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31 de maio de 2004

MOMENTO DE MÁ POESIA ADOLESCENTE

Acho que todos nós passamos por aquele momento da descoberta adolescente existencialista do eu que depois tentamos traduzir em poesia. Esse momento deu-me na faculdade; durante um período louco de quatro anos em que o único hedonismo era a minha acumulação de horas de aulas, um emprego part-time, as minhas primeiras colaborações jornalísticas e uma capacidade estúpida de ouvir e digerir música. Para o bem e para o mal, esses quatro anos moldaram muito de mim. Quanto à má poesia adolescente, correndo o risco de parecer David Fonseca, escrevi-a quase sempre em inglês, porque era a minha cadeira principal e naquela altura permitia-me outra flexibilidade que a rigidez latina do português não tinha. Algumas das coisas que escrevi não me parecem de todo mal hoje em dia, mas isso sou eu. Como acredito no complexo de culpa judaico-cristão e estou em modo Mel Gibson decidi-me a auto-flagelar-me colocando aqui um exemplo da minha má poesia adolescente em inglês. Sintam-se à vontade para vergastar nos comentários.

SUMMER THROUGH FALL

I look into this face
what do I see
a broader reflection
of all the faults in me

...what a price to pay for just being in love
for the first time in your life
you can’t tell what is to come
you can’t tell what is to happen

but you jump

and you fall

sometimes

and the hardest of it all
is when you’re awake through the fall

and you don’t know what to think
of all the hurt and the sorrow
that you see in that face
you thought you knew
so well
in the end
there is always something left for you to find out
for you to try out
for you to cry over

because it hurts all that much
when you know who the face is
and the face could be yours
and the fall could be yours

and the fall may be yours

if you jump.

(Outubro de 1989)

AINDA A PROPÓSITO DE QUEM FOI

(é incontornável, no fim-de-semana parece que não aconteceu outra coisa, é mentira, como se pôde ver pelas imagens assaz estimulantes do ministro Paulo Portas a fazer humor com o economista Sousa Franco e do primeiro-ministro Durão Barroso a inaugurar por esse país fora, mas nada disso tem importância face à Cidade do Rock, que, como todos sabemos, mais não é do que um parque simpático na zona oriental de Lisboa onde houve uns concertos e foi muita gente, e face à revelação estonteante de que o Ricardo Gross não gostou de "O Despertar da Mente", como já não havia gostado de filmes anteriores escritos por Charlie Kaufman, o que me faz desconfiar sinceramente de que ele goste de cinema, estou escandalizado)

Cada cavadela, cada minhoca — assistir às reportagens das televisões portuguesas sobre o Rock in Rio é absolutamente hilariante. Ainda não vi uma, em nenhum canal, que fugisse ao estereótipo ou à asneira de quem não sabe o que está a dizer. Exemplo: Rita Marrafa de Carvalho, ontem, em directo no noticiário da RTP-1, começa por dizer que estavam em palco os "Carlinhos Brown Jr.". Depois entrevista uma menina anafada de cabelo rosa e indumentária gótica que se dizia fã dos Evanescence e que apenas respondeu às perguntas imbecis da repórter com a palavra "sim" e com a expressão "My Immortal". Depois passa para os pais que dizem que "ela gosta muito de música, de qualquer música" (mas como é possível usar as expressões "Evanescence" e "música" na mesma frase? como aliás percebi quando, ao fim da noite, passei pela SIC Radical e vi um bocadinho do concerto do grupo, o suficiente para me dar pesadelos para o resto da noite, tendo também percebido que a menina anafada afinal não era só no cabelo e na indumentária que se parecia com a vocalista do grupo).

Curioso é ver a diferença de tratamento do festival — nas coberturas diárias do Diário de Notícias e do Público, por exemplo, mantém-se um distanciamento, uma recusa em embarcar no marketing eufórico que rodeou a ocasião, enquanto as televisões optam pela postura acrítica celebratória. Faz sentido, para quem pensa que informação é espectáculo...

30 de maio de 2004

POLAROID BELA VISTA

É sábado à tarde. A música começa, mas o écrã à esquerda do palco recusa-se a dar a imagem que devia; subdivide-se numa série de zonas perfeitamente geométricas, que alternam entre negro, branco, cor sólida ou grelhas de cor, fragmentos de imagem, como um screen-saver aleatório em afinação técnica. Fica assim algum tempo.

À minha frente, uma senhora de cabelo branco e T-shirt negra acena uma pequena bandeira portuguesa. O marido, de boné e camisa de ganga, está de pé à sua frente; chega um casal jovem que os beija (serão os dois filhos, só ela e ele o namorado, só ele e ela o namorado?). O rapaz traz um saco de papel da Throttleman e gel no cabelo. A senhora abre a mochila e começa a mostrar à rapariga todos brindes que já coleccionou desde que entrou no recinto: a bolsinha para os cartões do Millennium BCP, o saco-mochila de plástico amarelo da SIC, a tinta tricolor para a cara (será da BP? já me esqueci). Mais à frente, a senhora puxa de uma almofada bordada caseira e passa-a ao marido para ele se sentar na relva.

Ao seu lado, sentado nas barreiras que delimitam a zona de frente do palco e levam às torres de iluminação, está um senhor de meia-idade de pullover bege com um boné azul forte que tem três patas de urso brancas desenhadas e, de lado, a indicação "Ursus Vodka".

Por todo o lado há gente com o cabelo completamente ou parcialmente pintado de cor-de-rosa.

Por vezes, durante os concertos, os momentos mais calmos ou de silêncio são entrecortados pelo ruído das pessoas suspensas do slide, atravessando o recinto mesmo em frente ao palco principal. Estive quase a pensar em fazer a experiência quando vejo a moça que parou a uns metros da torre de chegada. Isso não impede que a fila continue a crescer e que, durante toda a noite, já muito para lá das três da manhã, continue a haver gente disposta a fazer a experiência.

O Parque de Bela Vista fica por baixo de uma das rotas de aproximação ao aeroporto. Por vezes, um avião surge baixo por trás do palco principal e sobrevoa o recinto. O efeito nocturno é lindíssimo, mas nunca conseguiu ser devidamente sincronizado com um momento igualmente emocionante em palco.

EU FUI

...e ainda estou de ressaca (maratona de concertos das seis da tarde até às três e meia da manhã + chegar a casa e ir escrever o texto = levantar no dia a seguir à uma da tarde com a sensação de que o mundo está vagamente ao contrário; e não, não bebi nada a não ser água, acho que uma 7Up e uma Pepsi).

Mas vi Peter Gabriel, e o Mestre não desiludiu (estava com uma amigdalite, mas não parecia nada). Senão, veja-se:

"Darkness"
"Red Rain"
"Secret World"
"Games Without Frontiers"
"Burn You Up Burn You Down"
"The Tower that Ate People"
"San Jacinto"
"Growing Up"
"Solsbury Hill"
"Sledgehammer"
"Signal to Noise"
1º encore
"In Your Eyes" (com Daby Touré)
2º encore
"Biko"

No resto, mais um festival de Verão, com a diferença (que não é assim tão significativa) de ser em Lisboa (já agora, aquilo de ter que trocar euros por rocks para ir comer é uma tanga, imagino a quantidade de dinheiro com que eles devem estar a ficar de pessoal que não gasta as senhas todas e depois se esquece de ir trocá-las outra vez, com a buba ou com a soneira ou com as duas juntas).

[modo cenas dos próximos capítulos] Relato breve no Blitz de terça. Polaroid mais logo.

29 de maio de 2004

EU VOU


...em trabalho.

Ontem não fui. Os Beatles são uma coisa, Paul McCartney outra diferente, e embora eu não partilhe da opinião radical do JB nem da defesa ardente do POVD, francamente, Paul McCartney, bá...

Já o mestre Peter, esse, meus caros, é mesmo imperdível. Mas se ele fizer o set da última tournée (confirmar no DVD "Growing Up Live") o povo vai-se queixar bastante...

28 de maio de 2004

HISTÓRIA E LÍNGUA PÁTRIA

O departamento de promoção de uma editora that shall remain nameless enviou-me esta tarde por e-mail este mimo de bem escrever o português:

Cowboy Junkies
One Soul Now

Data de Edição
31 de Maio

"One Soul Now", é o nono álbum de estúdio dos Cowboy Junkies, e reune a sabedoria, paixão e a maneira inconfundivel reunida durante os 20 anos de escrita, concertos, gravações e de vivência conjunta como banda .

Mas é a primeira vez que os Cowboy Junkies gravam inteiramente por sua conta dispensando um produtor e engenheiro exterior.

Desde o multi-platinado sucesso em 1988 com The Trinity Sessions - os Cowboy Junkies atrairam uma legião de fãs devotos.

One Soul Now foi pensado como um para o quarteto Michael (guitarra), Margo (voz), Peter Timmins (baterias) e Alan Anton (baixista).


Há muito que não me ria tanto com um press-release, mas não sei se o humor será a opção mais sensata perante um texto destes...

KATASTROFA!



A Wired também não achou grande piada a "O Dia Depois de Amanhã"; não foi só o Nuno (em absoluto, não percebi bem se a Sara achou piada ou não). Acho que é a melhor definição daquilo que me incomoda no filme de Roland Emmerich. Mas gosto muito do cartaz.

QUEM TEM OLHO ETC

O JB e o MacGuffin têm toda a razão (então o V. P. V., hoje, está com a farpa bem afiadinha). Mas importam-se que eu, para além desses que vocês citam, possa sugerir que também se deveria dar uma estátua a este? (Sobretudo quando não fala de futebol?)

UMA NOITE EM TÓQUIO

E não só. Aqui.

27 de maio de 2004

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #8: MIND THE GAP

Hoje tive que ir aos Olivais e decidi fazer o trajecto de metro, pelo "caminho mais longo" — mudando duas vezes de linha (Rato-Campo Grande, mudo para a linha verde Campo Grande-Alameda depois faço a vermelha até Olivais; é mais uma estação do que se fizesse o caminho no trajecto inverso, mas aí mudo de linha quatro vezes em vez de três — Rato-Marquês de Pombal, azul Marquês-Baixa Chiado, verde Baixa-Chiado-Alameda, depois vermelha até Olivais).

