, acabado o Serviço Militar Obrigatório, precisam de arranjar gente, sob pena de caírem na irrelevância, e parece que não o conseguem fazer de outra maneira que não seduzindo a malta para os rigores da vida castrense.

Acho que o tal prestígio anda a fazer-lhes falta.

17 de junho de 2004

A LINGUAGEM É UM VÍRUS



Esta semana estreiam-se oito filmes — estamos, afinal, em época de "refugo", com o público ausente das salas escuras, entregue aos prazeres da praia ou do futebol, e os exibidores em pãnico com salas vazias, numa espiral desesperada e suicida de estrear filmes sem rei nem roque para manter o sistema a rodar. Mas, desses oito, só há mesmo um filme a recomendar.

"Agente Triplo", de Eric Rohmer (no cinema Nimas, em Lisboa), só à superfície é um filme de espionagem, ambientado na França popular do pré-II Guerra Mundial, ficcionalizando e extrapolando a partir de um fait-divers verídico — o que fascina o venerando cineasta francês, hoje com 84 anos, é encenar a espionagem não como uma sucessão de peripécias heróicas ou impossíveis, mas como um meticuloso trabalho de artesão, burilando a filigrana da linguagem até ela significar exactamente apenas aquilo que se quer que ela signifique. Numa excelente entrevista aos Cahiers du Cinéma, Rohmer revelou um pequeno mas significativo pormenor: todos os diálogos do filme foram escritos em francês corrente dos anos 30, com especial atenção à utilização de expressões idiomáticas que cairam entretanto em desuso ou viram o seu significado alterado com o evoluir da linguagem.

Rohmer, além do mais, filma estes duelos verbais como se fossem a coisa mais excitante do mundo — e, durante as duas horas de "Agente Triplo", são-no. Como diria o Luís, é um filme de palheta — mas de palheta superior, superiormente interpretada e ainda mais superiormente filmada. Vale a pena desafiar o calor e refugiar-se no ar condicionado do cinema para ver esta jóiazinha de artesanato académico, sim, mas profundamente moderno.

16 de junho de 2004

O NEPOTISMO EM FUNCIONAMENTO

Vejo os cartazes que anunciam o espectáculo de Phil Collins no Estádio de Alvalade, daqui a duas ou três semanas (integrado na "first final farewell tour" — não se pode dizer que o rapaz não tenha sentido de humor). E rio-me a bandeiras despregadas quando vejo que quem vai fazer a primeira parte é... Mike & The Mechanics, a banda do amigo e ex-colega dos Genesis, Mike Rutherford. Ora ainda bem: só se estraga uma casa...

15 de junho de 2004

O LIVRO DOS SONHOS

Nunca se sentiram perdidos, com a sensação de que estão impotentes à espera que alguma coisa aconteça? Os meus sonhos andam assim. E Suzanne sabe como explicá-lo.

oh mom
the dreams are not so bad
it's just that there's so much to do
and I'm tired of sleeping

oh mom
the old man is telling me something
his eyes are wide and his mouth is thin
and I just can't hear what he's saying

oh mom
I wonder when I'll be waking
it's just that there's so much to do
and I'm tired of sleeping

oh mom
the kids are playing in pennies
they're up to their knees in money
and the dirt of the churchyard steps

oh mom
that man he ripped out his lining
tore out a piece of his body
to show us his clean quilted heart

oh mom
I wonder when I'll be waking
it's just that there's so much to do
and I'm tired of sleeping

oh mom
the bird on the string is hanging
her bones are twisting and dancing
she's fighting for her small life

oh mom
I wonder when I'll be waking
it's just that there's so much to do
and I'm tired of sleeping.


- Suzanne Vega, "Tired of Sleeping" (in "Days of Open Hand", A&M 1990)

GRANDES ESPERANÇAS

Nunca mais aprendo que é mau ter grandes expectativas em relação às coisas. Nunca mais aprendo que, muitas vezes, não vejo aquilo que as coisas são mas projecto aquilo que eu quero que elas sejam. E, como eu, quanta gente não fará o mesmo em relação às coisas mais ínfimas tanto como às mais importantes?


14 de junho de 2004

É BOM TRABALHAR NAS OBRAS?

Havia uma ironia dupla no slogan da editora Oficina do Livro, aplicado aos pavilhões da Feira do Livro, colocados a escassos metros da distância das obras do infame túnel do Marquês — trabalhar nas "obras" literárias, e nas "obras" físicas.

