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31 de agosto de 2004

POLAROID: MARGINAL #4 (ALGÉS-BELÉM)

É, só, um daqueles momentos em que tudo se conjuga, sabe-se lá como: a cassete começa a tocar a versão majestosa dos Sétima Legião para "Longa Se Torna a Espera", dos Xutos & Pontapés, quando passo pela estação dos comboios de Algés e o comboio que se dirige para Lisboa arranca ao mesmo tempo, lentamente em direcção à curva por baixo do viaduto, e eu me elevo no viaduto ao mesmo tempo que o comboio o atravessa e a canção se eleva no refrão, com o sol a pôr-se por trás de mim. Há qualquer coisa na linha recta de um comboio que me fascina, no percurso perfeitamente definido e dirigido que ele faz mas que transporta consigo uma qualquer promessa de aventura; um aroma qualquer indefinível de romantismo ancestral e antiquado no seu movimento: um comboio sabe sempre para onde vai.

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #9

Vil.

(OK, OK, esta é um bocado batota. Mas temos de admitir que não é realmente um adjectivo que se ouça todos os dias)

RELAX

Curiosa a peça da Economist desta semana sobre as implicações profissionais do stress — sobretudo por ir buscar exemplos de que o stress já existiria desde o século XIX (sob a designação "neurastenia") e que ele se manifesta muito mais em momentos de dúvida, de mudança, de exigência, do que devido a excesso de trabalho. E se o stress não fosse uma doença do foro laboral mas apenas um mal estar, não tanto na sua própria pele mas numa pele que se quer à viva força ter ou que os outros querem à viva força que se tenha?

30 de agosto de 2004

PAREM AS MÁQUINAS

Tenho a garganta inflamada. Argh.

Isto quer dizer que estou constipado, que vou andar insuportável o dia todo e que daqui por 24 horas vou começar a espirrar e a pingar do nariz. Detesto estar constipado.

29 de agosto de 2004

PEQUENO MOMENTO DE TERNURA ORIENTAL

...há pouco mais de uma hora, na cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos (é verdade, não vi a abertura mas vi parte do encerramento). Em cima de um balão chinês, uma menina com um balão diz ou canta qq coisa e acena a despedir-se, tremendo logo em seguida quando fogo de artifício estoira à sua volta mas recuperando a compostura logo de seguida. A realização corta para plano de uma chinesa com um tambor e duas baquetas no piso do estádio, erguendo os braços, com um sorriso alegre, ao mesmo tempo cansado do esforço e entusiasmado por estar ali, esperançoso no que aí virá.

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #8

Bardajona.

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #7

Homúnculo.

(e, a propósito, isto parece estar a começar a espalhar-se; o L já entrou no jogo)

AI PORTUGAL, PORTUGAL

Esta questão dos irritantes é importante porque Portugal, como um todo, irrita-me.

Irrita-me por ser um país onde o governo arranja desculpas mal amanhadas para impedir a entrada do Barco do Aborto (e Isabel Meireles dizia, hoje — aliás ontem sábado — de manhã, na TSF, que era uma decisão que abria uma caixinha de Pandora em termos de legislação europeia, muito embora a reportagem da RTP-1 no Telejornal deixasse o comentário da especialista em assuntos europeus meio ambíguo). Irrita-me por ser um país onde o PCP põe a figura caricatural de Odete Santos a comentar o assunto — respeito a senhora, mas acho difícil levar a sério uma deputada que é actriz nas horas vagas. Irrita-me por ser um país onde há assessores de ministros a ganharem num mês o que outros ganham em quatro por não fazerem realmente nada de importante, e onde senhoras idosas pagam 30 euros de renda por um quinto andar sem elevador e, por só pagarem 30 euros, não pensam sequer em exigir que o senhorio faça as obras que lhe garantiriam uma qualidade mínima de vida. Irrita-me por ser um país onde se fala muito e se resmunga ainda mais mas, depois, se prefere devorar os jornais que publicam com grandes parangonas os esgotamentos do Zé Maria e o casamento da Fernanda Serrano com o Pedro Miguel Ramos, ou erguer a herói Francis Obikwelu, ou devotar espaço de informação às últimas vicissitudes futebolísticas. E, no interim, Portugal parece escorregar alegremente para um retorno a uma sociedade do antigamente onde a divisão não é em classes altas, médias e baixas mas apenas altas e baixas — porque as médias estão cada vez mais baixas e as altas cada vez mais altas.

28 de agosto de 2004

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #16

O meu bom amigo Luís Guerra propôs no Forum Sons um muito hilariante tópico sob o genérico Ódios Incondicionais Avulsos. Sob a égide dos pequenos irritantes quotidianos, gostaria de propôr mais um: senhores de meia idade ou idosos que se recusam terminantemente a atravessar nas passadeiras ou nos sinais, preferindo andar pelo meio da rua como se estivessem no passeio, ou que atravessam na passadeira quando o sinal está aberto para os carros, e ainda descompõem os condutores por não pararem para suas altezas atravessarem a rua (estou à vontade para mandar vir porque, enquanto peão, respeito escrupulosamente os sinais, excepto se a estrada estiver obviamente vazia de carros, e não uso a estrada como passeio público). Ainda há pouco, na rua dos meus pais, com os passeios livres, uma família inteira, com um bebé num carrinho, descia a rua pelo meio da estrada e nem se desviou para o trânsito passar.

Há coisas que eu não compreendo mesmo.