Desde que entrei na estação do Rato até sair nos Olivais, cronometrei 40 minutos de viagem. Lembrei-me das minhas primeiras viagens no metro de Londres — deslumbradas pela extensão da linha, pela venerável antiguidade de tudo aquilo, pela claríssima compreensão, a cada passo do trajecto, a cada corredor da estação, de onde estava e por onde devia ir para onde queria ir — e, depois, lembrei-me de há trinta anos atrás, quando o metro de Lisboa era uma única linha que saía de Alvalade e depois bifurcava na Rotunda (hoje Marquês de Pombal) para Sete-Rios (hoje Jardim Zoológico) ou Entre-Campos, consoante o destino que se iluminava no velho painel analógico.

Nota-se à distância a diferença arquitectónica entre as estações "novas" — aquelas que surgiram quando a linha original prolongou para Benfica e para o Campo Grande, mais claras, mais modernas, forradas a pedra — e as velhas, escuras, cinzentas, com a arquitectura em semi-círculos e abóbodas. As que ainda resistem assim — toda a linha verde do Intendente para cima — são hoje relíquias tristes e apagadas de uma era em que a arquitectura do metro era de um funcionalismo ascético (os bancos de madeira ripada, os nomes das estações em relevo branco sobre tábuas longas de cor bordeaux). Hoje, pelo contrário, há algo de opulentamente soviético (por analogia com o metro soviético) nas estações da linha vermelha, com os seus grandiosos cais, acessos e pés-direitos, os poços de escadas rolantes que parecem não acabar, as ornamentações geométricas. No equilíbrio entre ambas, criou-se uma outra entidade, um metro que flutua entre a minha memória e a realidade presente.

De repente, hoje, nos Olivais, percebi que este metro da Lisboa de hoje está muito mais próximo de Londres do que eu próprio achava.

VAMOS TODOS SER MAL EDUCADOS



Não é impunemente que se fazem duas obras-primas de seguida — depois de "Tudo Sobre a Minha Mãe" e "Fala com Ela", as possibilidades de uma terceira obra-prima em sequência diminuem exponencialmente. E, contudo, "Má Educação", de Pedro Almodóvar (estreia hoje), só por um tudo-nada não merece o epíteto — será o elenco, onde não há nenhuma interpretação de estarrecer como tinham nos anteriores Cecilia Roth, Marisa Paredes, Javier Cámara ou Darío Grandinetti? Será o tom de filme negro, menos imediato? O retorno às temáticas transgressoras da fase pré-"Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", agora com uma maturidade entretanto adquirida?

"Má Educação" vai dividir as águas, pelo menos a julgar pelas opiniões contrastantes que já auscultei. O novo filme de Pedro Almodóvar não é unânime. Ainda bem que não o é. Eu cá estou com o JB: é um filme sumptuoso, hiper-romântico, de uma construção precisa e calibrada, onde tudo não é senão fachada para mascarar a imensa dor de se ser quem é e de não se poder ser outra pessoa. É Douglas Sirk e John Huston, Howard Hawks e George Cukor no espaço de um mesmo filme. É, quase, a terceira obra-prima; é, certamente, dos grandes filmes de 2004.

26 de maio de 2004

SIM. E?...



Sinceramente, nao vejo o motivo para andar tudo tão histérico com o novo álbum de Morrissey. Desde quando é que alguém voltar à sua segunda melhor forma (e "You Are the Quarry" não é melhor que "Viva Hate") justifica o derramar dos encómios — alguns deles escritos por pessoas que muito prezo, estimo e considero — que tenho lido?

"How Soon Is Now". Isso, sim, era génio. Isso e as outras quase todas que o homem escreveu com Johnny Marr. "Viva Hate" passa bem. "Bona Drag" e "Kill Uncle" ainda se aceitam. Daí para a frente, francamente, nada me convenceu grandemente. "You Are the Quarry" é melhorzinho que as últimas coisas? É sim senhor. Isso não o torna numa obra-prima.

As letras, dizem-me vocês? Iá, pois, as letras são boas. Mas nunca o deixaram de ser. E não são as letras que se trauteiam, não é?

Se querem ouvir uma "ressurreição" que já não se esperava ouçam antes o disco novo dos Xutos & Pontapés. Não é nenhuma obra-prima (quer dizer, em rigor é um tudo nada melhor que o álbum do Morrissey), mas é o melhor Xutos em muito, muito tempo. Não que se perceba pelo single, que é a pior coisa do disco. O que também já é um clássico por cá.


TÁS NA BOA

Não estás nada, é tudo treta.

I'm on a high I'm on a high
there's nothing more to it
we are the sea and the sky
and the blue that runs through it, yeah

and there are some who say there are so many things I need
so I run or I fight and I crawl or I scream and I bleed
I bleed
I bleed

well it's a lie, it's a lie
don't you believe it
if you're fine then you're fine
it's all how you see it
oh, there never will be no conspiracy of happiness

I'm on a high, on a high
there's nothing more to it
I have the sun, it's a star
why should I refuse it

and there are so many reasons I could give you why I should be down
there's not enough money or time and my love you're not around
around
around

but it's a lie, it's a lie
don't you believe it
if you're fine then you're fine
it's all how you see it
oh, there never will be no conspiracy of happiness

you're alive, you're alive
how else could you hear me?
you are fine, you are fine
there's nothing worth fearing
'cause there never will be no conspiracy of happiness

I'm on a high, on a high
we are the sea and the sky
I'm on a high, on a high
I'm on a high

it's a lie, it's a lie
don't you believe it
'cause I've tried and I've tried
and I can't really see it
yeah, I'm trapped inside my conspiracy of happiness
said I was yours, you were mine
but I didn't really mean it
and I lied, and I lied
and I wish you hadn't seen it
'cause I'm trapped inside my conspiracy of happiness.


- Duncan Sheik, "On a High" (in "Daylight", Atlantic/Warner, 2002)

25 de maio de 2004

POLAROID METRO

Nove da manhã na estação do Rato: procuro comprar um bilhete de dez viagens mas três das quatro máquinas de bilhetes estão desactivadas, a quarta não aceita notas e a bilheteira está fechada, apesar de dois funcionários do metro estarem parados a olhar para a fila que se formou junto da única máquina que funciona. Ao ver que a máquina não aceita notas e não tenho moedas suficientes para o bilhete, dirijo-me aos funcionários e pergunto onde posso comprar um bilhete de dez viagens; um dos funcionários pergunta-me para onde vou, respondo-lhe Jardim Zoológico, e ele diz-me "então faça assim — entre por ali" (indica-me o canal que está sempre aberto), "e quando mudar no Marquês dirige-se ao meu colega e compra lá o seu bilhete que nós aqui não podemos vender". Agradeço a ajuda, chego à máquina, compro um bilhete simples e faço o meu percurso normalíssimo até ao Jardim Zoológico, onde, no regresso, compro, na máquina, sem problemas um bilhete de dez viagens.

Uma da tarde no trajecto de metro Jardim Zoológico-Marquês de Pombal: um homem senta-se no banco do lado oposto, de costas para o resto da carruagem, com um ar amuado. Ao longo do percurso vai resmungando coisas para si próprio; só a espaços o consigo perceber, "pontapé nas trombas é o que ela merecia" ou coisa do género; a estudante adolescente sentada à minha frente ri-se para si própria, a senhora sentada à frente do homem mostra-se incomodada. Levantamo-nos quase todos para sair no Marquês e, depois do comboio parar, só dou pelo homem a levantar-se e a virar-se para trás, alterado, aos gritos: "esteja calada sua filha da puta senão vou-lhe às trombas", frase dirigida a alguém que não percebi bem quem era. Nem eu nem quase toda a gente que também saiu no Marquês.

24 de maio de 2004

O CANTO E O GELO

E outra, porque também me apetece:

no seu olhar
um rosto a arder
no seu olhar
que eu não sei ver
tão cedo é tarde
o canto e o gelo
tão cedo parte
vem o degelo

e quando o frio passou
só me ficou o canto do meu medo
e quando o frio passou
só me ficou o encanto de um segredo

tão cedo é tarde
no seu olhar
tão cedo parte
fica o cantar
levou assim
o canto e o gelo
deixou em mim
a noite e o medo.


- Francisco Menezes para os Sétima Legião (in "A um Deus Desconhecido", Fundação Atlântica, 1984)

O CÍRCULO PERFEITO

Sem razão nenhuma. Só porque me apetece.

put you hair back
we get to leave
eleven gallows
on your sleeve
shallow figure
winner's paid
eleven shadows
way out of place

standing too soon
shoulders high in the room

pull your dress on
and stay real close
who might leave you
where I left off
a perfect circle of
acquaintances and friends
drink another
coin a phrase

heaven assumed
shoulders high in the room

try to win
and suit your needs
speak out sometimes
but try to win

standing too soon
shoulders high in the room


- Michael Stipe para os R. E. M. (in "Murmur", IRS, 1983)

23 de maio de 2004

PEQUENAS MEDITAÇÕES SOBRE A CAIXINHA QUE MUDOU O MUNDO

Sábado: o Telejornal da RTP-1 dedica os primeiros 25 minutos à boda real dos Príncipes da Astúrias. Por trás de todo aquele fausto cerimonial, não consigo evitar a pergunta: como raio é que Felipe e Letizia se estarão a sentir ali pelo meio? Abstraindo dos cargos, dos títulos nobiliárquicos, da encenação, do lado de voyeurismo cor-de-rosa, pergunto-me: o que é que Felipe de Borbón, o homem, e Letizia Ortiz, a mulher, sentirão realmente ao dizerem "sim" frente a milhões de espectadores em todo o mundo? Estarão mais preocupados com o amor que sentem um pelo outro (se é que o sentem) ou com a figura pública que estão ali a fazer?