É um pouco como eu me sinto desde há uma semana, quando finalmente — à beira do fim-de-semana prolongado — se iniciaram as obras de reconstrução dos tectos da casa de banho, da cozinha e da marquise da casa que alugo em Lisboa, prometidas há vários meses, desde que ficou resolvido o problema de esgotos do vizinho de cima (alheio à situação) e as consequentes infiltrações que deterioraram os tectos, e agora iniciadas em tempo ideal para a rápida secagem do material.

Faz amanhã uma semana que começaram, dizia eu, mas o facto é que aquilo que era suposto ter uma resolução rápida se tem arrastado inexplicavelmente, deixando a minha cozinha inoperacional, a casa de banho com aspecto de instalação pós-moderna e a minha casa, na generalidade, no caos absoluto. Para já, apenas rezo que fique tudo concluído esta semana. Pelo que, agora, "é bom trabalhar nas obras" me parece uma ironia de bastante mau gosto.

13 de junho de 2004

OK, OK, NÃO BATAM MAIS

Eu já sabia que era lírico. Pronto, agora que já sei que as projecções dão qualquer coisa como 65% de abstenção nas eleições de hoje, acho que o meu lirismo passou a delírio febril. Mas pelo menos tenho a minha consciência tranquila: eu cumpri o meu dever cívico e eleitoral. Que, adiante-se, continuo a achar bem mais válido para o futuro da nação do que colocar uma bandeirinha à janela em nome de um qualquer orgulho nacional que ficou seriamente amarrotado depois de se ter visto grego para reduzir o 2-0 para 2-1. Como já sei que sou lírico — e, como dizia o outro, ter consciência do problema é meio caminho andado para o resolver — não é preciso insistirem.

DO CABARÉ PARA O CONVENTO



O meu pai não gosta da maior parte dos filmes de Pedro Almodóvar (embora não tenha visto os últimos) porque acha que "são muito naïf". A afirmação faz todo o sentido aplicada a "Negros Hábitos", fita de 1983 que agora saiu em DVD e que estive a ver na sexta-feira em casa de amigos depois de agradável refeição: a terceira longa-metragem de Almodóvar é um objecto onde se detectam já muitas das "marcas registadas" do realizador, afogadas pelo meio da pobreza da produção e do amadorismo dos raccords e da montagem.

No essencial, o filme é uma primeira iteração dos tópicos da identidade e do desejo que percorrem toda a sua alma, disfarçado dentro de uma subversão actualizada dos dramalhões latinos de faca e alguidar que, em Lisboa, passavam no Odeon ou no Avis: uma mulher perdida, cantora de cabaré e prostituta, refugia-se no convento para recomeçar a vida do zero, fugindo à atenção da polícia que suspeita de envolvimento seu na morte do namorado (um toxicodependente morto de overdose de produto adulterado). Só que o convento das Redentoras Arrependidas onde ela se refugia é tudo menos o espaço de clausura habitual: a madre superiora é uma heroinómana lésbica, uma das irmãs escreve romances de cordel sob pseudónimo, outra (Marisa Paredes, de "A Flor do Meu Segredo" e "Tudo Sobre a Minha Mãe") diz ter visões do Senhor depois de tomar ácidos, outra ainda (Carmen Maura) tem como bichinho de estimação um tigre adulto a quem toca congas para que ele se lembre de África.

Visto na altura em que estreou, "Negros Hábitos" seria uma curiosidade excêntrica, com pormenores interessantes mas insuficientes para perceber se estaria ali cineasta. Percebia-se já a direcção de actrizes, a capacidade de escrever diálogos e de subverter por dentro a estética do melodrama, de dizer coisas sérias a brincar, mas falta ainda o savoir-faire técnico e o conforto de produção que ajudariam Almodóvar a dar saltos de gigante nos filmes seguintes. Há ainda uma sensação de alguém a brincar ao cinema, sem saber muito bem o que está a fazer, mas com um charme inegável.

