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8 de maio de 2004

DO QUE UM HOMEM É CAPAZ

Nada que não se esperasse: um Coliseu cheio a rebentar, repleto daquela audiência que amigos meus à entrada diziam ser Reunião-25-De-Abril-Sempre mas que eu prefiro definir como de Esquerda-Burguesa-Acomodada-Confortavelmente (não posso dizer que tenha sido uma noite muito proletária a esse nível), preparada para entrar em ejaculação precoce ao primeiro passo de um músico em palco. O chamado público conquistado à partida que, ao final, se ergue para uma longuíssima e interminável ovação — não tanto pela noite, creio eu, mas mais pelo tempo que passou.

José Mário é um intocável; passou a sê-lo por gravar tão pouco, tão espaçadamente, e pelo visionarismo criativo de que sempre fez prova ao longo de apenas seis discos de estúdio. José Mário é um intocável, e o público do Coliseu recebeu-o como tal numa noite que esteve longe de estar à altura dos pergaminhos. Foi notável enquanto se dedicou ao novo álbum "Resistir é Vencer", tocado na íntegra, em arranjos assombrosamente respeitosos dos de estúdio — será legítimo perguntar para quê fazer um concerto se a única coisa que nele se toca é a reprodução respeitosa e integral de um disco, mas o factor espontaneidade não é negligenciável numa empresa deste género, sobretudo quando "Resistir é Vencer" é disco tão denso e absorvente da atenção. Ouvi-lo, aqui, assim, permite descortinar mais do que em casa. Permite perceber que José Mário constrói filmes sonoros que dispensam as imagens, e que é um compositor de bandas-sonoras num país onde não se faz cinema.

Mas isso não chega quando se tem o acervo de canções que José Mário tem. E foi isso que ele não nos deu, remetendo-as para um medley conceptual de 25 minutos onde cedeu a voz ao coro infantil do Bando dos Gambuzinos. É muito estranho ver crianças que nasceram, todas, depois do 25 de Abril, que devem preferir Anastacia ou Shakira e têm todo o aspecto de vestir roupa de marca e comer em casas de junk food a cantarem "A Cantiga é uma Arma", "Ronda do Soldadinho" ou "Inquietação". Pior ainda eram os arranjos inacreditavelmente pirosos, Festival da Canção, que acompanhavam o todo. Como se José Mário quisesse provar que a sua música resiste a tudo. Ou apenas tivesse deixado escorregar o pé para a chinela. Conceptualmente, a ideia era arrojada, mas o resultado foi infeliz. Sobretudo porque, como o provou tudo o que viera antes, José Mário é capaz de muito mais e de muito melhor.

Soube a pouco este Coliseu. E não sabemos quando José Mário se dignará voltar a este palco. Ou sequer se o tenciona fazer. Resta-nos guardá-lo na memória como um reencontro que se teve com prazer mas que deixou um estranho vazio — como quando reencontramos um velho amigo com o qual talvez não tenhamos já tanto a ver como pensávamos em tempos.

O disco, esse, continua a ser muito bom.


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