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29 de fevereiro de 2004

O PAÍS REAL

Desculpem a insistência, eu sei que é mázinha, até obsessiva, mas não resisto a dedicar uma das mais geniais (e menos reconhecidas, e das minhas preferidas) canções recentes do poeta Godinho a Santana Lopes (e aos outros todos, claro):

soubera eu que o senhor vinha
e com certeza não me tinha
apanhado na cozinha
ovos mexidos com salsichas
batata frita de pacote
e o que sobrou de um happy meal
três embalagens de ketchup

soubera eu que no rastreio
eu tinha sido o escolhido
um caso típico do meio
teria pedido ao serviço
que à parte de me ter dispensado
que atribuísse qualquer verba
p'ra eu tratar do convidado

não é casa que se mostre
não é casa que se mostre
a um visitante tão ilustre

mas
benvindo sr. presidente
do consenso capicua
sente sente
vá! aqui no sofá
a casa é sua!
um café? cerveja já não há
a casa é sua!
vou buscar a vassoura e a pá
a casa é sua!
e um banco corrido para estes senhores
como é que se chamam?
ah! assessores...

soubera eu do seu programa
e teria pelo menos
recolhido o sofá-cama
foi lá que ressonei pesado
sonhei vinganças de ex-marido
e nem senti que a mãe e o puto
p'la manhã tinham fugido

mas isso agora não interessa
mas isso agora não interessa
fotos, poses, peça, peça

benvindo sr. presidente
do consenso capicua
sente sente
vá! aqui no sofá
a casa é sua!
um café? cerveja já não há
a casa é sua!
vou buscar a vassoura e a pá
a casa é sua!
e um banco corrido para estes senhores
como é que se chamam?
assessores...

soubera eu desta visita
e não me tinha agora aqui
a queixar-me da desdita
do futuro um parasita
eu que quis vida bonita
a sua agenda é apertada
e a sua vida correria
posso já ficar sozinho
ou quer ainda que sorria?

o certo é que o senhor merece
o certo é que o senhor merece
esquecer o que me acontece

benvindo sr. presidente
do consenso capicua
sente sente
vá! aqui no sofá
a casa é sua!
um café? cerveja já não há
a casa é sua!
vou buscar a vassoura e a pá
a casa é sua!
e um banco corrido para estes senhores
como é que se chamam?
ah! assessores...

POLAROID MONUMENTAL

Um casal quarentão vê os cartazes dos filmes no átrio do Monumental. Falam muito alto, com o sotaque e a linguagem daquilo a que nos habituámos a chamar os bairros populares de Lisboa, com a voz rouca típica de quem teve de começar a desembaraçar-se na vida muito cedo. Estão vestidos "à moda", mas isso cria uma estranha décalage com o tipo físico e com a voz: ele tem uma camisola justa por cima de uma T-shirt, carteira na mão; ela tem o cabelo artificialmente louro e óculos escuros espalhafatosos, veste-se num arremedo triste de se agarrar a uma juventude que talvez não tenha tido, com calças boca-de-sino larguíssimas e ténis de cor. Vêem os horários e ela chama-lhe teimoso que nem uma mula, o filme não corre às horas que ele insistia; ele diz para não lhe chamar mula senão leva uns açoites no rabo; ela levanta a perna para lhe dar um chuto, ele agarra-lhe na perna e ela cai redonda no chão do átrio. Ele ajuda-a a levantar-se, ela senta-se nos bancos e amua; ele pede-lhe muitas desculpas, como se as estivesse a pedir a uma criança, enquanto o telemóvel emite uma melodia interminável. Ela amua, meditabunda, ele continua a falar, tenta convencê-la a ir tomar um café, tudo sempre num tom de voz muito alto, como se estivessem em sua própria casa. Acabam por descer as escadas e sair para a rua.

Cá fora, famílias alargadas e pais a gritar aos filhos. Rodrigo esteja quieto. Anda cá Alice. Uma senhora vende castanhas a partir de uma daquelas armações montadas à frente de uma motocicleta antiga; uma outra, de faces rosadas, vestida com roupas grossas, ténis e um gorro de lã, conversa com ela e vai-se embora, olhando-me fixamente enquanto tomo notas encostado ao pilar. Um rapaz passeia de bicicleta. Outro move-se sem parar, à espera de alguém que não aparece. Um pombo vem passear-se por cima do logotipo do Monumental desenhado no mosaico de calçada, talvez procurando algum pedaço de castanha assada que tenha caído, talvez apenas buscando o calor que emana do forno, o cheiro do carvão queimado e o fumo branco levados pelo vento em direcção ao Saldanha.