Sábado: Fátima Campos Ferreira em Madrid tão mal vestida como Agatha Ruiz de la Prada o estava.

Sábado: Pedro Santana Lopes a discursar no congresso do PSD define a diferença mediática entre ele e o primeiro-ministro Durão Barroso: Santana Lopes sabe estar num pódio, tem um à-vontade público invejável, sabe o que está a dizer, fala de modo que todos entendem, sabe como convencer-nos do que está a dizer; Durão Barroso melhorou imenso, mas ainda parece pouco à vontade a discursar, o que diz parece ainda demasiado escrito, soa aqui um pouco a falso, a discurso preparado de antemão no qual nem sempre parece acreditar a cem por cento, soa ali a demasiado sôfrego que acreditem nele.

Domingo: Durão Barroso acusa a oposição e sobretudo o PCP de estar a fomentar as anunciadas greves das forças de segurança a tempo do Euro. Isso, e a reacção de Carlos Carvalhas, dariam uma boa anedota se não fosse o caso de todos eles terem dito aquilo como se estivessem a falar a sério, o que retira automaticamente toda a graça que poderia ter.

Domingo: Um simpático emigrante português é entrevistado pela RTP à porta do estádio de Gelsenkirchen onde vai decorrer o jogo do Porto na quarta-feira. Queixa-se de já não ter conseguido arranjar bilhete para assistir; só no mercado negro onde lhe pediam € 270.00, quantia que ele consideraria só pagar se fosse o Benfica a jogar. Até aos €120.00 ele ainda iria, porque acima de tudo é português e gostava de ver o Porto, mas acima disso só se fosse o Benfica.

22 de maio de 2004

FALASTE BEM, MEU FIEL COMPANHEIRO ÍNDIO (DIZ O JOVEM AO RABI)



Hoje, antes do jantar, apanhei a maior parte deste filme no canal Hollywood, eu e o meu pai: o Anel do Vingador Mascarado, os beijos a Evelyn Goorwitz por baixo dos pontões de Rockaway, a vendedora de cigarros que testemunha um crime e é poupada pela mãe do assassino mafioso, o namorado cobardolas da tia solteirona que foge por causa da "Guerra dos Mundos" de Orson Welles, um sem-número de episódios onde a vida pessoal se entrelaça irredutivelmente com os sons da rádio, na era em que ela era a verdadeira "caixa que mudou o mundo".

"Os Dias da Rádio" (1987) é o "Amarcord" de Woody Allen: um álbum de recordações sem verdadeiro fio condutor, filtrado pelo tempo que passou, contado ao sabor das memórias que vão e vêm, filmado com as cores quentes de uma infância feliz que já não volta mais, com o tom dourado das vivências que fizeram de nós quem somos. É um dos meus filmes preferidos de um realizador que tem andado mais arredio dos grandes filmes do que seria desejável.

Gostei muito de o rever hoje.

LOGBOOK #7: CONTRA A CORRENTE

Sesimbra: Baía da Armação, sábado 22 de Maio, 11h18: 10.2m, 62min, 16º C

Em boa democracia, o voto da maioria optou pela Baía da Armação, aliás Jardim das Gorgónias quando na sua vertente mais ocidental, próxima de Sesimbra, em detrimento da Pedra do Leão; o efeito prático é indiferente, ambos os sítios têm sempre muito que ver, como o crustáceo de assinalável tamanho (seria uma lagosta? uma santola? uma sapateira? manifesto a minha perplexidade identificativa) que se apressava por entre as rochas, a seis metros, já perto da linha costeira. A vantagem do Jardim é a maior zona de exploração, mesmo num dia de visibilidade inicialmente poeirenta, suspensão que se vai lentamente diluindo com o rolar da água.

Em quarteto com o mesmo grupo da semana passada, fazendo equipa com o Pedro enquanto o Miguel (a recuperar de um dente partido) acompanha o estreante Filipe em primeiro mergulho "oficial", fazemos algum esforço contra a corrente determinada que começa por vir de noroeste e, pelo final da imersão, já inverteu o rumo. O Jardim faz jus ao nome, as pedras que se erguem mais próximo da costa estão forradas de verde, pequenas algas suspensas que deixam ver pelo meio estrelas do mar laranja fluorescente, anémonas esbranquiçadas ou lilases, cardumes de pequenos peixes que passeiam calmamente ao sabor das ondas. A certa altura, aponto o foco da lanterna para um pequeno peixe malhado que fica ali, a olhar para mim, imóvel, durante alguns segundos.

O Pedro e eu acabamos por ser os últimos do grupo a subir, depois de uma hora de mergulho que ainda nos deixou bastante ar na garrafa (mais a ele do que a mim), interrompida pela tentativa de ajuda a uma acidentada dupla da qual um dos parceiros, que entretanto havia subido, havia deixado cair o cinto de chumbos, demasiado curto para poder ser devidamente ajustado. À saída, o céu mostrava-se encoberto, abafado, o proverbial azul luminoso substituido por um cinzento informe de curta duração.

21 de maio de 2004

MANIFESTAÇÃO DE SOLIDARIEDADE PARA COM OS EMPREGADOS DAS LOJAS DE CONVENIÊNCIA AO PÉ DE LICEUS

Hoje de manhã fui, como de costume, comprar os jornais de sexta-feira à minha loja de conveniência, que já vos disse que fica perto do liceu Pedro Nunes. O empregado pôs o CD do Público ao lado do jornal enquanto fazia a conta, e um adolescente daqueles que costumam encher a abarrotar a loja nos intervalos do liceu pegou no meu disco com um ar muito displicente e a dizer "o que é isto?".

Tirei-lhe imediatamente o disco das mãos e disse-lhe "geralmente pede-se licença para mexer nas coisas das outras pessoas", com a minha melhor voz de meter medo e sem sequer olhar para ele. O rapaz pediu desculpa, "não sabia que era seu, estava aqui em cima", perante os risinhos das colegas que faziam fila para comprar um chupa-chupa, um chocolate, um bollycao qualquer. O empregado apoiou-me, "por isso é que nós colocamos os papéis a dizer para não mexer nos objectos expostos".

Paguei com multibanco só para atrasar mais a fila de adolescentes com ar impossivelmente bronzeado e roupas da moda, enquanto o rapaz, convencido de que tinha graça, perguntava ao empregado, "olhe, desculpe, dá-me licença para tirar um guardanapo?".

"Agora vai passar o dia todo convencido que tem muita graça", disse eu ao empregado. (E o que aqueles empregados sofrem com os putos do Pedro Nunes. Já vi um dos responsáveis a enxotar, literalmente, um grupo bastante desordeiro e a proibi-los de entrar na loja.) Virei-me e fui-me embora, tendo que gritar aos outros para me deixarem passar. Atravessei a rua para ir tomar o pequeno-almoço ao café da frente e, à entrada, fui abalroado por outro adolescente que vinha a olhar para trás com um bolo na boca. "Vê se tens cuidado, porra!", gritei-lhe. Em vez de pedir desculpa, resmungou comigo, como se a culpa de ele me ter abalroado fosse minha.

O meu problema com os adolescentes do Pedro Nunes são vários: a arrogância pedante de quem acha que o mundo lhes deve tudo porque os paizinhos os habituaram mal desde miúdos, a pose de quem acha que tudo lhes está prometido, as roupas de marca, as correias penduradas ao pescoço com a chave ou o telemóvel, o aspecto de clique elitista, bem-posta, bem vestida, que se agrupa à volta de questões puramente supérfluas como ter o último modelo de telemóvel, vestir a marca da moda. E a absurda falta de educação que eles manifestam publicamente — porque ser bem-educado não é ser bom estudante nem apenas ter boas maneiras. E boa educação é exactamente aquilo que eu nunca vejo nos adolescentes que gritam uns para os outros, fazem um escarcéu, lêem os jornais em voz alta, pagam um chupa-chupa com multibanco, se aglomeram aos dez e aos quinze em volta da caixa, empurram e pisam as pessoas sem sequer pedirem desculpa. Comportam-se como crianças que já não são nem têm idade para ser.

Todos os dias olho para o futuro da nação quando passo na loja de conveniência e todos os dias fico convencido que a nação está perdida.

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #7: TUDO É BAGAGEM



Se fosse possível seleccionar aquilo que preferiríamos esquecer e "apagá-lo" da nossa memória como um ficheiro de computador, quereríamos fazê-lo?

"O Despertar da Mente", de Michel Gondry (estreou ontem em todo o país), é uma história de amor contada ao contrário, de trás para a frente, sobre a impossibilidade de deixar para trás aquilo que mais nos marcou, sobre a incapacidade de esquecer aqueles que mais nos tocaram. Tem mais um notável argumento quebra-cabeças de Charlie Kaufman, o argumentista de "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado". Tem Jim Carrey, Kate Winslet e Kirsten Dunst e só isso já chegaria. Tem, acima de tudo, um coração maior que o mundo que nos diz: a dor não existe isolada da alegria, a felicidade não existe sem o seu contraponto de tristeza, não podemos querer o mundo sem esperar pagar o preço do aluguer. Tudo o que vivemos é, agora, parte de nós e não podemos evitar transportá-lo connosco. E algumas coisas tocam-nos demasiado fundo para as querermos ou podermos esquecer.

"Lost in Translation", "O Grande Peixe", em breve "Má Educação", de Almodóvar, e agora "O Despertar da Mente" — que belo ano de grande cinema.

PS: o título português é idiota. Tanto mais idiota quanto a própria legendagem resolve, a certa altura, o problema de como traduzir o complicado título original americano - "Eternal Sunshine of the Spotless Mind". É uma citação de um poema. E mais não digo.

20 de maio de 2004

POLAROID GRAFFITI

Durão é boa pessoa

- escrito a tinta preta por baixo da campaínha da porta do Supremo Tribunal Administrativo, na rua de S. Pedro de Alcântara

19 de maio de 2004

POLAROID ECG

Entro na sala de pé direito alto para tirar o electrocardiograma; enquanto dispo o polo e me deito na marquesa, da sala ao lado vêm ruídos de discussão mais ou menos acalorada, que a operadora tenta disfarçar o melhor que pode com conversa de chacha, pedindo desculpa pela "reunião de serviço" que a inadequada insonorização faz passar.