"Negros Hábitos" estreou em Portugal com seis anos de atraso, em plena "febre" Almodóvar, três meses depois de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos". Estreou (imaginem!) no Condes, com um cartaz que reproduzia em parte o original espanhol mas com o nome de Carmen Maura puxado para primeiro plano, muito embora a actriz que viria a celebrizar-se como musa do realizador aqui tivesse um mero papel secundário, numa daquelas tácticas de "chico esperto" que os distribuidores de cinema "à antiga" arranjavam para levar os pacóvios ao cinema. Lembro-me que "Negros Hábitos" ficou pouco tempo em cartaz. O DVD que agora sai não tem extras e o master não está em grande estado, parecendo ter sido feito a partir de uma cópia de película com algumas irregularidades.

E o Zé tem alguma razão: terá estado aqui a inspiração para "Do Cabaré para o Convento"?

12 de junho de 2004

WELCOME TO LISBON

A frente da Assembleia da República está tapada por obras. A zona Marquês-Amoreiras está o caos por causa do túnel. As Marchas de Lisboa cortaram o trânsito na Avenida da Liberdade e no Marquês de Pombal — de casa dos meus pais até minha casa, percurso que geralmente leva 10 minutos sem trânsito, levei 45 devido á volta que tive de ir dar para contornar (sem sucesso) os bloqueios de trânsito. E perguntei-me: se um turista do Euro vier ver Lisboa, é isto que vai ver? Uma cidade presa em engarrafamentos e obras?

ORGULHO CÍVICO

E se, em vez de porem a bandeirinha na varanda, no carro, na janela, no terraço, no televisor, todos aqueles que aderiram incondicionalmente à bandeira substituissem o acto simbólico de apoiarem a selecção portuguesa pelo acto cívico de votar nas eleições europeias?

(Sim, eu sei que sou lírico.)

LOGBOOK #10: ANTI-STRESS

Sesimbra: Cabo Afonso, sábado 12 de Junho, 11h14: 11.9m, 51min, 16º C

A grande pedra que se ergue dos dez até aos cinco metros de profundidade no Cabo Afonso é uma profusão de vida subaquática — grandes algas laminárias aqui e ali, gorgónias, anémonas, peixes grandes e pequenos, um choco que passeia calmamente aqui, um polvozinho pachorrento escondido por trás de um coralzinho cor de ferrugem. Que pena que a água de visibilidade transparente ao alcance da mão estivesse com tanta suspensão, transformando-se numa enevoada sopa verde a partir dos cinco metros — nada de grave, há sempre alguma coisa a ver mesmo aqui ao lado.

Gosto sobremaneira destes mergulhinhos medianamente baixos, em zonas efervescentes de vida, em dias cálidos com pouca corrente e a água agradavelmente refrescante. Com direito a bom humor à ida e à vinda, sobretudo quando, no regresso, ajudamos (ou melhor, o Pedro ajuda) um dos pescadores domingueiros que, vá-se lá saber como, descem aquelas íngremes muralhas da pedra que saem da baía de Sesimbra a recuperar a cana de pesca que deixou cair a fraca profundidade.

Gosto destes mergulhinhos porque são uma possível definição de paz, de bem-estar — um bem-estar benevolente, quase budista, em que todas as coisas têm uma lógica, um sentido, uma razão de ser e o equilíbrio natural é mantido sem esforço. Anti-stress. Puro. Sem corantes nem conservantes, nem estimulantes artificiais. O mundo, lá fora, suspende a existência durante estes 50 minutos; é por dias como este que o mergulho se entranha cá dentro e se torna num vício bom.

11 de junho de 2004

SERVIÇO PÚBLICO

Não se esqueçam de comprar o selo do carro. Eu já comprei, porque me esqueço todos os anos e este ano, pelos bons ofícios da Isabel, lembrei-me e ainda fui a tempo e horas, sem ter de estar em filas intermináveis com os outros retardatários todos.

10 de junho de 2004

LOGBOOK #9: ONDE SE EXPLICA O QUE É O FAMOSO RIVA GURARA (a pedido de várias famílias)

Cabo Espichel: Riva Gurara, quinta-feira 10 de Junho, 11h09: 25.9m, 38min, 20º C

O Riva Gurara é um cargueiro nigeriano que se afundou ao largo do Cabo Espichel, num temporal, em Fevereiro de 1989 e se tornou num dos spots de mergulho mais requisitados de Sesimbra; como qualquer naufrágio, exerce um fascínio inexplicável sobre os mergulhadores. Repousa a uma profundidade entre os 20 e os 30 metros, não longe da costa, mas mesmo em dias bons como o de hoje (com pouco vento, um mar chão ao longo da maior parte do percurso até ao cabo) "ir ao Riva" está longe de ser um passeio no parque; um dos companheiros de barco queixava-se da visibilidade zero e da corrente forte ali há quinze dias, substituída hoje por uma visibilidade de cinco-seis metros pelo meio de um verde-turquesa inexplicavelmente pouco frio e com relativamente pouca corrente.