É NOITE DE OSCARES. E DAÍ?

Daqui a bocado vão começar os Oscares e não faço a mínima intenção de ficar a pé a vê-los, como qualquer bom cinéfilo que se preze. Porque - e falo por experiência - com a décalage horária é uma chatice absoluta ficar a noite toda sentado em frente à "idiot box" (definição deliciosa que o grande comediante britânico Robert Morley pronunciava com um desprezo mal disfarçado num filmezinho menor dos anos 70 chamado "Quem Anda a Matar os Grandes Chefes da Europa?"). Já a horários normais quatro horas de programa de ritmo bastante irregular seria difícil de aturar, então madrugada dentro só mesmo os indefectíveis de estômago forte (que eu já deixei de ser há uns tempos) conseguem resistir. Além do mais, a cerimónia dos Oscares não é - nunca foi - uma celebração do Cinema, mas um espectáculo formatado para o mínimo denominador comum do americano médio, que a nós europeus parece demasiado polido, demasiado banal, demasiado mastigado, demasiado déjà-vu.

Secretamente, claro, estou a torcer por Sofia e pela vitória do seu "lugar estranho" perdido na tradução, mas sem esperanças de maior, face ao proverbial conservadorismo de uma academia mais interessada no status quo. Será que a Marta já estará a regressar de Los Angeles quando a cerimónia for para o ar?

BRIGADOON

Hoje não é um bom dia para sermos felizes - a felicidade já é suficientemente rara para nos darmos ao luxo de apenas a comemorarmos todos os quatro anos.

POLAROID RESTAURADORES

É meia-noite e meia. Os Restauradores e a Avenida da Liberdade parecem desafiar a vox populi da desertificação: ainda a mole humana saciada pelas palavras do poeta Godinho começa a descer as escadas do Coliseu, os últimos resistentes da "My Fair Lady" no Politeama pedem autógrafos ao elenco à esquina do Odeon ou sobem pacatamente a avenida em direcção aos carros estacionados na lateral da avenida, há fila para entrar no Hard Rock Café e vê-se a enchente do espaço pelas portas laterais do Condes, o público acotovela-se à saída do musical no Tivoli, em direcção aos autocarros parados na faixa bus, o trânsito na lateral avança a passo lento devido aos carros que, conduzidos por senhores de meia ou terceira idade, saem do estacionamento. Um sem-abrigo dorme à porta de uma agência de viagens. Há sacos do lixo por todo o lado. É sábado à noite e esta movimentação recorda-me de outras noites de que apenas ouvi falar, de uma Lisboa perdida que já não volta mais, apesar das aparências.

COM UM BRILHOZINHO NOS OLHOS

playlist: Sérgio Godinho: "Escritor de Canções" (EMI, 1990)

Ontem passei a noite a conversar com um amigo que está perdidamente apaixonado. Invejei-o, porque está a viver aquilo com que todos sonhamos; mas nunca tive tanto medo na vida, porque se a paixão é tudo, sem ela não somos nada. Porque se o amor é a nossa força, sem ele ficamos indefesos, desprotegidos, à deriva. Porque sem ele somos estranhos, mal na nossa própria pele, deslocados, alienígenas. Tanto como o somos com ele.

E quando ouvi Sérgio, esta noite, no Coliseu, perguntei-me se não trocaria todas as paixões do mundo por algo de mais permanente:

com um brilhozinho nos olhos
e a saia rodada
escancaraste a porta do bar
trazias o cabelo aos ombros
passeando de cá para lá
como as ondas do mar
conheço tão bem esses olhos
e nunca me enganam
o que é que aconteceu, diz lá
é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa
no mundo não há

(...)

e com um brilhozinho nos olhos
tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
e com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

28 de fevereiro de 2004

DE PASSAGEM

Quando não há palavras, há sempre uma canção que diz as coisas melhor do que seríamos capazes de o fazer; porque a felicidade é um estado passageiro, e eu nunca consigo esquecer-me dessa transiência. E talvez esteja aí o problema.

looking like a born again
living like a heretic
listening to Arthur Lee records
making all your friends feel so guilty
about their cynicism
and the rest of their generation
not even the government
are gonna stop you now
but are you ready to be heartbroken?
are you ready to be heartbroken?

pumped up full of vitamins
on account of all the seriousness
you say you're so happy now
you can hardly stand
lean over on the bookcase
if you really want to get straight
read Norman Mailer
or get a new tailor
are you ready to be heartbroken?
are you ready to be heartbroken?
are you ready to bleed?

what would it take
what would it take
to wipe that smile
off of your face?
are you ready to be
are you ready to bleed?

are you ready to be heartbroken?
are you ready to bleed?