É curioso como quase todos os consultórios médicos ou salas de exames ficam em casas antigas reaproveitadas que, depois, se deixam ir imperceptivelmente envelhecendo, ficando com o mesmo ar triste e velho, decadente, decrépito que teriam se não fossem consultórios médicos. Como uma loja que vai passando de moda e se transforma numa relíquia poeirenta e irrelevante. Contam-se pelos dedos os consultórios médicos modernos, arejados, luminosos que conheço.

18 de maio de 2004

É ISTO QUE OS POUCOS PORTUGUESES QUE AINDA COMPRAM DISCOS ANDAM A COMPRAR...

...segundo os dados recolhidos pela A. C. Nielsen para a Associação Fonográfica Portuguesa, divulgados há poucas horas:

1 - "Morangos com Açúcar" - banda-sonora original
2 - Diana Krall - "The Girl in the Other Room"
3 - Anastacia - "Anastacia"
4 - "Queridas Feras" - banda-sonora original
5 - Vários artistas - "Cidade FM"

Depois queixem-se.

POLÍCIAS E LADRÕES

No noticiário de domingo, já não me recordo exactamente em que canal (creio que terá sido na RTP-1), mostrou-se uma reportagem sobre um curso de protecção a individualidades VIP, com meia-dúzia de matulões de cabelo rapado a encenarem para benefício da câmara televisiva uma tentativa de atentado a uma individualidade.

Integrada no proverbial discurso securitário sobre a proximidade do Rock in Rio e do Euro 2004, a piada da reportagem esteve não tanto no lugar de destaque a que foi propulsionada pelo alinhamento do noticiário, nem no ar distintamente filme-de-acção-de-Hollywood feito em Ranholas que aquilo tinha; se existem empresas de segurança privada, acho muito bem que façam este tipo de cursos, afinal é para isso que lhes pagam e, nisto como no resto, a qualidade do serviço é que justifica o preço pago (embora isto de andar aí a fazer publicidade é que não está com nada).

Não, a piada da reportagem esteve na reacção dos meus pais, com a minha mãe a perguntar que fitas é que eles estavam para ali a fazer e o meu pai a responder que estavam a brincar aos polícias e ladrões.

HIPERCONDRIA

Não resisto a juntar-me àqueles que se mostram perfeitamente perplexos com o Dói-me, um blog alegadamente assinado por um hipocondríaco, perdão, um hipercondríaco e, desde ontem, também pela sua mãe-galinha, que linka para todos os blogs e mais um (entre os quais o meu).

Já a 1poucomais tinha manifestado a sua perturbação com o objecto. Nos comentários a esse post, o próprio autor do blog vem ardentemente defendê-lo como verídico. Pessoalmente, apenas posso dizer que, sobretudo depois da "crise" deste fim-de-semana, o Dói-me me parece cada vez mais ficcional, um espelho erguido a um certo modo de ser (não exclusivamente) português. Não porque não seja possível que alguém se exponha daquele modo terrivelmente nu na blogosfera (não o fazemos todos, mesmo que semi-escondidos?), nem porque a realidade não possa ser mais estranha do que a ficção. Apenas porque sinto ali um jogo muito claro com o voyeurismo encapotado de quem anda por aí a saltar de blog em blog, uma espécie de entrega assumida, de abandono aos quinze-minutos-de-fama versão internet.

E, a esse nível, o Dói-me tem tudo para se tornar numa sensação blogosférica, ao nível do infame (e entretanto desactivado) Pipi.

O MISTÉRIO DO FAROL DE NEVOEIRO DESAPARECIDO

Tudo começou há largas semanas. Quando, ao ligar o pisca do meu carro enquanto travava, o indicador do farol de nevoeiro se acendeu igualmente.

Não dei muita atenção ao caso. Afinal, o indicador vermelho da porta aberta também está sempre ligado desde que a minha violência a fechar a porta do condutor levou ao desaparecimento da peça de borracha que serve de sensor para indicar que a porta está aberta, com o resultado de que a luz do tejadilho tem de estar sempre desligada senão não se apaga quando deve.

Portanto, atribui o acender do indicador do farol de nevoeiro enquanto travo a um pequeno mau contacto eléctrico sem motivo para preocupações de maior.

Eis senão quando, um belo dia, ao dirigir-me para a viatura, reparo, com espanto: os dois faróis de nevoeiro haviam desaparecido!

Onde? Quando? Como? Porquê? Quem? As cinco perguntas básicas a que qualquer boa peça jornalística deve responder ficarão sem resposta. Mas nunca pensei que um farol de nevoeiro pudesse ser um objecto de valor roubável. Que os auto-rádios de cassette já não tenham saída eu ainda percebo. Mas um farol de nevoeiro?...

17 de maio de 2004

O METRO ELÁSTICO

Depois de os odivelenses se terem indignado por terem que pagar mais no bilhete de metro com a extensão da rede, é a vez dos amadorenses fazerem o mesmo, agora que a linha azul foi prolongada da Pontinha até à Amadora.

Sinceramente — e isto não é má vontade — não percebo bem: sempre foi mais ou menos unânime que os transportes públicos mudam de tarifa quando atravessam a zona limítrofe de Lisboa e entram nas zonas suburbanas. Ora, se ninguém contesta que Odivelas e Amadora são zonas suburbanas, porque é que contestam por a tarifa do metro ser mais cara? Será que, pela mesma bitola, os passes sociais também não deveriam ter distinções de preço? E os bilhetes de comboio das linhas suburbanas?

UM POUCO MAIS DE AZUL

Espero que a 1poucomais não leve a mal a usurpação do titulo... Mas apeteceu-me mexer com o visual do blog, como forma de marcar os seis meses de existência contínua que o roda livre já leva. E em vez de ir buscar um dos ready-mades que o Blogger oferece, para não perder a simplicidade e a comodidade deste formato, achei por bem dar-lhe apenas uma demão de pintura. Às vezes não é preciso mais para refrescar a coisa. E o azul calha bem com o dia lindo que está lá fora. (Não, não sou adepto do Porto. E a escolha do azul também não é uma provocação aos benfiquistas. É favor não ler aqui metáforas futebolísticas de espécie nenhuma.)

16 de maio de 2004

QUE SE LIXE A TAÇA

Às vezes, penso que todos estes fanatismos futebolísticos, estas pirraças que se geram entre lampiões, dragões, lagartos ou (insira aqui a alcunha popular do seu clube preferido), são algo de atávico, uma espécie de desculpa para, na idade adulta, podermos reencontrar a simplicidade impulsiva das brincadeiras de infância e adolescência. Porque as disputas mais ou menos amigáveis entre adeptos de clubes "rivais" soam quase sempre a guerrinhas infantis de crianças que brincam aos adultos, que demarcam território de modo quase primal. Talvez seja por isso normal — ou até significativo — que, chegados à idade adulta, reencontremos na afeição por um clube de futebol essa mesma paixão irracional, irrazoável, primitiva, teimosa, obstinada que tínhamos em miúdos...

Confesso: é algo que me passa ao lado.

O que já não me passa ao lado é que o meu pai seja o benfiquista mais contrário que alguma vez vi na vida: a única pessoa que passa a vida a injuriar os jogadores por não jogarem nada, e quando eles finalmente ganham alguma coisa é incapaz de a celebrar, pelo simples facto de que nenhuma das individualidades presentes no Jamor é do Benfica (e, por isso, está obviamente descontente com a vitória) e desejariam ardentemente a derrota do clube. Em vez de se regozijar, irrita-se com o facto do Presidente Sampaio ser do Sporting e estar ali a entregar a Taça.

O meu pai preocupa-se mais com o que os outros acham do que com o que ele sente e com o que ele acha. Ao ponto de cometer as maiores casmurrices só para não "perder a face". O meu pai é um homem orgulhoso que não vê que, aos 75 anos, com um pacemaker no coração, recém-convalescente de uma operação à próstata, já de nada lhe serve ser orgulhoso.

O meu pai é uma criança grande que se recusa a admiti-lo perante si próprio e perante os outros. E isso dói-me.

E nenhuma taça, nenhum jogo, nenhuma vitória tem a mínima importância ao pé disso.

15 de maio de 2004

LOST IN TRANSLATION



Este disco é transcendente: pura imponderabilidade no azul entre o mar e o céu, no limbo entre a noite e o dia, entre o passado e o futuro, entre a cidade e o campo. Este disco não se explica, não se define, não se descreve; entre Nova Iorque e o fundo da Amazónia, entre o cosmopolitismo da Europa e as cirandas nordestinas, "Horse and Fish" quer-se mesmo é perdido na tradução, habitante assumido daquela Zona (Tarkovskiana?) alheia a fronteiras e nacionalidades, a propriedades e categorizações, onde as leis normais deixam de fazer sentido, onde tudo se esbate e reconfigura quase sem darmos por isso (nem falta uma noite em Tokyo sob o efeito do jet lag, onde eu vi a lua virando o sol). Sem tempo nem espaço. Mágico. Perfeito.

LOGBOOK #6: A LEI DA COMPENSAÇÃO

Sesimbra: Baía da Armação, sábado 15 de Maio, 11h04: 16.7m, 45min, 14º C

Deve ter sido para dias assim que se inventou o mergulho: uma brisa fresca q.b. para compensar o sol quente e o céu azul irradiante que promete Verão; um mar turquesa iridiscente escondido, à ida, por baixo de ondinhas insistentes orladas a branco, tranquilo e liso à volta; uma nuvem branca ao longe, como o toque discreto para fazer sobressair a luz.