É a minha primeira saída no Riva desde o curso avançado em Março, e a primeira saída que ali faço em seis anos desde que, em 1998, visitei a hélice. Com maré cheia a começar a vazar, desço com o João pelo cabo até perto dos 26 metros. Páro para ajustar algum equipamento solto, começamos a nadar contra a corrente e peço alguns minutos ao João para me acalmar; do esforço de nadar contra a corrente, do peso excessivo que levo aos rins (está na altura de tirar peso ao cinto de chumbos, como a Isabel e o Zé recomendam no regresso). O fato vermelho do João é agora de um cinzento desmaiado; as rochas do chão levam-nos até à zona da popa, menos funda que a proa, paredes verticais de chapa corroida de um lado, revelando ainda tubagens, compartimentos, divisórias do outro, onde a vida subaquática já se instalou; num pequeno "canyon" entre duas vigas, um cardume navega paulatinamente; os peixes por ali andam pacatamente.

O tempo, aqui, corre demasiado depressa, pelas leis da profundidade e do consumo de ar. Em vez de subirmos na vertical, o João dirige-me calmamente por uma zona de casco que repousa no chão invertido e relativamente intacto, parede vertical onde algumas anémonas já montaram casa, que curva no topo como um monumento em direcção à superfície. A subida em zig-zag acompanhando o percurso, sempre a olhar para a vida que se foi instalando (dois peixes-pedra aninhados num vão da quilha invertida) leva-nos até aos 15 metros, e aí sim começamos a subir calmamente, sempre com a bússola a indicar a direcção da costa. Cá em cima, pior vai ser o esforço de nadar até ao barco (canseira!), içar o equipamento e esperar que o pessoal em falta (felizmente pouco) suba do mergulho; um ou dois arrancos estomacais dão a entender que as pulseiras contra o enjôo funcionam menos bem em condições de "camioneta de carreira". Mas que funcionem bem em 95% dos casos já não é nada mau.

9 de junho de 2004

POLAROID SÃO JOSÉ

Pequeno susto fugaz; o meu pai no hospital com uma dor no peito, que suspeitámos ter a ver com os seus problemas cardíacos, mas que não passará de dor muscular ou de ansiedade, face às análises sem alterações e ao ECG regular.

Na sala de espera, onde o ar condicionado oferece refúgio do calor estival lá fora, uma menina de tótós, top e calções amarelos curtos e chinelos com brilho corre lampeira até à casa de banho como se fosse uma brincadeira.

Uma idosa de cabelos brancos, vestida de negro, muleta num braço e mala de mão no outro, dirige-se à casa de banho; resmunga qualquer coisa enquanto entra. Não fecha a porta enquanto a usa, mas preocupa-se em fechá-la quando sai.

As vozes entarameladas que surgem dos altifalantes, dos médicos que chamam os doentes em espera, são muitas vezes incompreensíveis; mas há nomes que são chamados vezes em conta sem que ninguém se levante na sala, com as vozes a trairem um leve enfado, alguma irritação. A oftalmologia está hoje particularmente procurada, parte significativa dos pacientes masculinos chamados são para o balcão de oftalmologia. Quando saio, há um agente da polícia, de pé à entrada da sala de espera, com um algodão e um penso a tapar-lhe o olho esquerdo; está fardado regulamentarmente, mas com o coldre vazio, sem boné à vista.

O meu pai liga do telemóvel à minha mãe a dizer que está à espera do resultado das análises. Diz-me depois que a minha mãe lhe perguntou se ele tinha dito que já tinha almoçado, porque não se deve tirar sangue depois de almoço.

Quase todas as senhoras que se dirigem à casa de banho quando esta se encontra ocupada e encontram a porta fechada tentam o puxador, batem à porta, perguntam às pessoas próximas se está ocupada, mesmo quando do outro lado ouvem o autoclismo a correr.

Telemóveis tocam com melodias infindáveis em volumes altíssimos sem que ninguém se preocupe em atendê-los.