- Lloyd Cole, "Are You Ready to Be Heartbroken?" (1984)

26 de fevereiro de 2004

REGRESSO A CASA

O centro histórico também está concorrido de dia, assustadoramente deserto de noite. Também há lojas e restaurantes chineses e agências bancárias a cada esquina. Também há cachecóis dos clubes de futebol em dia de jogo grande. Também há autocolantes nos pára-choques dos táxis a dizer que os taxistas são simpáticos. Também há taxistas simpáticos. Também há cargas e descargas e carros estacionados em segunda fila a interromper o trânsito. Também há emigrantes russos. Também há lojas fechadas e vazias.

O Porto não é diferente de Lisboa, a não ser no sotaque. Estamos todos no mesmo barco.

TILT A MEIO CAMPO

Aos 60 minutos do Porto-Manchester United, ainda o jogo está empatado, a bola circula incessantemente de uns para outros, de equipa para equipa, dentro de uma zona reduzidíssima de meio-campo, como numa máquina de flippers. É a isto que se chama um jogo disputado?

O FINGIDOR

Belíssima, e reveladora, entrevista de Fanny Ardant a Ghislain Loustalot na Première francesa de Janeiro - uma conversa com tanto de íntimo como de perigosamente exposto, onde se revela o actor como um ser eminentemente solitário, buscando nos outros algo - talvez uma paz? - que lhe permita viver consigo próprio sem dores nem problemas.

Por vezes, quando penso na "volta" que tantas vezes apregôo querer dar à minha vida, digo: gostaria de tentar ser actor. Porque equivale a ser outra(s) pessoa(s), perder-se noutra identidade, noutra existência nos antípodas da nossa. Pura ilusão: todo esse fascínio, toda essa apetência esconde-se no distanciamento entre o pensar e o agir, entre o sonhar e o ser. Os desejos deixam de o ser quando os concretizamos - de fantasmas e anseios passam a rotinas, a quotidianos, desfazem-se da sua carga mágica. Vai um passo grande entre o desejo e o trabalho que ele implica. E já não sei se ainda tenho em mim a energia necessária para fingir ser outro.

E, contudo... Uma vez, no segundo ano da faculdade, o desafio da professora de Língua Inglesa foi colocar-nos face à aula, a testar os nossos dotes de inglês oral através de um jogo teatral em que deveríamos preparar as alegações de um advogado de defesa. Tive um imenso prazer no jogo até que, a meio, compreendi que tinha construído toda a argumentação sobre castelos de areia e que não me seria possível levar a coisa a bom porto. Confrontei-me com as minhas limitações perfeccionistas; e, face a elas, fiz aquilo que sempre faço.

Concedi-lhes vitória e retirei-me, braços baixos, fechando atrás de mim a porta. Nunca mais consegui ter prazer a ver filmes de tribunal.

25 de fevereiro de 2004

HOTEL

Os quartos de hotel de gama média ou média-baixa são sempre demasiado pequenos, demasiado anónimos. Têm sempre o ar condicionado ligado no máximo ou então no mínimo, são pequenos cubículos de gelo ou então estão insuportavelmente abafados. Têm sempre paredes demasiado finas; ouvimos sempre tudo o que se passa no quarto ao lado ou no corredor, ou as empregadas que limpam os quartos do andar às oito e meia da manhã enquanto conversam em voz alta. As casas de banho são sempre demasiado acanhadas, os sabonetes e os saquinhos de gel de banho ou shampoo nunca chegam para se tomar um banho decente. A hora do pequeno-almoço acaba sempre impossivelmente cedo para quem esteve a trabalhar até muito tarde.

E, contudo, ao fim de uns dias, já lhes chamamos "casa"; ou, pelo menos, um sucedâneo temporário.

FOI CARNAVAL. UF!