COITADO DO JORGE

É verdade que o DNA já teve melhores dias (e é, claramente, ainda mais verdade que o próprio Diário de Notícias já não é o que era). É verdade que há algo nas entrevistas de Anabela Mota Ribeiro que me confunde (será o tom aspiracional, desesperadamente precioso, que elas manifestam, de alguém que quer ir mais longe do que aquilo que pode?). Mas, ontem, a entrevista de Jorge Silva Melo é uma daquelas pérolas que nos obrigam a pensar nas coisas, de uma serenidade delicadamente magoada, de uma solidão orgulhosa mas desencantadamente assumida, de uma tranquilidade inquieta. E, por uma vez, o essencial é logo dito no início. Magnificamente.

É uma daquelas hesitações que tenho sempre: porque é que vim parar a esta minha vida?, que escolhas fui fazendo?, não terei falhado as escolhas principais? Quando fundei a Cornucópia com o Luís Miguel e desisti de trabalhar no cinema, terei feito a escolha certa? (...) Essa vida que não vivi é a vida que me preocupa (...).

Tudo o resto vem daqui. E é raro uma conversa conseguir articular com tamanha lucidez o tanto (e, paradoxalmente, tão pouco) que uma vida é e pode ser.

LE NOUVEL OBSERVATEUR

Gosto de observar. Durante muito tempo não fiz mais nada. A pergunta: como transpôr a frieza desse exterior para a urgência da acção?

A AVE RARA

Anoitecer em Paço d'Arcos — e, de súbito, alguém repara que uma arara (ou será um papagaio?) se procura agarrar ao parapeito quase inexistente das janelas do edifício, ora pelo bico curvo e pontiagudo, ora pela garra da pata direita. Mas não há na vertical do edifício parapeitos onde uma ave se possa empoleirar, apenas painéis de vidro, caixilhos de aço praticamente alinhados com a vertical dos materiais. Curioso é ver a aparente placidez externa do bicho, virando a cabeça pachorrentamente enquanto procura um poiso, sem trair a angústia que o deve estar a atravessar. Como chegou ali, não faço ideia. Nem como saíu.

25 de agosto de 2004

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #4

Emplastro.

POLAROID: PRÍNCIPE REAL

Um palmier recheado, intacto, depositado em cima de uma caixa de derivação eléctrica na rua da Escola Politécnica. Perfeitamente centrado.

Uma senhora de meia-idade, baixa, de cabelo louro, calças pretas justas abaixo do joelho, sandálias douradas de salto alto, atravessa a rua a correr com a carteira na mão, em direcção ao jardim.

Três polícias guardam uma fachada de um falso quiosque erigido na esquina com a rua do Século para efeitos de uma filmagem, menos de dois metros à frente do verdadeiro quiosque do Príncipe Real, enquanto a equipa se afadiga à sua volta.

24 de agosto de 2004

POLAROID: CONSULTÓRIOS

Consulta de rotina no médico de família: saio com a habitual prescrição semestral de análise e electrocardiograma e como de costume faço-os logo de manhãzinha, seguidos, no mesmo dia.

No laboratório de análises, observo os gestos perfeitamente automatizados da médica que vai tirar as análises, o modo como pegar numa seringa e numa agulha novas, marcar os tubos e as lamelas onde depois irá guardar a amostra, é encadeado com uma velocidade impensável para quem não domina a técnica. São escassos segundos de preparação até ela introduzir a agulha na pele, nem cinco minutos leva todo o processo. Penso que a médica fará aquilo dezenas de vezes ao dia, centenas à semana. Penso que, se calhar, é tão cansativo e maçador tirar análises o dia inteiro como estar a um computador a introduzir dados ou ao telefone a receber chamadas.

No consultório onde faço os meus electrocardiogramas, há uma nova enfermeira (curiosamente, também de óculos) ao serviço e, ao contrário da anterior, esta mete conversa; vê-me no interior do cotovelo o pequeno algodão preso com um penso rápido que a médica sempre coloca depois das análises, diz-me que "esteve a fazer análises..." e conta-me do seu horror por fazer análises enquanto me passa no peito e nos tornozelos o gel condutor onde vai prender os contactos da máquina. Respondo-lhe que houve uma altura em que era incapaz de ver enquanto me faziam análises. Penso na vez que me pediram uma análise à glicémia (é assim que se diz?), que obriga a duas tiragens de sangue entrecortadas por um pequeno-almoço com um galão com açúcar e um bolo com creme estupidamente doce — dessa vez pedi um duchesse com chantilly, o bolo mais enjoativo que consegui imaginar, e fiz um esforço titânico para o comer todo porque odeio o raio do bolo.

Enquanto ela liga a máquina, quase adormeço nos breves minutos que estou deitado na marquesa de cabedal negro coberta com um qualquer protector de papel translúcido, mas a dolência é interrompida pela enfermeira a perguntar-me se estou a respirar fundo e a pedir-me para respirar normalmente para não afectar o exame.

23 de agosto de 2004

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #3

Troglodita.

POLAROID: MARGINAL #3 (MADRUGADA)

O sol levanta-se a Leste, no retrovisor do carro, tintando o céu de um rosa alaranjado. Mas, como o tenho por trás, apenas vejo o azul em progressão a Oeste; a ponte 25 de Abril iluminada com os carros mantendo uma surpreendente igualdade de velocidade, como carrinhos numa pista eléctrica. O ar é fresco e limpo, aqui, onde a beira-rio encontra a beira-mar; há uma sensação de possibilidade, de esperança, de confiança.

21 de agosto de 2004

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #1

Lambisgóia.

OS TRÊS TÓPICOS RECORRENTES DAS CONVERSAS COM A MINHA MÃE

1: "O quê? Foste outra vez cortar o cabelo? Que horror! Quem te manda cortar o cabelo dessa maneira?"

2: "Ai filho, já se conhecem os dias."

3: "Ai filho, já é noite. Olha, estive a ver uns álbuns de fotografias, tu com 12 anos..."