Cá fora, já à espera de táxi, uma senhora de óculos e vestido floral em preto e branco fala para um telemóvel com uma voz estridente, esganiçada, elevada que o meu pai diz a brincar parecer de rancho folclórico das Beiras.

PERÍODO DE REFLEXÃO

Não vou insistir na ironia de aqueles que há uns dias invectivavam furiosamente em vida António Sousa Franco agora o louvarem na morte como um grande democrata — muitos outros o fizeram e farão. Sempre soube que a política é a arte da demagogia, da fachada, do fingir; uma espécie de "reality theatre" onde só as aparências contam, onde as pessoas se deixam levar pelo jogo do faz-de-conta, mascarando em alguns casos amizades pessoais que — como deve ser — transcendem fronteiras políticas tanto quanto revelam a venalidade essencial da retórica de aluguer. Mas a morte súbita, inesperada, trágica, quase televisionada de Sousa Franco apenas veio revelar, de modo mais brutal do que é hábito, que a política não passa de uma luta de galos por um poleiro onde, a bem dizer, acaba por haver sempre lugar para todos, nem que por rotatividade. Uma arte passageira onde apenas conta parecer, independentemente do ser.

8 de junho de 2004

POLAROID FEIRA DO LIVRO

A Feira do Livro é daqueles anacronismos que não se percebe muito bem que sentido ainda fazem, quando os descontos oferecidos não são nada significativos. Mas é um anacronismo ternurento, de valor sentimental, pois recordo-me bem da alegria que tinha em miúdo quando o fim de Maio chegava e eu ia completar as minhas colecções de álbuns de banda-desenhada da Bertrand, ainda a feira decorria ao longo do passeio público central da Avenida da Liberdade. Hoje, as minhas visitas à Feira do Livro são mesmo pelo valor sentimental; já pouco compro e o pouco que compro é nos alfarrabistas ou aquelas edições que apanho só aqui, que quando procuro nas livrarias dificilmente encontro.

Por toda a Feira surge um cartaz da União dos Editores Portugueses a exigir a abolição do IVA nos livros, à semelhança de Itália e Inglaterra, à imagem do 1% de IVA nos livros em Espanha. Não percebo é porque é que a União dos Editores Portugueses conclui o cartaz com a pergunta (gramaticalmente incorrecta) "De que espera Portugal?".

São 20h45. De passagem por um dos pavilhões, ouço um senhor ao telefone: "Mas ainda queres ir trabalhar hoje?" (como se a vontade de trabalhar a estas horas o transformasse num louco furioso).

Mais à frente, conversa entre assistentes de dois pavilhões em lados opostos: ela, do lado de cá, "então, ele vai ser padrinho do noivo e da noiva", ele, brasileiro, do lado de lá, pavilhão da Difusora Bíblica, "pois eu nunca fui padrinho de ninguém".

Algures pelo meio das ruas, um homem alto, em camisa Sacoor Brothers e óculos escuros, de ar saudável e bronzeado e pêra bem aparada, comenta para a amiga: "depois não têm dinheiro para comprar drogas, é só comprar livros, livros, livros..." Que ideia estimulante: a literatura como uma droga.

EQUILÍBRIOS INSTÁVEIS

Ou a história do estafeta que, à saída do escritório, abrandou a moto, puxou do telemóvel do bolso do blusão de cabedal e tentou atendê-lo sem ter de tirar o capacete.

Alguns segundos depois, o rapaz lá tirava o capacete para receber a chamada.

7 de junho de 2004

TOCA O TAMBOR DEVAGAR

Para J, com um abraço muito forte.

I meant to ask you how to fix that car
I always meant to ask you about the war
and what you saw across a bridge too far
did it leave a scar

or how you navigated wings of fire and steel
up where heaven had no more secrets to conceal
and still you found the ground beneath your wheels
how did it feel

bang the drum slowly, play the pipe lowly
to dust be returning, from dust we begin
bang the drum slowly, I'll speak of things holy
above and below me, world without end

I meant to ask you how when everything seemed lost
and your fate was in a game of dice they tossed
there was still that line that you would never cross
at any cost

I meant to ask you how you lived what you believed
with nothing but your heart up your sleeve
and if you ever really were deceived
by the likes of me

bang the drum slowly, play the pipe lowly
to dust be returning, from dust we begin
bang the drum slowly, I'll speak of things holy
above and below me, world without end

gone now is the day and gone the sun
there is peace tonight all over Arlington
but the song of my life will still be sung
by the light
of the moon you hung