Uma coisa boa de passar o Carnaval no Fantasporto (e já lá vão quantos anos de seguida? três, quatro?) é a de, pura e simplesmente, ignorar a ocasião. O meu sentido de humor e o da maior parte dos portugueses não são grandemente compatíveis. Não vejo em que é que atirar serpentinas e confetis, ou balões cheios de água, ou ovos (como se fazia nos meus tempos de liceu - será que hoje ainda se faz?) contribui para a felicidade generalizada. E ver as criancinhas mascaradas de princesa ou de zorro a passear pela rua, talvez sem consciência de espécie nenhuma do facto, é das coisas que mais me entristece.

Não tenho nada contra quem gosta de festejar o Carnaval ou de quem dele gosta. Mas quantos de nós não andamos já tão mascarados durante o ano para ainda nos querermos mascarar mais nestes dias?

O Carnaval em Portugal é o espectáculo grotesco de uma sociedade que, sem ter do que se rir, procura rir-se de si própria, sem perceber que não há aqui nada de divertido. Mas faz sentido num país real como o nosso.

VELOCIDADE SOLITÁRIA

O tempo tem aquele feitio curioso de passar mais devagar quando queremos que ele passe mais depressa. E essa velocidade subjectiva é tanto mais relevante quanto mais sozinhos ou mais distraídos estamos. Por vezes, essa distracção pode consistir em nada mais do que olhar pela janela, procurando descobrir padrões na observação desapaixonada das idas e vindas do quotidiano, dos carros que páram e arrancam nos semáforos, das pessoas que atravessam a rua, a praça, que páram a levantar dinheiro no multibanco ou a a observar uma montra mais ou menos vistosa. Mas, mais tarde ou mais cedo, consoante a subjectividade do momento, voltamos a estar sozinhos connosco próprios no que, no fundo, nos é um lugar estranho (Sofia, outra vez, sempre). E um lugar será sempre tanto mais estranho quanto mais sozinhos estivermos.

24 de fevereiro de 2004

AH, E OS FILMES?

Têm-se visto muitos no Fantasporto 2004 (já vou com para aí uma dúzia), mas poucos realmente estimulantes - e os dois melhores que vi até agora nada têm a ver com fantástico, embora andem à tangente do filme de culto. "800 Balas", de Alex de la Iglesia, é uma deliciosa homenagem ao western-spaghetti (Carmen Maura em grande e um fabuloso Sancho Gracia no protagonista), e "Não Tenho Medo", do italiano Gabriele Salvatores, é um melodrama de excepção - e de excepção à regra da lamechice, assombrosamente fotografado e interpretado. E a curta portuguesa de zombies "I'll See You in My Dreams" é melhor do que 95% das longas-metragens nacionais que vi nos últimos três anos.

CABIN FEVER

É o nome de um dos filmes que tenho visto no Fantasporto, mas a expressão designa outra coisa - aquela vertigem obsessiva de quando se está fechado num sítio do qual não se quer sair, aquela peculiar sensação de o mundo lá fora não fazer falta e de tudo o que precisamos estar aqui mesmo à nossa mão. Uma viagem de trabalho, mesmo que não para um festival, tem muito disso - de uma rotina inquebrável hotel-trabalho-hotel quebrada apenas pelas refeições da praxe - e, quando o intuito é ver filmes, a "cabin fever" ataca violentamente, quanto mais não seja porque o tempo livre é passado a escrever sobre eles.

O meu limite diário é de quatro filmes - e ao quarto já estou meio esgazeado, precisando rapidamente de ar fresco ou de uma mudança de ambiente. Este ano, essa violência apenas aconteceu uma vez, no sábado, e ontem fiquei-me pelos dois e meio. Até aos três, se houver pelo meio tempo e espaço para cortar com o ambiente, faz-se bem. Isso não impede,contudo, que se a ideia da manhã seguinte for ficar a dormir para recuperar a cabecinha, o dia vai ser uma sucessão difusa de imagens em movimento.

Este ano estou mais soft (o ano passado, em serviço de júri, a exigência era outra; este ano posso seleccionar melhor aquilo que realmente importa ver); não ter trazido computador e limitar o meu acesso online à horinha da praxe diária durante a qual vejo correio e condenso os pensamentos da véspera em dois ou três posts tem ajudado imenso à sanidade mental, mas ainda assim ver muitos filmes por dia, vários dias de enfiada, implica um desgaste que quem está de fora nunca imagina, convencido de que ver filmes não é trabalho. O acto de vê-los pode não o ser, mas implica o acto de pensar sobre eles ou de avaliá-los - e isso é trabalho mental, longe de fácil.