A fauna subaquática parece estar a acompanhar a felicidade indecifrável do dia — nas pedras que acompanham a progressiva subida da linha de costa, desde o deserto de areia que termina/começa aos 15 metros até às rochas que se erguem quase até à superfície, é um turbilhão de peixes de múltiplas espécies e tamanhos, com o castanho como tom predominante, perfeita camuflagem entre as pedras marmoreadas de erosões e incrustações, cobertas de anémonas, algas em explosão. Um polvo grande, azulado à luz natural coada pela água repleta de suspensão, passeia pachorrentamente à esquina de um rochedo; ali, um pequeno peixe (uma espécie de caboz, dir-me-ão mais tarde), de um forte laranja-avermelhado com uma cabeça azul-noite, brinca pelo meio de anémonas.

45 minutos assim compensam tudo: compensam a descida em falso a cinco metros durante o qual o José me perde de vista e decide despreocupadamente continuar o seu mergulho sózinho, ali à roda da pedra que marca a "entrada" da Baía, sem dar cavaco a ninguém; a minha emersão para ver se o vejo e, não o vendo, consequente junção ao quarteto de amigos que seguia no barco e ainda não tinha descido; a progressiva diminuição do agora quinteto — o Miguel não compensa e retorna ao barco, o Jesuíno, em primeiro mergulho depois do curso, vê-se à rasca com o controle da flutuablidade e acaba por subir sem darmos por isso, o Fernando vai em busca do Jesuíno — ao duo de mim e do Pedro, em lenta e pacata progressão contra a corrente em direcção à costa.

45 minutos assim compensam os mergulhos mais difíceis, mais cansativos, mais frios, mais exigentes dos últimos meses. 45 minutos assim são uma recarga de baterias como não há outra. 45 minutos assim são some kind of wonderful, para citar o filme.

14 de maio de 2004

CANÇÃO PARA UMA GERAÇÃO FUTURA

Não sei porquê, acho que esta canção é uma boa definição de uma certa maneira de encarar o mundo. Ora confirmem lá:

wanna be the ruler of the galaxy
wanna be the king of the universe
let's meet and have a baby now!

wanna be the empress of fashion
wanna be the president of Moscow
let's meet and have a baby now!

la la la la la
la la la la la
la la la la la la la la la la

hey, I'm Fred, from New Jersey, I like collecting records and exploring the cave of the unknown!
hello, I'm Cindy, I'm a Pisces and I like chihuahuas and Chinese noodles!

wanna be first lady of infinity
wanna be the nicest guy on Earth
let's meet and have a baby now!

la la la la la
la la la la la
la la la la la la la la la la

now, now, now, now, now, now, now
la la la la la

hi, my name is Ricky and I'm a Pisces, I love computers and hot tamales
hey, I'm Kate and I am a Taurus, I love tomatoes and black cap chickadees
hey, my name is Keith and I'm a Scorpio from Athens in GA and I like to find the essence from within

wanna be the captain of the Enterprise
wanna be the king of the Zulus
let's meet and have a baby now!

wanna be the daughter of Dracula
wanna be the son of Frankenstein
let's meet and have a baby now!

wanna be mother, father
daughter, son, captain
wanna be ruler, king and empress


(The B-52's, "Song for a Future Generation")

A VIDA É UM ROMANCE

Belíssimas palavras de Rosa Montero, hoje, no DNa, a Carlos Vaz Marques:

Nós, seres humanos, somos sobretudo animais imaginativos, animais efabuladores. A história que fazemos das nossas vidas, a memória das nossas vidas, na realidade, está cheia de contos, está cheia de ficção. Isto pode demonstrar-se facilmente porque o que tu recordas hoje da tua infância não é o que recordarás dentro de vinte anos, por exemplo. Porque vamos transformando esse nosso conto. (...) A nossa memória, a nossa vida, são uma ficção. O ser humano é, em primeiro lugar, um narrador de si mesmo. É um romancista de si próprio.

A CULPA É SEMPRE DOS AVÓS (DISCUSS)

Há coisa de umas semanas, apanhei a meio da tarde na loja de conveniência um avô mal-disposto e ríspido, com pouca vontade de pactuar com o consumismo desenfreado da neta ainda menina, petulante e anafada, que queria uma raspadinha, uma pastilha elástica, um gelado, enfim, o habitual nesta geração de crianças condicionada para digerir quanto açúcar houver à frente.

Parece que a resistência do avô durou pouco tempo. Ontem, reencontrei-os — e, depois de ter pago um kinder-qualquer-coisa e um donut como lanche calórico da criancinha, cedeu à vontade da bolinha petulante de também comer um gelado, que se meteu num saco de plástico para quando a criancinha tivesse terminado o seu donut oleoso.

Li uma vez que a grande vantagem de se ser avô é poder anuir a tudo o que a criança pede sem sentimento de culpa, porque estão lá sempre os pais para os educarem como deve ser. Pode ser que seja verdade, mas essa desresponsabilização parece-me demasiado facilitista. E o avô da loja de conveniência pareceu-me demasiado displicente na cedência; não sou contra os mimos de vez em quando, mas as crianças não podem crescer convencidas que lhes cai tudo no colo, que isto é o da Joana. Isso aconteceu à geração que é agora teenager e os resultados estão à vista — como os teenagers de roupa surf de marca que, numa motoreta, gritavam aos condutores por quem passavam para os assustar.

13 de maio de 2004

OS OLHOS DA TIA DO CARRINHO DE BEBÉ

Estava eu hoje a subir as escadas do ginásio quando uma tia jovem (mas já com pelo menos três ou quatro filhos), de tez morena bronzeada, cabelo longo escorrido e olhos cristalinos, me pede para a ajudar a levar o carrinho de bebé até ao fundo das escadas. Sem responder, peguei na frente do carrinho enquanto descíamos as escadas acompanhados pelas outras crianças pequenas que eram seus filhos. Ela diz-me que ia levar o carrinho sozinha, mas quando me viu a subir com um ar tão atlético (vantagens das camisolas de rugby taparem o pneuzinho que não há maneira de se ir embora) preferiu pedir ajuda.

Ao chegarmos ao rés-do-chão o Paulo vem a sair do balneário. O Paulo é um dos instrutores de musculação do ginásio. Bom tipo, um bocado resmungão mas bom coração, com ar de Pedro Abrunhosa em mais baixo misto de sargento instrutor (o cabelo rapado tem desses efeitos), que apanhou o final da conversa com a senhora a agradecer-me efusivamente. E ficou a olhar para mim, como quem diz olha-me este tipo, ando eu aqui a tentar meter conversa com ela há não sei quanto tempo e este sem a conhecer de lado nenhum já conseguiu.

Mas o que ele me disse foi que a senhora tinha uns olhos lindos. E a única coisa de que me recordo da senhora, de facto, são os olhos claros e cristalinos.

PODER, AMBIÇÃO & OS MÚSCULOS DE BRAD PITT

A razão pela qual um grande contingente feminino vai querer ir ver "Tróia", de Wolfgang Petersen, será a exposição do corpinho esculpido que Brad Pitt conseguiu depois de meses no ginásio.

A razão pela qual "Tróia" poderia ter sido um filme interessante — mesmo que relativamente infiel à já de si vaga "verdade histórica" da antiguidade clássica — é a intenção claramente expressa na primeira meia-hora de articular a "pequena história" individual com a "Grande História", a maneira como as ambições pessoais — poder, glória, honra — acabam por jogar um papel decisivo na formação da História.

Só que Brad Pitt (e de caminho também Orlando Bloom) só tem mesmo o corpinho esculpido, incapaz de fazer passar algo mais do que uma vaga maçada de adolescente birrento habituado a que lhe façam as vontades todas. Só que — como dizia alguém ao meu lado — Diane Kruger não tem a beleza resplandecente nem a presença que se exige de uma Helena de Tróia. Só que os actores realmente bons de "Tróia" estão todos a fazer papel secundário. E o filme afoga-se numa modorra luminosamente fotografada e majestosamente reconstituída, que flui à nossa frente sem nunca realmente nos conquistar.

AFINAL, SÃO PRECISOS DOIS MILAGRES

"O Milagre Segundo Salomé", de Mário Barroso (estreia hoje em praticamente todo o país), é aquela raridade que, por o ser, deve ser devidamente acarinhada, divulgada e patrocinada — um bom filme português que não insulta a inteligência de quem o vê, que não se dirige a meia-dúzia de iluminados formados na escola francesa do cinema de autor, que não parece um telefilme feito por tuta e meia e ampliado para 35mm, que não tem actores artificiais e distantes.

"O Milagre Segundo Salomé" é aquilo que o cinema português já devia saber fazer há muito tempo mas não sabe, não sei se por teimosia se por incapacidade se por estratégia: uma história bem contada, bem filmada, bem representada, que não se esgota na hora e meia de projecção. Ainda por cima é uma adaptação relativamente livre do romance de José Rodrigues Miguéis que lhe deu origem, mas que consegue respeitar a essência e o espírito do universo de época do escritor.

Haveria tudo para "O Milagre Segundo Salomé" poder congregar à sua volta os favores do público e da crítica. Eis senão quando...



Com um cartaz/anúncio destes — que pode ser artisticamente muito bonito (embora eu não o ache), mas é absolutamente nulo como chamariz para um filme que é tudo menos uma seca de autor — como é que se convence alguém a ir ver um filme? E, pior: como é que se prefere colocar este cartaz nas salas e este anúncio nos jornais quando...

...isto, sem ser extraordinário, existe e é significativamente mais atraente?

Que irritação: finalmente um grande filme português que vale realmente a pena ver... e eles não o sabem vender.

12 de maio de 2004

O MEU ALIBI

Gosto desta canção porque, por trás da melodia arejada e aérea, da guitarrinha acústica que a transporta enganadoramente, da pedal steel a fazer eco de sirene de Verão, está uma pessoa solitária a fazer sinais. E depois, Lloyd é ainda e sempre o meu songwriter de eleição.

I'm freezing cold 'cause I've been out all night
I guess I left without my coat
I just got to walking 'round and 'round your block
very, very rock'n'roll

remember when you said you're my best friend
if that's the best that I've got
and anytime I needed anything
well, I guess I need to cash that cheque

I guess I had another bright idea
why don't I share it with you
I went right up and knocked on trouble's door
they said, mister we've been waiting for you

so could you be my alibi?
could you drive my getaway car?
get me out of jail free
baby, you and me

I'm freezing cold 'cause I've been out all night
I guess I left without my coat
I just got to walking 'round and 'round your block
very, very rock'n'roll

could you be my alibi?
could you drive my getaway car?
get me out of jail free
baby, you and me
baby, you and me?...