19 de agosto de 2004

O MEU SONHO É CHEGAR À MINHA TERRA DE CAMISOLA AMARELA #2

Sérgio Paulinho regressou hoje de Atenas com a prata olímpica e foi recebido efusivamente pela população de Manique, o subúrbio de Cascais onde cresceu. Assim se prova que Cascais não é exclusivamente uma terra de tios e de tias.

Sérgio Paulinho parecia absolutamente banzado, como se não percebesse muito bem o que lhe estava a acontecer ou porquê a ele. E, de facto, também não percebo porque é que todos os vizinhos, até os que costumavam resmungar com as brincadeiras do ciclista em rapaz, querem agora ser amigos dele.

Espero que isso, e o rumor da US Postal, não ponham a cabeça do rapaz às voltas. Não queremos uma repetição do triste episódio do Zé Maria, que, quando recuperar a sanidade, há-de se perguntar porque carga d'água alguma vez teve a triste ideia de concorrer ao Big Brother.

POLAROID: SALA DE ESPERA

Espero a minha vez no consultório do médico. Quando entro na sala de espera, está a saír um casal idoso, ela de vestido floral e mala ao ombro, ele de canadianas, que resmungam por causa do ar condicionado estar ligado mas, assim que saem, entram directamente para a consulta. Fico sozinho na sala com um outro senhor dos seus 50 anos, que tem um telemóvel suspenso do colete cru multi-usos que usa. Pergunto-lhe se é para o mesmo médico; diz-me que sim. Pergunto-lhe se sabe em que número vai; o casal que saiu é o número 6. Eu sou o 7 e ele o 10. Leio uma revista enquanto ele está ali sentado calado a olhar para o televisor sintonizado na RTP-1, onde duas pacóvias intermutáveis apresentam um talk-show para donas de casa e emigrantes onde está a ser entrevistado um moço alto, louro e espadaúdo que deve ser cantor ligeiro (daqueles que nunca ninguém sabe como se chama) e a cantora Alexandra (mais gorda do que me recordava dela).

Passados alguns minutos chega um outro senhor de meia idade, com uma pasta na mão. Senta-se na sala em silêncio depois de dar as boas tardes, enquanto o número 10 começa a passear pela sala. Alguns minutos mais tarde, inicia-se o diálogo da praxe e o recém-chegado diz que é o número 12; o último da consulta ou "o primeiro a contar do fim".

Passados mais alguns minutos — já ali estou há cerca de 20 minutos à espera de vez — os dois senhores começam a protestar por os doentes que estão em consulta nunca mais se despacharem. "Pois é, começam na conversa e depois ficam para ali a falar e esquecem-se de que há gente à espera". O número 10 chega até a ir até à porta do consultório e regressar, dizendo que "estão para ali a falar, ouvi a voz da senhora. Deve estar a contar a vidinha toda".

Passados mais alguns minutos, o casal sai, o senhor de canadianas à frente. Cansado da conversa de compadres, apresso-me a entrar no consultório.

18 de agosto de 2004

OS TEMPOS QUE CORREM

Um dia acordamos e olhamos para as coisas que nos rodeiam de outra maneira, e quase não reconhecemos o que ali está. No outro dia, quando fui jantar a casa dos meus pais, olhei para o bairro onde cresci e dei por mim a estranhar muitas das lojas com as quais cresci já lá não estarem. Como a loja dos 300 que, depois de várias encarnações diferentes, veio substituir a velha Grande Feira do Disco, na rua Forno do Tijolo, que era dirigida pelo letrista de Marco Paulo e que acabou, ingloriamente, por encerrar as portas no final dos anos 80 (ou princípio dos 90?). Muito disco em promoção lá comprei eu entre 1984 e 1988, ainda do vinil que agora puxei finalmente para o escritório enquanto não arranjo um gira-discos que funcione.

Mas a Grande Feira do Disco já lá não está há quase dez anos e só agora é que a notícia me bateu. Como, ontem, a passar pela 5 de Outubro, ver que o Nimas já não tem aquele "alpendre" (que, no fundo, era uma caixa de luz) que me habituei a ver, substituido por uma placa modernaça mas sem o mínimo cachet.

Não estou a ser velho do Restelo — duvido que a Grande Feira do Disco ainda tivesse viabilidade nos nossos dias, tal como estava. Mas, por vezes, há coisas em que não vale a pena mexer; como, por exemplo, as sistemáticas mudanças de logotipo que algumas marcas de discos foram fazendo ao longo dos anos para finalmente admitirem que o logotipo original, muitas vezes dos anos 50, é que era o bom (não é caso único, mas assim de repente lembro-me da RCA. E da Epic. E da Mercury). Porque se percebe quando o design se faz a pensar numa vida inteira e não no que está a dar agora.

(com desculpas ao Miguel Vale de Almeida por lhe ter "usurpado" o nome do blog para este post)

16 de agosto de 2004

POLAROID: MARGINAL #2

Sentido Cascais-Lisboa, pouco depois das seis e meia da tarde — com nesgas de céu azul a intrometerem-se por entre as nuvens que emolduram o céu, a ponte 25 de Abril ao longe contra um fundo de algodão branco e cinzento. E, a acompanhar a linha da costa, uma nuvem de nevoeiro suspensa, em declive suave, sobre o acesso à auto-estrada na zona da Cruz Quebrada/Estádio Nacional, como uma tira de algodão doce que acompanhasse o recorte da paisagem.

15 de agosto de 2004

GAIVOTAS

Está muito vento nas docas de Belém, mas é um vento quente e seco. Sento-me no Op Art a tomar um café e uma água sob o sol, a olhar para o rio a escassos metros da esplanada, a água batida da maré cheia a fazer vagas curtas e incessantes nas quais as gaivotas mergulham subitamente em busca de comida para se erguerem com a mesma velocidade e pairarem a poucos metros da superfície, batendo as asas sem que se mexam um único milímetro. Em movimento e contudo sem sairem do mesmo sítio, enquanto o vento continua a rugir à volta delas.