SINAIS DOS TEMPOS

Há quem diga que a melhor maneira de conhecer uma cidade é percorrendo-a a pé - embora eu já conheça o Porto, o adágio não deixa de ser verdadeiro, e cada novo passeio acaba por revelar novas sugestões, novas ligações. Ontem, por exemplo, passando junto ao Jornal de Notícias (que magnífico edifício de época, tão próximo daqueles centros urbanos de escritórios que o cinema americano dos anos 50 imortalizou!, recordando-me o edifício da Philips em Lisboa onde hoje está sediada a RDP), o viaduto fez-me recordar algo de Madrid à escala.

Depois, deslumbro-me com os sinais dos tempos que parecem, aqui, resistir bem mais do que em Lisboa. Na 31 de Janeiro ainda há um letreiro do Diário Popular, jornal que já não existe há décadas mas que, durante anos, era a leitura oficial lá de casa e o único jornal que o meu pai lá deixava entrar (o concurso das Sete Diferenças a que eu concorria todos os Verões sem nunca ganhar nada...). Por onde quer que passe, há fachadas, letreiros, dísticos, registos de outros tempos e de outras opções estéticas, muito longe do franchising e da uniformização. Há algum tempo saiu um livro chamado "Lisboa Gráfica", dedicado a este tipo de intervenções gráficas na arquitectura da cidade - para quando um "Porto gráfico", tanto mais significativo quanto no centro da Invicta há exemplos desses porta sim porta sim?

23 de fevereiro de 2004

PORTO 2004

Visto da Ribeira, mesmo junto à velha ponte de Eiffel parcialmente revestida de andaimes, o mui apregoado Funicular de Guindais parece uma montanha russa.

Está vento e frio de inverno, seco e cortante como gosto. Parou de chover ontem; o céu azul está cheio de nuvens altas. Estou sentado no café envidraçado, café e água Vidago na mesa (só nunca gostei da água do Vimeiro, achava muito doce). Sou o único cliente às onze e meia de segunda-feira (mais à frente, chega o Miguel, daquelas coincidências que nunca aconteceriam se tivéssemos combinado). Lá fora, no rio treina-se canoagem. Um autocarro descarrega um contingente assinalável de adolescentes com aspecto de adeptos de futebol ingleses, fatos de treino e ténis de marca (à excepção do cromo com bota de cowboy de biqueira bem pontiaguda, blusão de penas e calça de ganga bem justa), traído pelo cerrado sotaque nortenho. Turistas tiram fotografias ao rio que corre veloz. Agora é tudo muito típico e muito turístico; mas há quem more aqui e se veja em palpos de aranha quando o rio sobe. E aí não há turismo nem tipicidade que resista.

À boca da praça, divirto-me a olhar para os bonés, bóinas, insígnias e outra militaria na "loja das bandeiras", peculiarmente colocada em frente ao hotel. Subo pela Bolsa; entro na rua das Flores e paro longamente a olhar para as montras dos alfarrabistas, uma delas tematicamente dedicada ao Carnaval. Espécie de guardiões de memórias que a mais ninguém interessam, à espera que algum interessado, por mera coincidência, ali vá dar. O Porto é assim para mim: uma caixinha de memórias e imagens que está sempre a abrir e a fechar.

PEQUENO ESCLARECIMENTO SOBRE CALÇADO

Ainda não encontrei melhor calçado todo-o-terreno que a boa e velha bota da tropa - mais resistente, de maior longevidade e mais barata que qualquer das botas de marca que já experimentei até hoje, à possível excepção da Timberland.

(Este post não foi pago pela Oficinas Gerais de Fardamento. Eu nem fiz a tropa.)

22 de fevereiro de 2004

AFORISMO PARADOXAL

Ser politicamente incorrecto começa a ser politicamente correcto, excepto no que diz respeito às minorias oprimidas.

MANIFESTO CONTRA AS CADEIRAS DE AUDITÓRIO DESCONFORTÁVEIS

Experimentem ver quatro filmes de seguida sentados nas cadeiras do Rivoli. Experimentem ter 1m89 de altura como eu, terem as pernas encostadas à cadeira da frente e não terem maneira quase nenhuma de se reajustarem na cadeira sem a) perturbar a visão de quem está atrás b) incomodarem o vizinho do lado c) incomodarem o vizinho da frente. Experimentem já não terem posição para estarem ao fim do primeiro dos quatro filmes. Então se a sala estiver cheia, é uma tortura. Para já não falar da falta de arejamento da sala, que, quando cheia, é desconfortavelmente abafada e quente.

