Eram, de facto, quatro, mas só consegui ler dois e encetar o terceiro, não por falta de vontade mas porque já não leio com a velocidade devoradora de outros tempos; agora, prefiro saborear as palavras com descontracção. "A Caverna das Ideias", de José Carlos Somoza, psiquiatra cubana radicado em Espanha, é um policial metafísico que se desdobra em tratado filosófico e exercício de "mse en abîme". O primeiro, primordial e mais conseguido nível de leitura é uma investigação policial na Atenas da Antiguidade Clássica, onde o "decifrador de enigmas" Heracles Pontor investiga a misteriosa morte de um jovem da Academia de Platão, instigado pelo tutor do jovem. O texto vai sendo comentado em notas de rodapé por um tradutor sem nome que nele descobre marcas de uma fórmula literária conhecida por eidese — ocultação de imagens pelo meio de um texto literário com o fim de transmitir uma imagem ou uma ideia secreta que não tem necessariamente a ver com a narrativa central do livro.
A história policial é uma curiosa e perspicaz transposição para a Antiguidade Clássica dos lugares-comuns instaurados por Agatha Christie (ou achavam que a aliteração do nome Hercules Poirot era meramente casual). Subtilmente, Somoza constrói igualmente a história como uma sucessão de diálogos socráticos cujo fito é aqui distorcido — não tanto ampliar o conhecimento e iluminar a mente, antes criar um nevoeiro opaco que oculte a verdade, como em qualquer bom romance de mistério. Mas será que a verdade existe realmente?
O mérito de Somoza é navegar com destreza por entre os múltiplos níveis da narrativa sem que o conceito de "roman à clef" nem o engenho com que as varias estruturas são duplicadas nesses níveis chegue a macular o prazer básico da intriga policial. Mas a revelação final que esclarece as dúvidas da "mise en abîme" auto-referencial acaba por ser um pouco decepcionante, tanto mais que a solução é relativamente previsível; o subtexto filosófico parece sugerir um acrescento "a posteriori" para validar e emprestar à narrativa uma consistência intelectual que é na realidade desnecessária neste contexto.
QUanto à ideia de que o livro é uma entidade aberta e que é impossível fixar-lhe uma única definição... é assim que as coisas são. Está longe de ser uma descoberta estonteante, e Somoza não a explora de modo assim tão original. Mas "A Caverna das Ideias" é muito mais do que leitura descartável de Verão. Deve dar uma abada no "Código Da Vinci" (que, esclareça-se, não li).
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