I meant to ask you how to plow that field
I meant to bring you water from the well
and be the one beside you when you fell
could you tell

bang the drum slowly, play the pipe lowly
to dust be returning, from dust we begin
bang the drum slowly, I'll speak of things holy
above and below me, world without end


- Emmylou Harris, "Bang the Drum Slowly" (in "Red Dirt Girl", Nonesuch 2000)

6 de junho de 2004

A PERFEIÇÃO EXISTE



Não sei se já o disse aqui. Mas não me importo de o repetir: este álbum é o disco perfeito. São só 29 minutos, mas que 29 minutos! A voz da Voz, o violão de Tom, os arranjos impossivelmente doces de Claus Ogerman, a cápsula do tempo, de um tempo ausente aqui reproduzido na perfeição, em perfeito stereo de época. Como nesta canção fabulosa de Jobim, em perfeita tradução de Gene Lees: "Corcovado", aliás "Quiet Nights of Quiet Stars".

um cantinho, um violão
quiet nights of quiet stars
esse amor, uma canção
quiet chords from my guitar
pra fazer feliz a quem se ama
floating on the silence that surrounds us

muita calma pra pensar
quiet thoughts and quiet dreams
e ter tempo pra sonhar
quiet walks by quiet streams
da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo
and the window looking on the mountains in the sea, how lovely

quero a vida sempre assim
this is where I want to be
com você perto de mim
here with you so close to me
até o apagar da velha chama
until the final flicker of life's embers

e eu que era triste
I who was lost and lonely,
descrente desse mundo
believing life was only
ao encontrar você eu conheci
a bitter tragic joke, have found with you
o que é felicidade meu amor
the meaning of existence, my love

5 de junho de 2004

LOGBOOK #8: PLUS ÇA CHANGE

Sesimbra: Ponta da Passagem, sábado 5 de Junho, 11h32: 13.4m, 55min, 14º C

É a minha primeira memória dos fundos de Sesimbra: a Ponta da Passagem, à beira do Cabo Espichel, não muito longe do célebre Riva Gurara, foi o primeiro mergulho "oficial" que fiz depois de tirar o curso, há pouco mais de sete anos: mergulho costeiro encostado ao paredão rochoso, relativamente abrigado, há vida e recantos para explorar a pouca profundidade (na sua cota máxima, o spot não ultrapassa os 14 metros, o grosso do mergulho faz-se entre os cinco e os oito metros de fundo). O nome — Ponta da Passagem — vem de uma saliência no paredão que, debaixo de água, "abre" numa larga passagem subaquática forrada a vegetação. Para um iniciado, atravessar aquele anel de rocha, ver como, do outro lado, a água parece reconquistar o azul turquesa, descobrir o fantástico jogo de sombras que a difusão da luz do sol permite, é mágico.

Voltar à Ponta da Passagem quatro anos depois da anterior visita foi reencontrar um velho conhecido, com soberba visibilidade (dez metros à vontade); reencontro um pouco toldado pela força da corrente amplificada pela proximidade da costa, visível nos espessos tapetes de algas que deslizam pelos raros fundos arenosos. Uma profusão de ouriços de cores mudas (amarelo, azul, verde, laranja) forram as rochas, um ruivo meio escondido levanta vôo com as suas barbatanas em forma de asa orladas de um azul ultravioleta.

Reencontro também a célebre gruta que mais não é do que uma cavidade aberta em dois lados (o topo e a enorme saída, a fraca profundidade, cinco metros em maré cheia; lá em cima vejo a superfície prateada da água em movimento). Enormes pedregulhos à entrada têm pequenas anémonas brancas a crescer na zona virada para o interior; a prudência faz-me assinalar ao atento Vitorino para não avançarmos, embora mal tenhamos entrado e já se veja o fundo no foco da lanterna. Ao invertermos direcção, o ir e vir das ondas cria uma curiosa ilusão visual: parados, apoiados numa rocha, vemos o fundo arenoso a deslizar sob nós como se estivéssemos a nadar rapidamente, com a corrente a levar e trazer areia e algas, de lá para cá, de cá para lá. A metáfora é apropriada: estamos parados, mas à nossa volta tudo muda. E, contudo, no trajecto de regresso a Sesimbra, o ocre das muralhas costeiras de rocha sólida reflectindo o sol de Junho sugere uma imutabilidade milenar e sábia, quase zen.