POLAROID BALNEÁRIO

Há um grupinho de miúdos — nove, dez anos — com quem me cruzo por vezes no balneário do ginásio quando eles saem do judo ou do que quer que seja que eles fazem. Nunca percebo se eles tomam realmente banho depois do exercício.

Hoje, estão todos de t-shirt azul-bebé igual. Um deles corre de um lado para o outro do ginásio, descalço, apenas com as cuecas por baixo da t-shirt, pedindo aos amigos que vão falar com o Vítor porque ele assim não vai falar com o Vítor.

Outro brinca com o secador de cabelo suspenso frente ao espelho numa das colunas entre os bancos corridos de madeira, mete-se com um miúdo de óculos, mais alto, que não está vestido de modo igual. Ambos lutam pela posse do secador e acabam numa breve luta. O mais baixo repete incessantemente "és tão mau, caixa d'óculos". O mais alto acaba por se afastar, com um rosto dorido.

Outro ainda esconde as cuecas de um colega, ri-se sem parar, ele e outro que assistiu a tudo.

Mais ao lado, um avô insiste com o neto recém-saído do judo para se despachar, mas ele leva o seu tempo a limpar-se em frente ao espelho, enquanto explica ao avô que trouxe um papel para ele assinar agora e entregar ao professor antes de saírem. O avô, cansado, diz que não assina sem ler e pergunta onde está o papel. O neto diz que está ali debaixo, o avô olha para o quimono de judo atirado num monte para cima do banco, diz-lhe que está-se mesmo a ver que o papel já está todo amachucado. O neto diz-lhe que não, que o guardou debaixo do saco para não se sujar. O avô puxa dos óculos, pega no papel e lê-o atentamente.

POR FALAR NISSO

Já sabem que sou uma fraude?

É SÓ DIFAMAÇÃO DIFAMAÇÃO, CÁ DENTRO DIFAMAÇÃO DIFAMAÇÃO (v2.0)

A blogosfera — o que quer que isso seja — está em polvorosa por causa da inexplicável declaração do jurista Pedro Amorim (como se fosse possível pôr entraves ao pensamento).

Infelizmente, haverá sempre aqueles que não percebem que "liberdade de expressão" não é carta branca para se dizer alarvidades. E é por causa dessa minoria que está longe de ser imensa, mas que faz infinitamente pior do que os outros, que temos de ouvir agouros destes.

PS: Entretanto, como o Povd fez favor de informar nos comentários, o jurista Pedro Amorim desmentiu a declaração. A lebre, contudo, foi levantada e vale a pena perder algum tempo a pensar nela.

POLAROID METRO

O metro pára na estação da Praça de Espanha. De repente, a luz do sol reflectida na parede do cais, vinda da saída para o átrio da Columbano Bordalo Pinheiro, direcção IPO; uma faixa de luz de pôr-de-sol, amarela, forte, um bocadinho de céu e ar livre descendo as escadas e projectado nos azulejos envelhecidos e sujos da velha estação de metro. O comboio volta a partir e a faixa lá continua, até o sol se pôr, devolvendo a estação à luz branca, mortiça e artificial, das lâmpadas fluorescentes do tecto.

11 de maio de 2004

NÃO ACHAM QUE JÁ CHEGA? (ADENDA)

A propósito do tópico "jornais + extras de valor acrescentado", um link para uma notícia do Le Monde onde se debate a progressiva "rendição" dos jornais e revistas franceses à prática, bem como os primeiros resultados e várias posições sobre o assunto. (Os não-francófonos que desculpem a ausência de tradução.)

VAI UM JOGUINHO Ó FREGUÊS

A propósito deste post do Joel Neto, aproveito para informar que também jogo regularmente no Totoloto, naquela estética semi-preguiçosa do "só não sai a quem não joga". O que eu faria se me saísse algo mais para lá dos míseros dois euros que os espaçados três ainda vão dando não faço ideia. Mas caso isso acontecesse esperaria ter presciência suficiente para não o desbaratar como alguns dos felizardos que ganharam dinheiro em OPAs de companhias de tecnologia informática citados aqui fizeram.

SOMOS TODOS DE ESQUERDA (MESMO SE NÃO SOMOS)

Uma frase lapidar que me chamou a atenção na excelente entrevista que o António Pires faz a José Mário Branco no Blitz de hoje:

Porque é que ainda canto estas canções?... Vivo bem, tenho uma boa casa, tenho um carro à porta, o frigorífico cheio de comida, de que é que me queixo?... Queixo-me porque percebi que ser de esquerda é não conseguir viver bem com a dor dos outros. É não conseguir ser feliz.

Ou seja, ser de esquerda é ter uma consciência social que (cor)responde a um qualquer padrão de ética e moral (que, mais à frente e como já tem feito noutras entrevistas, JMB equaciona mais com uma origem cristã do que de ordem política ou sociológica) sublinhado pela noção "efeito-borboleta" de que — como diz o companheiro Godinho — "isto anda tudo ligado". Onde se descobre, então, que, nos nossos tempos eminentemente mediáticos, é necessário retroceder a um tempo em que o valor das palavras e o seu significado eram a um tempo mais limitados e mais livres, menos transformados pela carga histórica do que o são hoje. E, se equacionarmos a "solidariedade, amor, generosidade" de que JMB fala mais à frente com "ser de esquerda", como ele o faz, então todos aqueles que os praticam, independentemente do quadrante meramente político ou religioso que habitem, serão "de esquerda" por praticar essas virtudes do cristianismo primordial. Aí está um paradoxo que merece a meditação mais alargada.

10 de maio de 2004

POLAROID 07:30 AM

Começo a achar graça a esta ideia de me levantar absurdamente cedo à segunda-feira. O ar fresco e limpo da manhã. A cidade ainda a acordar, vazia de trânsito e transeuntes. Percorrer as ruas é navegar em slow-motion. Frente ao metro do Rato, um homem ouve um rádio de pilhas. Os quiosques dos jornais começam a abrir as portadas, os cafés começam a montar as esplanadas. Lisboa parece acordar relutantemente de uma qualquer letargia de fim-de-semana.

Há qualquer coisa de irreal (hiper-real?) no retrato, sobretudo depois dos estranhos sonhos que percorreram o meu sono entre as 05:30 e as 07:00 (imagens distorcidas e azuladas de um qualquer "Dia da Independência" com Johnny Depp a dissecar vermes ressequidos) antes de acordar com o som da TSF a dizer que José Mourinho vai para o Chelsea e Pinto da Costa já sondou José António Camacho e Carlos Queiroz. O meu eu benfiquista não sabe o que há de pensar; deixa-o estar mais um bocadinho a dormir para não dizer coisas de que depois se possa arrepender.

9 de maio de 2004

ARIGATO

Segundo a Wired de Março, já é possível às teenagers japonesas levarem o seu telemóvel para o chuveiro. Exactamente what the world has been waiting for, não acham?

LADIES AND GENTLEMEN, ELVIS HAS LEFT THE BUILDING

A hipérbole impõe-se. Elvis Costello acompanhado ao piano por Steve Nieve, esta noite, no Coliseu de Lisboa, foi o concerto do ano até ver — e é pouco provável que algum concerto consiga chegar aos calcanhares desta noite absolutamente assombrosa onde, comunicativo como não é sempre seu hábito, Costello quase se recusava a sair de palco perante a devoção de um Coliseu que, perto de estar esgotado, se lhe entregou com um respeito como nunca ouvi em palcos nacionais (podia-se ouvir um alfinete a cair na sala, tal o silêncio devoto com que as canções eram recebidas). É uma daquelas noites que vai ficar nos anais dos concertos em Portugal: só os encores duraram tanto tempo como o set de base, e houve mesmo direito a três novas (que ele já tem tocado durante esta digressão).

Há 25 anos que Elvis Costello não tocava cá — e, depois desta noite, deve ter-se perguntado porquê. Nós também.

Foi isto que quem não foi perdeu:

set principal
45 [When I Was Cruel]
Accidents Will Happen [Armed Forces]
Love Field [Goodbye Cruel World]
The Long Honeymoon [Imperial Bedroom]
Shot with His Own Gun [Trust]
This House Is Empty Now [Painted from Memory]
You Turned to Me [North]
Fallen [North]
No Wonder [For the Stars]
Toledo [Painted from Memory]
The Delivery Man inédita
Country Darkness inédita
In the Darkest Place [Painted from Memory]
Veronica [Spike]
When It Sings [North]
Still [North]
The Birds Will Still Be Singing [The Juliet Letters]

encores
God's Comic [Spike]
She [Notting Hill soundtrack]
Needle Time inédita
Watching the Detectives [My Aim Is True]
Almost Blue [Almost Blue]
Let Me Tell You About Her [North]
I'm in the Mood Again [North]
Peace in Our Time [Goodbye Cruel World]
(What's So Funny 'Bout) Peace, Love and Understanding [Armed Forces]
God Give Me Strength [Painted from Memory]
I Want You [Blood and Chocolate]
The Scarlet Tide [Cold Mountain soundtrack]
I Still Have That Other Girl [Painted from Memory]
Pump It Up [This Year's Model]
Alison [My Aim Is True]
Dark End of the Street cover

8 de maio de 2004

AFINAL, SEMPRE TEREMOS MESMO TÓQUIO

O ICAM divulgou a lista dos filmes mais vistos em Portugal nos primeiros quatro meses deste ano (de 1 de Janeiro a 30 de Abril).

Em primeiro lugar da lista está "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, com 480 mil espectadores (números arredondados por mim), seguindo-se "O Último Samurai", de Edward Zwick, com 400 mil, e "Alguém Tem de Ceder", de Nancy Meyers, com 260 mil.