Não é um problema exclusivo do Rivoli. Em Lisboa, é mato as salas de espectáculos que não estão minimamente pensadas para quem é um bocadinho mais alto ou mais comprido que o normal - o CCB é um pesadelo, a maior parte dos cinemas (até o recém-inaugurado Alvaláxia!) não têm espaço para uma pessoa alta se sentir confortável. As cadeiras do Rivoli acumulam porque não são muito confortáveis - mas também é verdade que nunca foram pensadas para oito horas seguidas de utilização. E muitas salas de Lisboa também são desagradavelmente abafadas quando cheias, embora aí comece a haver melhoramentos.

De qualquer maneira, eu gosto muito do Rivoli, do modo como a intervenção arquitectónica que veio modernizar a sala soube preservar o traçado deliciosamente clássico dos exteriores e dos interiores, mantendo intactos os frisos classicistas e o ar estado-novo dos relevos e da enorme fachada cega lateral. Gosto da plateia em rampa com uma entrada traseira por um poço de escadas que nos coloca no meio da coxia - em Lisboa, o cinema Roma (hoje Forum Lisboa) tinha não uma mas duas entradas assim. Gosto de salas assim, "à antiga", centrais, bonitas.

QUEM ME MANDA A MIM FALAR CEDO DEMAIS

Pronto, já está outra vez a chover. Carnaval no Porto sem chuva (até granizo houve, ontem às cinco da tarde!) não é Carnaval no Porto.

21 de fevereiro de 2004

PEQUENA IRONIA EMPRESARIAL

Mesmo ao lado do Rivoli, uma ironia sublime: o "Palácio Atlântico", assim chamado devido ao banco que lhe deu origem, insiste num nome que a própria entidade bancária já abandonou, substituído por uma denominação mais abstracta que se encontra aparentemente a cada esquina portuense. Uma relíquia, em suma, como tantas outras que resistem teimosamente invictas.

TELEVISOR DE HOTEL

Curioso: porque será que, em todos os hotéis nacionais em que já fiquei, a CNN e o Eurosport tomam precedência sobre os quatro canais terrestres portugueses e não se apanha rigorosamente mais nada?

De qualquer maneira, vejo na CNN uma daquelas reportagens "novelty" sobre a nova invenção dos lazeres norte-americanos: o "movieoke", um karaoke cinéfilo onde, em vez de provarem à sociedade a sua falta de dotes canoros, os clientes reproduzem frente a um écrã cenas de filmes e assim demonstram a sua falta de dotes para a representação. Seria curioso fazer o exercício com cenas de filmes portugueses - desconfio que os clientes resultariam melhor que os artistas...

A LÍNGUA PORTUGUESA É MUITO TRAIÇOEIRA

Uma lição de "portuense": o mil-folhas, essa suculenta bomba açucarada de massa folhada com creme de ovos e cobertura glaceada, chama-se no Porto napoleão. Aqui, um mil-folhas é um quadrado de creme esbranquiçado entre duas fatias delgadas de pão-de-ló que em Lisboa se chama são-marcos. Lá se vão as minhas tentativas de passar despercebido.

POUCA TERRA, POUCA TERRA

Viajar de comboio não me preocupa nem me perturba tanto como outro tipo de viagens. Não tenho uma explicação plausível ou linear para isso. Gosto da pacatez sem pressas com que a paisagem vai desfilando pela janela; do embalo hipnótico do som dos carris (mesmo que, nos comboios de modelo mais recente, um pouco abafado pelo ar condicionado que me faz sentir num avião com janelas).

Uma viagem de comboio é - ou devia ser - uma espécie de oásis. Estar "em trânsito" é um intervalo: uma espécie de limbo de passagem, nem cá nem lá, fora e dentro ao mesmo tempo, sempre com uma referência visível a que nos agarrarmos. Já sabemos onde é que vamos chegar e o percurso até lá chegarmos, e sabemos sempre onde estamos, com vista panorâmica sobre a rota. Mas, ao mesmo tempo, somos meros observadores distanciados do mundo lá fora, em posição de vantagem.