4 de junho de 2004

FORÇA PORTUGAL #2

Segundo percebi no Telejornal da RTP-1 de hoje, afinal a tal história das bandeirinhas nos táxis é mesmo um apoio à selecção nacional de futebol em manifestação de orgulho patriótico.

O que não deixa de transportar uma ironia particularmente fina no mesmo dia em que a Inspecção-Geral das Actividades Económicas prendeu quatro taxistas acusados de cobrar valores abusivos pela corrida. (Parece que o Aeroporto de Lisboa sabe atraí-los). É tudo a ajudar à auto-estima lusitana, mesmo à beirinha do Euro...

A METAFÍSICA ANALÍTICA DO IOGURTE

Já há uns tempos que me apetecia postar sobre os pequenos prazeres do iogurte. Sou um grande consumidor de iogurtes. Pequeno-almoço sem iogurte não é pequeno-almoço. Não sou grande apreciador dos iogurtes líquidos nem das variações multi-sabores (nêspera e maracujá, por exemplo). Mas, inspirado pelo diário alimentar do L, decidi partilhar convosco os resultados do meu recente teste gustativo iogurteiro na modalidade "iogurte-com-aroma-artificial-a-fingir-que-é-sobremesa-de-luxo".

Como já expliquei, não é o meu tipo de iogurte. Gosto de um bom clássico de aroma (banana, ananás, morango, coco, baunilha, limão, tutti-frutti, etc), ou então com pedaços ou cereais. Mas senti-me suficientemente intrigado para fazer um comparativo às variantes tarte-de-limão, tendo então comparado o Corpos Danone Pleasure sabor Tarte de Limão e o Adagio Cremoso sabor Cheesecake de Limão.

Feitos testes extensíssimos o Adagio Cremoso ganha em toda a linha, não só pelo sabor a limão mais acentuado e pelo perfeito equilíbrio entre o sabor e a textura mais cremosa, como pela inclusão de pequenos pedaços de massa de tarte esfarelada. O Corpos Danone tem um sabor mais amargoso e está armado em iogurte de dieta, o que me irrita bastante. Que saudades dos Linha Zero (o de baunilha era fenomenal).

Em próximos posts irei discutir o problema da volúpia gustativa aplicada aos gelados Magnum e as dificuldades por que ela passou desde que a gama se alargou em desnecessária e excessiva diversificação. O que não impede que eu continue a achar um bom Häagen-Dazs irresistível (o novo Coffee Cinnamon Cream é paradisíaco).

OUTRA BOA RAZÃO PARA LER O DNA DE HOJE

...para além da entrevista de Saldanha Sanches: quatro pequenos contos do meu amigo António Rodrigues. Que escreve demasiado bem, e que escreve demasiado pouco.

FORÇA PORTUGAL

Alguém me consegue explicar para que é que servem as bandeirolas portuguesas que começaram agora a aparecer nos táxis lisboetas? Será apenas uma manifestação de orgulho patriótico ou do apoio taxista à selecção nacional de futebol? (Neste último caso, seria curioso começarem a aparecer táxis com bandeiras de outros países, significando o seu apoio a outras selecções.)

CONTRA A CULTURA DA COMPLACÊNCIA

(...) Acho que isto não tem que ser assim. Se eu achasse que isto tinha que ser assim dedicava-me a outros temas. Pode-se escrever, por exemplo, sobre História, sobre Arte, sobre Pintura. São temas muito interessantes. Mas eu acho que Portugal pode ser melhor do que é. Se nós protestarmos, se nós tivermos uma posição mais cívica de não aceitarmos o mal e lutarmos por alguma coisa melhor. Portugal pode melhorar.

(...)

A culpa é sempre do cidadão comum. A culpa é sempre nossa. A ideia dos portugueses é que há uma coisa maléfica chamada Estado donde vem todo o bem e donde vem todo o mal e que o Estado é culpado de tudo, que cada um de nós está inteiramente inocente. Não é verdade. O Estado somos nós. Por isso mesmo, quando o Estado funciona muito mal é porque nós nos interessamos pouco ou a opinião pública tem ideias erradas.

(...)