14 de agosto de 2004

O MEU SONHO É CHEGAR À MINHA TERRA DE CAMISOLA AMARELA

Em vez disso, tivemos uma prata olímpica. Menos mal. Explorem-na ao máximo porque, se se mantiver o padrão, não vamos ter muitas mais medalhas.

É TERÇA-FEIRA (APESAR DE SER SÁBADO)

Há largos meses que ja não vinha à Feira da Ladra. Já é tarde para os padrões do mercado — a longa rua de entrada está vazia de feirantes, há muitos espaços vazios de gente que já foi embora, fechou para almoço, não está (será que estes feirantes também tiram férias em Agosto?). Numa mesma banca improvisada podemos ver máquinas fotográficas, insígnias militares, roupas que já não servem a ninguém, gira-discos ou gravadores de cassettes de modelos antigos, livros e revistas amarelecidos pelo tempo, bibelots, discos.

Pergunto-me sobre a proveniência destes objectos perdidos e achados, descartados ou esquecidos, romances que talvez nunca tenham sido lidos, livros práticos que o tempo tornou irremediavelmente obsoletos, camisas e calças de cortes e cores que provavelmente nunca mais voltarão à moda. Olho para quem está atrás das bancas e não consigo tirar um azimute — à imagem da frequênbcia, a conjugação habitual de turistas em busca do pitoresco local, emigrantes em busca de roupas baratas ou utensílios em segunda mão que lhes são vedados em primeira mão pelo preço, coleccionadores que buscam raridades a preço de pechincha, transeuntes que gostam de passear por entre a esquizofrenia de bric-à-brac que ali partilha espaço com bancas temáticas de moedas, discos, livros, calçado, artigos militares, ferragens, roupas.

Não consigo impedir-me de pensar que muita dessa esquizofrenia corresponde ao recheio de vidas que o tempo, a doença, a morte esvaziaram. Pergunto-me se os nossos livros, os nossos discos, os nossos bibelots também acabarão na Feira da Ladra, levados por algum descendente com esperanças de poder ganhar uns trocos com as velharias poeirentas que já ninguém quer na família, irrelevantes porque obsoletas. E, contudo, por vezes esse pó tem uma patine que lhe dá consistência e peso; houve gente para quem aquele objecto significou alguma coisa.

A Feira da Ladra é um enorme armazém de passados à espera de serem reimaginados.

13 de agosto de 2004

POLAROID MARGINAL

Gosto de subir o viaduto da avenida da Índia, junto ao monumento aos Combatentes; gosto do jogo de movimentos entre os carros que percorrem a estrada, que descem a rampa e os comboios que passam por baixo do viaduto, dividindo as faixas de rodagem. Estar no topo do viaduto e apanhar o relance do dinamismo dos carros e dos comboios em movimento lembra-me daqueles livros juvenis feitos por ilustradores ingleses que mostravam o funcionamento das máquinas ou dos edifícios em cortes diagonais que faziam as delícias da minha infância e adolescência. Só que em imagem real, a cores e ao vivo. Gosto destas vistas panorâmicas de cima. Mas não demasiado de cima.

12 de agosto de 2004

CONSTATAÇÃO AZAMBUADA

Afinal, não me tinha esquecido do que era ter horários de trabalho. Nem do que era trabalhar a sério.

Esqueci-me foi da força centrífuga que as coisas que gosto, mesmo, de fazer impõem a tudo o que me rodeia. E da força centrífuga adicional que eu lhes dou quase sem dar por isso.

QUATRO LIVROS PARA FÉRIAS #2: YOU CAN GO HOME AGAIN

Termino "O Cemitério dos Barcos sem Nome", de Arturo Pérez-Reverte. O que aqui se encontra é, pura e simplesmente, uma carta de amor às séries B de aventuras, aos filmes negros, às mulheres fatais — e que espantosa mulher fatal ele criou em Tánger Soto, a historiadora obcecada por um naufrágio misterioso, e que fantástico herói de romance negro em Manuel Coy, o marinheiro sem barco seduzido pela historiadora mais do que pela sua história. No fundo, o marinheiro sonhador que busca uma ilusão e a mulher fatal que parece fria e intocável têm afinal muito em comum, ambos procuram recuperar um qualquer paraíso perdido nas páginas de um livro que leram em crianças. Esta é, afinal, uma aventura proustiana, buscando algo que já não existe e talvez nunca tenha existido.

É um grande romance romântico, onde se persegue de modo a um tempo clássico e moderno, sábio e ingénuo, uma inocência narrativa já há muito perdida; onde se recuperam fórmulas que a contemporaneidade literária e narrativa tornou fora de moda. Pérez-Reverte reivindica estar fora de moda, quer recuperar o charme pioneiro das narrativas iniciáticas do romance de aventuras; mas fá-lo introduzindo sinais (igualmente fora de moda) do desencanto e da lucidez magoada do noir. Este "Cemitério" é um romance de aventuras consciente do seu estatuto singular, fora de tempo, e não hesita em transformar essa singularidade num ponto a seu favor; essa consciência de ser uma criança tardia, desajustada no mundo que o rodeia, em vez de sublinhar a sua diferença vem apenas colocá-lo na linhagem dos grandes romances sobre o mar, ergue-o a digno e nobre herdeiro de um Conrad.