O que me deixa feliz é a presença nos dez mais, com 127 mil espectadores (nº 8), do sublime "Lost in Translation", de Sofia Coppola. Ainda há, afinal, esperança para os cinéfilos portugueses (embora eu não compreenda como é possível o magnífico "O Grande Peixe", de Tim Burton, só ter atraído 70 mil espectadores...).

MUNDOS SECRETOS (THE RETURN)



Por causa do Rui B., redescobri um dos meus discos de cabeceira: "Three Months, Three Weeks and Two Days" do inglês mais francófono de sempre, Bill Pritchard. Pop, leve, etérea, fresca, veraneante, a um tempo moderna e clássica, paroquial e cosmopolita, afectada e sincera. Romance fugaz, literário, primeiro amor terno e esquivo. Intangível. Contagiante. Inesquecível. Oh, but sometimes isn't everyone romantic?

Às vezes pergunto-me como consegui esquecer-me deste álbum tanto tempo.

DO QUE UM HOMEM É CAPAZ

Nada que não se esperasse: um Coliseu cheio a rebentar, repleto daquela audiência que amigos meus à entrada diziam ser Reunião-25-De-Abril-Sempre mas que eu prefiro definir como de Esquerda-Burguesa-Acomodada-Confortavelmente (não posso dizer que tenha sido uma noite muito proletária a esse nível), preparada para entrar em ejaculação precoce ao primeiro passo de um músico em palco. O chamado público conquistado à partida que, ao final, se ergue para uma longuíssima e interminável ovação — não tanto pela noite, creio eu, mas mais pelo tempo que passou.

José Mário é um intocável; passou a sê-lo por gravar tão pouco, tão espaçadamente, e pelo visionarismo criativo de que sempre fez prova ao longo de apenas seis discos de estúdio. José Mário é um intocável, e o público do Coliseu recebeu-o como tal numa noite que esteve longe de estar à altura dos pergaminhos. Foi notável enquanto se dedicou ao novo álbum "Resistir é Vencer", tocado na íntegra, em arranjos assombrosamente respeitosos dos de estúdio — será legítimo perguntar para quê fazer um concerto se a única coisa que nele se toca é a reprodução respeitosa e integral de um disco, mas o factor espontaneidade não é negligenciável numa empresa deste género, sobretudo quando "Resistir é Vencer" é disco tão denso e absorvente da atenção. Ouvi-lo, aqui, assim, permite descortinar mais do que em casa. Permite perceber que José Mário constrói filmes sonoros que dispensam as imagens, e que é um compositor de bandas-sonoras num país onde não se faz cinema.

Mas isso não chega quando se tem o acervo de canções que José Mário tem. E foi isso que ele não nos deu, remetendo-as para um medley conceptual de 25 minutos onde cedeu a voz ao coro infantil do Bando dos Gambuzinos. É muito estranho ver crianças que nasceram, todas, depois do 25 de Abril, que devem preferir Anastacia ou Shakira e têm todo o aspecto de vestir roupa de marca e comer em casas de junk food a cantarem "A Cantiga é uma Arma", "Ronda do Soldadinho" ou "Inquietação". Pior ainda eram os arranjos inacreditavelmente pirosos, Festival da Canção, que acompanhavam o todo. Como se José Mário quisesse provar que a sua música resiste a tudo. Ou apenas tivesse deixado escorregar o pé para a chinela. Conceptualmente, a ideia era arrojada, mas o resultado foi infeliz. Sobretudo porque, como o provou tudo o que viera antes, José Mário é capaz de muito mais e de muito melhor.

Soube a pouco este Coliseu. E não sabemos quando José Mário se dignará voltar a este palco. Ou sequer se o tenciona fazer. Resta-nos guardá-lo na memória como um reencontro que se teve com prazer mas que deixou um estranho vazio — como quando reencontramos um velho amigo com o qual talvez não tenhamos já tanto a ver como pensávamos em tempos.

O disco, esse, continua a ser muito bom.


7 de maio de 2004

SIM, O LIVRO CHAMA-SE MESMO ASSIM

Não é gralha nenhuma. O livro de Marshall McLuhan chama-se mesmo "The Medium Is the Massage" — "massage" com A, não "message" com E. E outra das muito boas ideias que o senhor ali deixa, a propósito da incapacidade de assimilarmos ou reagirmos ao novo sem ser com padrões que já não se lhe aplicam:

The past went that a-way. When faced with a totally new situation, we tend always to attach ourselves to the objects, to the flavor of the most recent past. (...) Our official culture is striving to force the new media to do the work of the old. (...) We approach the new with the psychological conditioning and sensory responses of the old.

POLAROID GRAFFITI

Mais vale um aborto hoje do que um lampião amanhã

- graffiti anti-benfiquista anónimo pintado a spray no chão de um dos corredores do metro do Campo Grande que levam ao Estádio Alvalade XXI

6 de maio de 2004

AMBIENT: MUSIC FOR TRANSPORTS

E não é que hoje, ao entrar na estação de metro do Rato, fui recebido por... "Apollo — Atmospheres and Soundtracks", de Brian Eno, a tocar no PA do átrio de entrada e no cais de embarque?

NÃO ACHAM QUE JÁ CHEGA? (extended mix)

O Diário de Notícias anuncia hoje mais uma colecção de DVDs para sair ao domingo — e que, como já começa a ser hábito nas colecções do Diário de Notícias, apesar do esforço feito nos DVDs do DNa à quinta-feira, dá toda a ideia de ser um escoamento de filmes de segunda escolha do catálogo DVD da "casa-mãe" Lusomundo. Mas a questão nem sequer é essa — pelo andar da carruagem, todos os dias há um "extra" qualquer para comprar com um jornal qualquer, entre discos e livros e outras coisas, tornando o jornal no supérfluo da questão, quando deveria ser ao contrário. E muita gente há que já só compra os extras, sem o jornal, ou deixando o jornal no caixote do lixo mais próximo, numa espécie de frenesi consumista de completar a colecção para fazer boa figura na estante ou na prateleira. Como se não importasse o que se está a comprar, mas apenas fazer a colecção, dizer que se tem.

No fundo, esta coisa dos "extras" dos jornais dirige-se na perfeição ao consumismo novo-rico do portuguesinho que gosta de fazer um vistaço com a cultura que vai acumulando na estante, mas que se calhar nunca pega nos livros nem nos discos nem nos filmes. E aos bolsos das editoras de livros, discos e filmes, que realizam vendas que nunca conseguiriam no mercado normal.

Mas um dia, com tanta colecção e tanta edição, o balão de ar vai estoirar. A proliferação deste tipo de colecções poderá ser perigosa para o mercado normal, ao desvalorizar o preço e o valor facial do produto; no caso do DVD, por exemplo, como é que as pessoas vão à loja pagar 15 ou 20 euros por um DVD que algumas semanas mais tarde vai sair a metade do preço com um jornal? E, quando estes extras estiverem de tal modo vulgarizados que a sua mais-valia para as vendas do jornal desaparecer — se a qualidade do produto ou a sua raridade deixarem de ser os diferenciadores que justificam o investimento? Aí, como é que vai ser?

Os jornais terão de inventar outro gancho para agarrar o público — mas e quando os ganchos esgotarem? Como poderá um jornal que sobreviveu à conta de dar mais-valias ao público sobreviver sem essa mais-valia? Para já, está tudo muito bem. Mas convirá proteger o futuro, porque em Portugal pensa-se pouco a longo prazo estratégico, sobretudo quando os olhos estão todos nos resultados de hoje...

JÁ QUE ESTAMOS A FALAR DE TELEVISÃO

All media work us over completely. They are so pervasive in their personal, political, economic, aesthetic, psychological, moral, ethical, and social consequences that they leave no part of us untouched, unaffected, unaltered. The medium is the massage. Any understanding of social and cultural change is impossible without a knowledge of the way media work as environments. All media are extensions of some human faculty — psychic or physical.

Marshall McLuhan escreveu estas palavras tão absolutamente contemporâneas no seu celebrado ensaio "The Medium Is the Massage"... em 1967. O livro é apenas um ano mais velho do que eu, numa altura em que Portugal ainda tinha dois canais e vivia a preto e branco, a internet estava longe de existir e a televisão ainda não era a hidra de mil écrans em que se viria a transformar.

Se hoje ele parece estar "na batata", na altura em que foi escrito, quando a "aldeia global" era um povoado inóspito comparado com a entidade que é hoje, devia ser absolutamente radical, revolucionário, subversivo e extremista.

UMA ESCOLHA QUE SE FAZ



"O Meu Ídolo" (estreia hoje no Quarteto, em Lisboa) é um filme sobre a perda da inocência por um jovem que quer singrar no mundo da televisão contemporânea e que se vê confrontado com a sordidez e a venalidade dos seus bastidores durante um fim-de-semana durante o qual o seu ídolo, um galardoado produtor de programas de telelixo, o convida para uma casa de campo para discutir um possível projecto. Posto desta maneira, ainda por cima sendo um primeiro filme francês, dá vontade de fugir a correr, não dá?

Não é de facto o melhor filme do ano nem nada que se pareça; sofre de várias fraquezas inerentes a ser um primeiro filme, mas possui uma segurança e uma ousadia que não são nada normais em realizadores estreantes. E, sobretudo, é inteligente no modo como, à imagem e semelhança do protagonista que se vê cada vez mais enterrado num lamaçal escondido por trás das luzes, dos cenários e do glamour, vai desmontando com um humor que raia o absurdo e a loucura as ilusões interiores que muitas vezes construímos só a partir de uma fachada exterior. O filme está constantemente a mudar de tom e de estilo, mas consegue a proeza de que as guinadas abruptas que vai dando nunca pareçam implausíveis ou meramente diletantes. Há aqui talento em acção.

No mais, é muito fácil, até mesmo óbvio, escolher o telelixo e o "reality show" como alvo preferencial. Mas é, como diriam os outros, "uma escolha que se faz", quanto mais não seja porque é importante pensar, mais ainda, no que é que esta televisão representa e significa.