Se nós ganharmos o Euro 2004 o PNB não cresce meio por cento sequer. Não cresce nada. O resultado disso é um bem-estar colectivo que dura 24 horas... (...) quarenta e oito, OK. Uma semana. Mas depois fica tudo na mesma. As questões estão por resolver e não há nenhum efeito de arrastamento. Pessoalmente estou farto das Rosas Motas e estou farto de campeões que não nos dão coisíssima nenhuma. (...) Não pensemos que uma vitória desportiva tem alguma importância. Não tem. É uma coisa que nos pode dar, ou não, prazer quando a vemos na televisão. Nada mais do que isso.


Saldanha Sanches, hoje, a Carlos Vaz Marques, no DNA. Assino por baixo.

3 de junho de 2004

A CULTURA DA COMPLACÊNCIA

Estava eu hoje a ler o Diário de Notícias, como é meu hábito às quintas-feiras, e a olhar para a cobertura da campanha eleitoral para as europeias, e a perceber que o está a ser realmente importante nesta campanha não são as opções de fundo, as políticas laborais, económicas, sociais: são os fait-divers que rodeiam tudo isto. O PS e o CDS-PP emaranham-se numa troca de mimos mais ou menos birrentos, com o CDS-PP a ser mal-educado e depois armar-se em virgem ofendida quando o PS responde pela mesma bitola (embora ligeiramente mais educado); o PSD tenta passar ao largo disso tudo mas não consegue por causa do tal almoço "privado"; o PCP refugia-se na cassete envelhecida e o Bloco de Esquerda tenta passar por baixo do radar mas não consegue por ter o irmão do ministro; os outros bem tentam que lhes liguem alguma coisa. Tudo isto parece uma má série de comédia.

A política, como dizia alguém em tempos (peço desculpa de agora não me recordar quem), é demasiado importante para ser deixada aos políticos. Ainda por cima, os que nós temos não são nada brilhantes. Mas são os que temos, e confesso que isto não augura nada de bom. Fosse eu um daqueles democratas resmungões que se lembram do tempo da outra senhora e diria "foi para isto que se fez o 25 de Abril?". Mas como não sou prefiro dizer que foi para isto que se fez o 25 de Abril. O que não quer dizer que não esteja a fazer falta dar um abanão sério nos alicerces de uma classe que está demasiado acomodada. Se de caminho o português acordasse desta letargia do deixa estar, mais interessada no Euro e no Rock in Rio e no OVNI e nos Morangos com Açúcar do que efectivamente na política — que, para o mal e para o bem, ainda influi mais directamente nas nossas vidas do que a televisão e o futebol — não seria nada mau.

Eu cá não acredito muito nisso, mas isso pode ser porque costumo ser cínico e li o jornal hoje de manhã.

2 de junho de 2004

VALSINHA

Chico Buarque de Hollanda e Vinicius de Moraes juntos: só podia dar uma pérola assim.

um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
e não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
e nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
e cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

e ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
e foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
e foram tantos beijos loucos
tantos gritos roucos como não se ouvia mais
que o mundo compreendeu
e o dia amanheceu
em paz.

DÁ-ME UM IRREAL (ANTI-)SOCIAL

Segundo a BBC News explica aqui, duas companhias discográficas inglesas vão ser processadas por causa das colagem de cartazes promocionais nas ruas de Camden, em Londres, alegando que se trata de uma prática ilegal e anti-social que traz graves prejuízos à comunidade.

Depois de saber que os fleumáticos britânicos consideram que colar cartazes na rua é, afinal, uma actividade anti-social (presumo que só tenham sido processadas duas companhias porque as outras não assinam os cartazes), pergunto-me que fariam eles face à queda de uma campanha eleitoral no absurdo da ofensa pessoal e do ataque gratuito de parte a parte. Será que também se podem processar os políticos alegando que a política é uma prática anti-social que traz graves prejuízos à comunidade?

1 de junho de 2004

E AINDA HÁ QUEM DIGA QUE A MÚSICA PORTUGUESA ESTÁ EM CRISE

Olho para o top oficial de vendas de álbuns em Portugal e fico completamente surpreendido.

Primeiro lugar? Madredeus, com "Um Amor Infinito".

Segundo lugar? Da Weasel, com "Re-Definições".

Terceiro lugar? Xutos & Pontapés, com "O Mundo ao Contrário".

Será, eventualmente, uma coincidência, até mesmo irrepetível. Mas, por uma vez, é simpático pensar que há música em português — e não das piores — a vender mais que essas pindéricas da Anastacia/Shakira/Alanis etc e o vómito dos Evanescence.