À imagem do seu herói, "O Cemitério dos Barcos sem Nome" é um romance que quer acreditar ainda ser possível um regresso a um romantismo pré-aldeia global; essa crença dá-lhe cartas de nobreza e alforria dignas dos grandes. E toda a ironia está em que, precisamente por ser impossível, Arturo Pérez-Reverte consegue-o. Não lia nenhum romance que mexesse tanto comigo há anos. A sério. You can go home again, after all.

com um agradecimento ao Elvis — e, não sei porquê, Alexandre, acho que ias gostar de o ler; e tu também, 1poucomais, embora por outras razões

10 de agosto de 2004

RECADO PARA O JC

Tenho saudades das nossas conversas de sábado à tarde. Gostava de as voltar a ter. Um sábado destes.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOSSO CANTINHO À BEIRA-MAR PLANTADO

Por vezes — e são mais do que seria correcto — não gosto de Portugal. Não gosto de viver num país onde estou cansado de ouvir promessas para mudar coisas que depois nunca mudam, onde (como dizia o poeta Godinho) tudo muda para que tudo fique igual, onde as pessoas estão mais interessadas em erguerem-se a si próprias do que a erguer coisas com futuro, onde se prefer ouvir os bajuladores que bajulam em vez das vozes lúcidas que vêem as coisas como elas são (mas verão realmente?). Por vezes, olho para este cantinho onde vivo; percorro a Marginal e vejo o mar a bater na praia de Santo Amaro, o comboio a saír do túnel quando começo a descer na curva que leva aos semáforos da Cruz Quebrada, e pergunto-me como é possível que Portugal tenha sido bafejado por sítios tão bonitos habitados por gente tão baixa, que diz (como hoje ouvi a uma senhora numa reportagem sobre atendimento demorado nas repartições de finanças de Bragança) que se está hoje pior do que no tempo do Salazar; e depois mudo o canal e vejo figuras públicas (Ferreira do Amaral, Mário Tomé, Carvalho da Silva) a recordarem episódios do seu tempo de guerra colonial, emocionados, com uma dor inexplicável a transparecer nas suas palavras. E pergunto-me como é possível. E penso um pouco e depois deixo de me perguntar; porque não vale a pena. Fica só uma tristeza funda, surda, cá dentro; um atavismo resignado de saber que há coisas que, por mais que se queira, por mais que se tente, não mudam.

Só nos podemos mudar a nós próprios, cada um de nós por si. Os outros não são — não podem ser — problema nosso; já é tão difícil mudarmo-nos a nós que não é certo que haja energias para o resto.

9 de agosto de 2004

LOGBOOK #16/17: NO REINO DO PEIXE-PEDRA

Portimão: Castelo de Neptuno, quinta-feira 29 de Julho, 11h00: 14m, 55min, 16º C
Portimão: Pedra dos Caneiros, quinta-feira 29 de Julho, 13h00: 9m, 60min, 16º C


Ao contrário do que eu pensava, mergulhar no Algarve não apresenta absolutamente nenhuma diferença em relação a mergulhar em Sesimbra. A temperatura da água é exactamente a mesma (e eu com medo de que o meu fato de 7mm fosse demasiado quente!), o tipo de água e de visibilidade idem aspas: a água tem aquele tom verde turquesa opaco cheio de suspensão dada pela estação das algas.

Marquei saida com Stefan Fend, um instrutor alemão radicado em Portugal com um centro no Carvoeiro - ou melhor, na Quinta do Paraíso, um dos empreendimentos turístico-habitacionais circundantes de ar vagamente confidencial. Apesar da proximidade do centro, a saída, de barco, faz-se da Marina de Portimão, com direito a transporte de equipamento em carrinha própria, a cerca de 20-25 minutos de viagem. Stefan não tem grande aspecto de alemão - deve ser do ar bronzeado e do corpo seco, quase sem carnes. Foi mergulhador militar na marinha alemã e está aqui instalado há doze anos, é igualmente mergulhador profissional e tem o centro aberto todo o ano. Conversamos durante o trajecto para Portimão e ele diz-me que o negócio não está grande coisa este ano, numa conbinação de crise económica e desvios para eventos como o Euro 2004. Daí que, em estação alta de Verão, só haja dois mergulhadores a sair nesta quinta-feira (para além de mim, François Moesen, um jovem belga com dois anos de experiência em águas frias que, apesar de estar à espera de água mais transparente e quente, diz que isto para ele parece a Polinésia).

O primeiro dos dois spots de mergulho, uma milha ao largo de Portimão, é o Castelo de Neptuno, uma rocha baixa entre os 8 e os 14 metros rodeada de vida. Muito peixe-pedra, um ou outro peixe-porco, o nudibrânquio casual e muitas anémonas - nem aqui as coisas diferem de Sesimbra. Cerca de 50 minutos de mergulho sempre a seguir as indicações de Felix, o divemaster também alemão. Depois de subirmos, com o mar de vaga curta e carneirinho, vento de Nordeste a criar ondulação, Stefan, que está a conduzir o barco de chapa de alumínio, muda-nos para o próximo spot antes de desempacotarmos as sandes. É a rocha dos Caneiros, em frente à praia do mesmo nome, um spot baixo com dez metros de máximo junto ao qual, enquanto comemos, um barco larga dois mergulhadores com os quais nunca nos cruzaremos. O spot é um percurso básico - dar a volta à larga rocha enquanto espreitamos para tudo o que é buraco, com cardumes a rodearem-na pachorrentamente e nudibrânquios por todo o lado, mas para quem esperava do Algarve algo de mais tropical e colorido a decepção impõe-se. François considera o mergulho "longo" - os 60 minutos são muito para quem está habituado a mergulhar fundo e pouco tempo, e não ficamos mais tempo porque estou a ficar com frio e vontade de aliviar a bexiga.

A esse propósito: alguém que me explique porque é que agora dei em escarrar debaixo de água.