5 de maio de 2004

AINDA A PROPÓSITO DO POST ANTERIOR

Os primeiros vinte e cinco minutos do Telejornal da RTP-1 de hoje à noite foram dedicados à libertação de Carlos Cruz e à vitória do FC Porto sobre o Deportivo da Corunha.

4 de maio de 2004

AS MIL LUZES DE NOVA IORQUE

No tempo dos telediscos, dos jogos de video, dos anúncios, dos reality-shows, que nos interessa o cinema? Na hora das simulações, dos programas, dos oráculos, dos argumentos, das sondagens, das previsões e precauções, a que outro presente nos pode abrir o cinema documental? Quando, mais poderosas que nunca, as propagandas nos arrastam para as quimeras que fazem passar por verdadeiras, que pode ainda a ficção, que histórias está ela ainda em medida — ou em desejo — de conduzir? Face aos mil milhões de écrans televisivos iluminados dia e noite à volta do mundo, como falar, dizer, escutar, como ver, mesmo, aquilo que nos acontece, e como representá-lo sem adicionar a vaidade de um ruído ao ruído das vaidades?

É um excerto da introdução que Jean-Louis Comolli escreveu para a sua recolha de ensaios "Voir et Pouvoir — L'Innocence Perdue", citado na edição de Março de 2004 dos Cahiers du Cinéma. Como tópico de reflexão, parece-me excelente.

NAS MONTANHAS DA LOUCURA

Exactamente porque é que eu me lembrei de ir ler H. P. Lovecraft nesta altura do campeonato confesso que não sei. Mas, ao ler, percebo na perfeição porque é que o homem tem a reputação que tem: está tudo na maneira arrepiante como ele constrói lentamente e define o ambiente, como insere muito calmamente pequenas notas discordantes em paisagens perfeitamente banais. É uma arte impressionista de justapor e inserir o mínimo de detalhes com o máximo de efeito; nunca nada é definitivo ou definido, tudo fica sempre nas entrelinhas, por dizer. A palavra certa é "arrepiante".

3 de maio de 2004

O REGRESSO À BOA VELHA CAMA

Tudo está bem quando acaba bem: os meus pais estão de regresso a casa, o meu pai "condenado" a usar uma algália até quinta-feira, não por necessidade real mas mais para protecção da costura feita aquando da retirada das pedras, a minha mãe "aliviada" agora que regressou ao seu mundinho privado.

Não foi fácil: cansado de estar fechado num quarto de hospital com apenas quatro canais terrestres sem programação que lhe agradasse, saudoso dos cinquenta canais da TV Cabo (dos quais, de qualquer maneira, ele só vê quase sempre os mesmos três ou quatro — o Eurosport se estiver a der ténis ou bilhar, os filmes do Hollywood, as séries da SIC Gold ou da SIC Radical), o meu pai decidiu tomar à letra a indicação do médico de que poderia ter alta a partir das oito da manhã e lançou, ontem à noite, o ultimato: ou vocês me vêm buscar às oito em ponto ou eu apanho um táxi para casa. Pânico nas hostes, comparável apenas à desorientação das autoridades face à invasão de campo do Alvalade XXI ontem à noite; lá temos a manhã de segunda-feira lixada (e todos nós sabemos como é importante começar uma segunda-feira de modo correcto). Isto do levantar cedo tem muito que se lhe diga (sim, eu sei que estou mal habituado).

Esquecidas ficaram as angústias dos dias anteriores, quando, ao olhar para o desamparo dos meus pais sozinhos um sem o outro, encontrei a resposta à pergunta "porque é que procuramos alguém para partilhar a nossa vida, por muito restrita que ela seja"; quando, ao olhar para os achaques dos meus pais isoladamente, percebi porque é que alguns de nós fazem tudo para evitar a dor; quando, ao olhar para o meu pai sozinho e triste num quarto de hospital, me perguntei se é assim, inescapavelmente, que todos nós nos compenetramos definitivamente da nossa própria mortalidade. (A esse propósito: lembrem-me, mais tarde — não agora — de vos falar da minha hipocondria e daquela vez que passei uma noite no hospital por ter ido de encontro a um sinal de trânsito.)

Agora, só quero mesmo é ter uma boa noite de sono a sério, que, de qualquer maneira, nunca irá compensar as seis noites que dormi no sofá da sala e me deixaram o pescoço a doer e o sono descompensado. Amanhã, começo a limpar a casa para transformar em quarto de visitas a sala de arrumações, ao pé dos vinis que esperam um novo móvel no escritório e do equipamento de mergulho que não tem outro sítio para secar sem incomodar a passagem.

2 de maio de 2004

A SABEDORIA CÓSMICA DO JUNK MAIL #2

Aposto que nunca receberam um junk mail enviado por... vocês próprios. Aconteceu-me esta noite: recebi na minha caixa de correio um junk mail proveniente da minha própria caixa de correio... que evidentemente nunca enviei. The irony is just sickening.

1 de maio de 2004

AMBIVALÊNCIAS

O meu pai riu-se muito com a coluna do Vasco Pulido Valente no Diário de Notícias de hoje, e com o cartoon do Público ("Abril é uma seca"). Faz-me confusão vê-lo no quarto do hospital, antigo, vestido de pijama com um tubo translúcido a sair-lhe da braguilha e a ir dar a um saco cheio de um líquido vermelho desmaiado. E se ele tiver de ficar no hospital para lá de segunda-feira?

A minha mãe está casmurra como só uma idosa que não se entende no mundo moderno e se vê de súbito desprovida do seu "fiel da balança" pode estar (tem dificuldade em andar, ouço-a a arrastar-se pelo corredor de casa): passa as tardes no hospital com o meu pai, tentando animá-lo enquanto ele se aborrece a ver televisão, falando sem parar enquanto ele tenta ler os jornais do dia ou os livros que tem à cabeceira. São as poucas ocasiões que tenho de conseguir despachar trabalho, quando ela cá está chama-me de dez em dez minutos, às vezes porque precisa da minha ajuda, às vezes só porque não tenho as coisas como ela está habituada em casa dela.

Cuidar da minha mãe é uma ocupação a tempo inteiro que ninguém aceitaria fazer sem ser bem remunerada/o, porque equivale a pôr de parte a nossa própria vida pessoal para maior conforto dela. Este conceito de sacrifício será decerto muito cristão (a este propósito: vale a pena ler esta história que saiu na Time desta semana, pelo lado de exemplo moral que os americanos tanto gostam de erguer), mas o meu problema é que não fui criado na religião e moral católica, já que o nosso pai se incumbiu de nos incutir o mais veemente agnosticismo.

Tenho uma relação complicada, ambivalente, diria mesmo distante com os meus pais – resultado de uma coexistência demasiado prolongada para lá do que é normal para uma relação que aspira a saudável. (Sim, fiz parte da geração canguru. Se soubesse o que sei hoje, etc, etc.) Mas o simples facto da questão é que tudo isto apenas me veio mostrar como a minha vida é vivida na tensão de um brinquedo de corda com medo de que a corda parta a qualquer momento, e todos sabemos que geralmente essas coisas acontecem precisamente no momento em que menos devem. Não o posso controlar, é certo, mas posso tentar limitar os estragos.

No entretanto, o meu pai supostamente tem alta na segunda-feira; e a minha mãe está desejosa de o ter em casa, porque sabe que se sente completamente desasada sem ele. E, pelo menos, de todo este episódio resultou que ela já começou a perceber que as coisas não podem continuar como estavam, e que vai ser preciso fazer mudanças, significativas, no modo como os meus pais vivem/viviam no seu mundo fechado à realidade. Para já, ela ressona. É bom sinal: está a descansar. É mau sinal: até no sofá da sala se ouve o ressonar.

ALL CHANGE

Gosto destas frases que parecem fósseis de outras eras do transporte público, que transportam uma pesada carga civilizacional (no caso, da rígida cultura inglesa, da correcção espartana e elegante da sua língua infinitamente flexível — até espanta como um país tão engomadinho deu origem a uma língua de tal liberdade, que pode ser moldada e esticada sem nunca perder a sua simplicidade gramatical intuitiva).

"All change" é a expressão usada para o "interface" entre linhas ou comboios, quando se tem obrigatoriamente de mudar de linha para prosseguir viagem. Lembrei-me dela ao sair do comboio que vinha da "linha verde" direcção Alvalade-Cais do Sodré na estação do metro da Baixa-Chiado e dar apenas alguns passos para me encontrar no cais da "linha azul" direcção Baixa-Chiado-Pontinha; depois quando sai na estação do Marquês de Pombal (ainda alguém se lembra de quando só havia um cais, corredores infinitos e se chamava Rotunda?) para ir apanhar a "linha amarela" direcção Rato.

Por um momento senti-me no labiríntico e gigantesco mas sempre perfeitamente sinalizado metro de Londres. Lembrei-me também daquela célebre frase, "mind the gap", que foi entretanto adoptada para nome de um dos meus grupos rap portugueses preferidos (sim, eu tenho grupos rap portugueses preferidos; sim, eu gosto de rap; OK, não é caso para caírem para o lado), e que se ouvia nas estações, numa voz metálica e ríspida, quando o comboio abria as suas portas, para exortar os passageiros a terem cuidado ao subir e descer das carruagens: "Mind - the - gap. Mind - the - gap."

Foi só por um momento; a sair no Marquês, uma adolescente de bochechas rechonchudas e longos cabelos louros, a correr para apanhar o comboio apesar de este não ter ainda sequer parado para deixar sair os passageiros, quase tropeça nas bainhas ridiculamente longas das suas calças de ganga esbranquiçadas à boca de sino, tapando por completo o calçado, com a bainha dobrada para cima e já ruça de roçar o chão.

Já no cais da linha amarela, estamos quatro, talvez cinco pessoas que, no cais longo e vazio, se acumulam todos na zona da frente, da primeira carruagem, como se não suportássemos a ideia da solidão, mesmo durante os breves instantes enquanto se espera pelo próximo comboio, mesmo que não haja sequer um esboço de tentativa de contacto entre os passageiros.