8 de agosto de 2004

POLAROID: R. ALEXANDRE HERCULANO

Um Fiat Uno grená, modelo antigo, emite música hip-hop em altos berros. Está parado no semáforo que, na rua Alexandre Herculano proveniente da rua Conde Redondo, dá acesso à avenida da Liberdade. Ao som da música, o condutor faz o carro andar alguns centímetros e deixá-lo cair de novo para trás; no movimento quase de dança, aproxima-se perigosamente do pára-choques do carro da frente, um Opel Corsa último modelo. Ao perceber o que se passa, o condutor do Corsa, bastante afastado do semáforo, avança um pouco mais enquanto o condutor do Uno continua a mover o carro ao som da música. Quando o semáforo abre, o Corsa avança e passa para a faixa da direita o mais depressa possível enquanto o Uno acelera ruidosamente, com fumo a sair do escape.

7 de agosto de 2004

DISLEXIA VISUAL

Na barra em movimento do noticiário da hora do jantar da RTP-1, falava-se da lesão do futebolista do Benfica Pedro Mantorras, mas por alguma razão obscura e opaca eu li "tesão" em vez de "lesão". Experimentem agora reler todas as notícias sobre o infortunado jogador com esta troca de letras e perceberão o surrealismo anedótico mas revigorante que uma simples gralha pode de repente introduzir no quotidiano.

POLAROID: CCB

Um casal jovem com um filho ainda menino senta-se uma mesa à minha frente no self-service do CCB. Alguns minutos são necessários para sentar o menino e instalar as bandejas do almoço na mesa. Como seria de esperar, o menino não pára quieto enquanto os pais tentam almoçar descansadamente (sem sucesso) e dar-lhe o almoço a ele (com ainda menos sucesso). A certa altura, o miúdo ajoelha-se em cima da cadeira com o telemóvel do pai, os braços apoiados no recosto, e deixa-o cair no chão. As poucas tentativas de o fazer comer são infrutíferas. Acabam por deixá-lo levantar-se e ele começa imediatamente a correr de um lado para o outro da sala, que não está muito cheia, gritando muito alto, como se fosse um avião ou uma motocicleta em princípio de corrida. Pára junto aos pais; a mãe dá-lhe uma colher de sopa enquanto lhe diz "gasolina, Duarte". O miúdo retoma a correria. Mais tarde, um menino da mesma idade atravessa-se à frente dele enquanto sai para a esplanada e o miúdo grita-lhe enquanto faz pose de wrestler americano — ou de Hulk, não sei bem qual o mais adequado.

6 de agosto de 2004

A INTERMUTABILIDADE DOS TAMANHOS DE EMBALAGENS



Não percebo porque é que o consenso da comunidade crítica portuguesa caiu em cima de "Para Onde o Vento Sopra", de Tom Barman (em exibição no King, em Lisboa), e o corre a notas do género bola preta. (Kathleen, por favor, reconsidera. Não traias a confiança que deposito em ti.) Até dou de barato que eu gosto mais do filme do que ele merece. Mas aquilo que quase toda a gente vê como defeito nesta estreia na realização do cantor e compositor dos dEUS é precisamente aquilo que eu vejo como vantagem: o facto de ser um filme fluido, sem forma, espécie de corrida de estafetas que a meio caminho se descobre não ter verdadeiramente meta. É um filme que se constrói enquanto a projecção decorre, que nunca sabemos para onde nos leva realmente; que exige disponibilidade para ser descoberto. Que se desvenda aos poucos a partir de uma frase aparentemente banal ou desconexa.

Como: "Estar apaixonado é uma ameaça disfarçada de convite".

Ou: "Brincar com o futuro é uma forma de conformismo".

Ou ainda: "A crítica é para o artista o que a ornitologia é para a ave".

Ou ainda: "As pessoas da minha idade têm de citar filmes".

"Para Onde o Vento Sopra" é um dos poucos filmes que vi este ano que me agarrou logo à primeira e me deslumbrou sem eu estar à espera. Serei um iluminado ou apenas um iludido? Não me deixem nesta indecisão.

ADORO CROISSANTS

E, a propósito deste pequeno fait-divers, remeto os francófonos de entre vocês para a história do croissant.

MOLESKINE DO CARVOEIRO: POLAROID #5

quarta-feira

Dois adolescentes ingleses de tipo gandulo algarvio sentam-se na areia, sem toalha nem T-shirt. Apenas, num caso, uma bermuda azul longa, no outro uma bermuda de camuflado com um cinto de fantasia tipo militar, uma fita na testa, tatuagens pelo corpo todo, piercings à volta do umbigo, com uma lata de Guinness na mão que fica ali, vazia, quando partem para outras freguesias, engatar miúdas à beira-mar.

sexta-feira

Os mesmos putos ingleses do outro dia puxam pela língua de um nadador-salvador que lhes diz, em inglês passável, que é capaz de emborcar vinte canecas ou dez copos de vinho sem ficar bêbado. Depois, encontram um casal já conhecido com quem combinam uma noitada de shots e trocam dicas de tatuagens - afinal, o tatuado explica que as fizeram em Albufeira, com desconto de quantidade.

WEIRD SCENES INSIDE THE GOLDMINE

Os sonhos são uma coisa muito estranha. Quando estou muito cansado, não me costumo lembrar deles; apenas da sensação que eles deixam, de urgência ou angústia, apreensão ou receio. E é só desses que me recordo; são raros os "bons sonhos" que me ficam na memória. Como aquela vez em que - morando ainda em casa dos meus pais - acordei sobressaltado a meio da noite, com a janela de vidro fosco e a bandeira da porta a deixar ver o vermelho vivo de labaredas que não existiam a não ser na minha cabeça, como compreendi depois de ter semi-gritado enquanto me soerguia na cama e de ter acostumado os meus olhos ao que era apenas a ténue claridade do nascer do sol.

Não me recordo já do que sonhei hoje. Recordo que acordei às 7h40 com uma vaga sensação de apreensão e já não voltei a adormecer. Também é normal que isto me aconteça: quando acordo assim, acordo desperto e perdi o sono.

5 de agosto de 2004

QUATRO LIVROS PARA FÉRIAS #1: A VERDADE ESCONDIDA

Eram, de facto, quatro, mas só consegui ler dois e encetar o terceiro, não por falta de vontade mas porque já não leio com a velocidade devoradora de outros tempos; agora, prefiro saborear as palavras com descontracção. "A Caverna das Ideias", de José Carlos Somoza, psiquiatra cubana radicado em Espanha, é um policial metafísico que se desdobra em tratado filosófico e exercício de "mse en abîme". O primeiro, primordial e mais conseguido nível de leitura é uma investigação policial na Atenas da Antiguidade Clássica, onde o "decifrador de enigmas" Heracles Pontor investiga a misteriosa morte de um jovem da Academia de Platão, instigado pelo tutor do jovem. O texto vai sendo comentado em notas de rodapé por um tradutor sem nome que nele descobre marcas de uma fórmula literária conhecida por eidese — ocultação de imagens pelo meio de um texto literário com o fim de transmitir uma imagem ou uma ideia secreta que não tem necessariamente a ver com a narrativa central do livro.

A história policial é uma curiosa e perspicaz transposição para a Antiguidade Clássica dos lugares-comuns instaurados por Agatha Christie (ou achavam que a aliteração do nome Hercules Poirot era meramente casual). Subtilmente, Somoza constrói igualmente a história como uma sucessão de diálogos socráticos cujo fito é aqui distorcido — não tanto ampliar o conhecimento e iluminar a mente, antes criar um nevoeiro opaco que oculte a verdade, como em qualquer bom romance de mistério. Mas será que a verdade existe realmente?

O mérito de Somoza é navegar com destreza por entre os múltiplos níveis da narrativa sem que o conceito de "roman à clef" nem o engenho com que as varias estruturas são duplicadas nesses níveis chegue a macular o prazer básico da intriga policial. Mas a revelação final que esclarece as dúvidas da "mise en abîme" auto-referencial acaba por ser um pouco decepcionante, tanto mais que a solução é relativamente previsível; o subtexto filosófico parece sugerir um acrescento "a posteriori" para validar e emprestar à narrativa uma consistência intelectual que é na realidade desnecessária neste contexto.

QUanto à ideia de que o livro é uma entidade aberta e que é impossível fixar-lhe uma única definição... é assim que as coisas são. Está longe de ser uma descoberta estonteante, e Somoza não a explora de modo assim tão original. Mas "A Caverna das Ideias" é muito mais do que leitura descartável de Verão. Deve dar uma abada no "Código Da Vinci" (que, esclareça-se, não li).

4 de agosto de 2004

MOLESKINE DO CARVOEIRO: HIGHLIGHTS #2

quarta-feira

Sento-me numa das esplanadas do largo principal. A sombra aqui é muito agradável, mas também é verdade que o calor abrandou hoje. À minha esquerda acabam de se sentar duas inglesas com duas crianças — uma das quais, vestida de cor-de-rosa, me olha muito fixamente enquanto escrevo no caderno. Quase lhe pergunto se a mãe não a ensinou que era mal-educado olhar para as pessoas daquela maneira, mas não digo nada; já sei como estes ingleses têm a mania das educações.

"Re-Tratamento" dos Da Weasel ouve-se na aparelhagem do café e um dos empregados — pela frente, impecáveis de camisa e aventual bordeaux com monograma, pelas costas o avental deixa ver as pernas nuas por baixo de calções e as sandálias confortáveis — canta em voz alta o refrão.

Um caça militar sobrevoa a praia. Depois, passa uma avioneta que arrasta painéis publicitários.

Numa das casinhas caiadas de branco à entrada da vila, ainda há um daqueles painéis de azulejos à moda antiga, publicidade de época, a dizer "O Algarve é Schweppes". Não sei se o painel é mesmo de época, envelhecido pelo tempo, ou apenas uma reprodução moderna, mas a patine que dá é inevitável.

E ASSIM VAI A EDUCAÇÃO EM PORTUGAL

E assim se descobre (confirma?) que as raparigas são melhores alunas que os rapazes. O que, para quem conhece minimamente o sexo feminino, não é exactamente uma surpresa. Aliás, Arturo Pérez Reverte explica tudo no "Cemitério dos Barcos sem Nome", quando fala das mulheres que parecem transportar consigo séculos de intuição e de sabedoria acumulada... para o bem e para o mal. (E não, não estou a ser misógino.)

3 de agosto de 2004

MOLESKINE DO CARVOEIRO: POLAROID #4

quarta-feira

Há na praia três meninas — três irmãs? — que se comportam com o desembaraço do privilégio, de quem está (mal) habituado a ver os seus desejos cumpridos. O pai tem aspecto de ser gestor, de BMW e camisa de colarinho branco e gel no cabelo escorrdo e puxado para trás. A mãe usa um bikini verde às bolinhas e um panamá creme a tapar-lhe os cabelos louros; quando vai ao banho — como muitas mulheres portuguesas — não tira nunca o panamá e só se molha até aos ombros. As três filhas estão de bikinis iguais em cores diferentes de tonalidade fluorescente (azul, rosa, verde). Uma chama-se Filipa e as outras chamam-lhe Pipa. Embirram muito umas com as outras. Estão deitadas sobre as toalhas, viradas umas para as outras em triângulo, cantando melodias que não conheço mas que desconfio serem da novela da noite da TVI.

2 de agosto de 2004

MOLESKINE DO CARVOEIRO: POLAROID #3

segunda-feira

Assim que pouso a toalha na areia sou abordado por um inglês negro, alto e gordo, que me pergunta se falo a língua de um bando de crianças que corre à beira-mar, salpicando toda a gente à volta e atirando mãos-cheias de areia uns aos outros como pequenos vândalos. Olho para eles e respondo ao inglês que não vale a pena: com aquela idade eles não ligam nenhuma e de qualquer maneira depressa se cansarão da brincadeira. A esposa, inglesa tipica, branquíssima, parece concordar comigo, mas o inglês vai lá, irritado, e fala com eles. Eles páram com a brincadeira. Não percebi se eram ingleses ou não.

MOLESKINE DO CARVOEIRO: POLAROID #2

terça-feira

Um casal sentado à minha frente com dois filhos pequenos; ele chama-se Gonçalo, ela Soraia. O miúdo fala com um evidente sotaque do Norte que não se sente nos pais. A certa altura, a mãe não vê a filha; sobressaltada, chama-a, mas acaba por vê-la a brincar à beira-mar. Não passa muito tempo antes de ela voltar para cima, com uma lata de Fanta cheia de água do mar. Entretanto, o miúdo tanto deu cabo da cabeça ao pai para ir ao banho, quase fazendo beicinho, querendo levar a toda a força as braçadeiras e o colete de plástico com bolsas de ar que, a meio do banho, traz de novo à mãe por estar a magoá-lo. Saem da praia alguns minutos antes de mim mas, quando me dirijo para casa através da passadeira de madeira, a família inteira regressa à praia, o pai à frente, resmungando de mau modo qualquer coisa sobre estar farto das fitas do miúdo.

1 de agosto de 2004

E ASSIM VAI O JORNALISMO TELEVISIVO EM PORTUGAL

Durante a semana no Carvoeiro, segui com atenção os noticiários da SIC (não gosto do estilo TVI, e a RTP-1 apanhava-se com deficiências). Excelentes reportagens de Helena Figueiras, no noticiário da SIC, seguindo os fogos; mais à frente, no noticiário de segunda-feira (26), Frederico Roque de Pinho corta a palavra às palavras de circunstância do Secretário de Estado do Ministério da Administração Interna, presente na Arrábida, sem problemas.

Pena que, mais à frente na semana, Roque de Pinho tenha metido os pés pelas mãos a cobrir o incêndio do Algarve, levado pela emoção que já não desculpa as muletas que foi usando. Num directo caricato, entrevista um habitante de Barranco do Velho, muito angustiado, e um mirone que foi para ali passear de bicicleta; fala do "paraíso ecológico" que é a Serra do Caldeirão e do "bonito que é" a aldeia juntar-se toda na igreja para rezar como se a fé fosse a única coisa que pudesse afastar as chamas. Não nego a sinceridade das emoções do jornalista; mas é estranho como, ao ser transmitida, essa sinceridade ganha uma inesperada patine de desacerto, de desajuste.

Entretanto, ontem à noite a RTP-1 apresenta uma reportagem sobre o jovem de Cova da Muda que ficou sozinho a defender a aldeia do fogo; a SIC já o tinha feito na véspera, a reportagem soou a refugo para encher alinhamento. Hoje à noite, Daniela Santiago falou dos blogs de políticos pela rama, à beira de tratar essa entidade misteriosa que é a "blogosfera" como uma excentricidade ou uma bizarria; que pena não ter sido possível falar com os bloguistas...

TUDO EM FAMÍLIA

Acabo de assistir, antes do jantar, a uma pequena altercação telefónica entre o meu pai e o meu irmão mais velho.

E chego à conclusão de que, efectivamente, somos mesmo todos iguais, todos diferentes — mesmo no mau feitio.

MOLESKINE DO CARVOEIRO: POLAROID #1

domingo

Duas estrangeiras na praia, acompanhadas por dois estrangeiros. Mais tarde, percebo que elas são holandesas e falam entre si em holandês, mas eles são ingleses (flirt de férias?). Uma delas tem uma voz "de aguardente", como diria a minha mãe; um certo ar desleixado e rasca, misto de provocação ingénua e sensualidade banal; e, de cinco em cinco minutos, canta. O êxito romeno do momento (o tal "numa numa iei" que é insuportavelmente orelhudo), "When Doves Cry" de Prince, o que mais aparecer; não se cala, e entre canções ri-se com uma gargalhada rouca; Debra Winger sem a classe.

À beira-mar, famílias inteiras tomam banho na água de um azul-verde translúcido, manchada aqui e ali por tapetes de algas trazidos e levados pelo movimento das ondas, até o sol se começar a pôr a Oeste, escondendo-se por trás da falésia.

Uma página solta de um jornal inglês é arrastada pela brisa quente. Pouco depois, um chapéu de sol também, parando praticamente em cima de uma família que pacatamente goza o sol.

Um casal jovem chega e começa a procurar sítio para pousar o chapéu de sol, com os seus quatro filhos muito novinhos a travar-lhes a busca. Atrás de mim, três adolescentes magros e bronzeados afadigam-se a tentar encontrar a T-shirt de um e o telemóvel de outro que eles dizem terem sido roubados. Um trintão que não fez a barba, de pele branca e longos calções azuis, coxeia até à agua; está sózinho, tem um ar pensativo, tem uma tatuagem dos pára-quedistas no braço direito; cruza um outro homem, calvo e quarentão, que parece ter a mesma tatuagem no mesmo sítio. Um trintão pesado com um colar branco justo ao pescoço e ar de gigolo algarvio, de tanga vermelha que mal esconde um assinalável bojo, acompanha uma miúda com idade para ser filha ou, pelo menos, sua sobrinha.