Ou talvez não. Pela janela, as encostas à beira da linha estão cobertas de flores amarelas que, como bom citadino irredutível, não consigo identificar. Não sei os seus nomes e tenho pena disso. Para nós, citadinos irredutíveis, o país real é a paisagem vazia de gente, apenas cheia de casas, quintas, carros, prédios que vemos durante uma viagem de carro ou de comboio, apenas populada a espaços pelos passageiros que esperam nas estações. Como se tudo isto fosse apenas um país de brincar, ilusão de óptica causada pela perspectiva e pela distância. Como quando o comboio dá uma curva elevada rente a casas que parecem, com o movimento, rodar sobre um eixo central que não existe.

20 de fevereiro de 2004

EM TRÂNSITO

Uma viagem de comboio é sempre um intervalo na vida real; ou devia ser, porque durante as três horas do Alfa Pendular Lisboa-Porto os telemóveis não pararam de tocar na minha carruagem (com uma frequência bastante habitual: estudantes, soldados em fim-de-semana, executivos e executivos juniores, gente normal em trânsito de um lado para o outro).

Deve ser a primeira vez, das muitas que já vim ao Porto, em que chego à cidade com um céu azul radioso e o sol a brilhar sobre... as mesmas obras que já cá estavam na última vez que vim cá. Afinal, não é um exclusivo lisboeta (não que eu pensasse que o fosse; apenas que quase nunca tive a experiência aqui em cima). Mas gosto deste frio, seco e luminoso. O bloco de notas está a começar a encher-se; estar fora do habitat natural significa ver as coisas de maneira diferente.

post de sexta à tarde que, por razões meramente tecnológicas, não apareceu quando devia

19 de fevereiro de 2004

REPÚBLICA DAS BANANAS #6

Vejo um pouco por todo o lado: Luís Villas-Boas, do Refúgio Aboim Ascensão, recusa aos homossexuais o direito de criarem crianças alegando que a sua opção sexual é um desvio (ler: aberração).

Leio no DN: parece que um tenente da Brigada de Trânsito mandava escoltar a namorada quando ela vinha ter com ele (afinal, ainda há homens a sério em Portugal).

Vejo na SIC Notícias: Nuno Morais Sarmento em ofensiva de charme (uma hora inteira de entrevista com o novo visual barbudo).

Leio no Público: Pacheco Pereira descreve Santana Lopes como um político egocêntrico incapaz de pensar outra política que não seja a sua auto-promoção (enfim, um momento de lucidez! cada vez gosto mais de ler o homem - P.P., não P.S.L., cujas colunas semanais no DN - e hoje há outra - são cada vez mais dignas do Inimigo Público).

Vejo um anúncio no DN do "2º ciclo de cinema Cais" dedicado ao Ambiente - começa hoje no São Jorge, mas se não tivesse visto o anúncio não saberia nada.

Enquanto isso, as primeiras páginas preenchem-se com o empate da selecção e a página de cartas dos leitores do DN destaca um leitor que considera que a proposta do Bloco de Esquerda para os bailarinos profissionais serem considerados "de desgaste rápido" é uma anedota porque a arte não é uma profissão de desgaste rápido e uma leitora que acha que o "Mystic River" e "Uma Casa na Bruma" não deveriam ter sido classificados para maiores de 12 anos e que a comissão de classificação de espectáculos não percebe o que anda a fazer. O que, como sabemos, são tudo assuntos de interesse nacional imperativo.

Porque é que eu ainda me dou ao trabalho de me chatear com estas merdas?

PESCADINHA DE RABO NA BOCA

playlist: Joss Stone: "The Soul Sessions" (S-Curve/EMI, 2003)

Veremos o que dizem o Y amanhã e os jornais de fim-de-semana, mas hoje estreou o excelente "Pago para Esquecer", de John Woo, perante a indiferença generalizada, apesar de ter a Diva Uma e de ser baseado num conto de Philip K. Dick ("Blade Runner", "Relatório Minoritário").

Não está ao nível daqueles dois, preferindo organizar-se como um divertimento eficaz e futurista sem outro objectivo que não preencher agradavelmente duas horas sem insultar a inteligência do espectador nem lhe exigir demais. Mas John Woo é um mestre a encenar acção, a moderar o ritmo de um filme, a arranjar maneira de encher o olho sem precisar de usar efeitos visuais a torto e a direito. E há sempre algo de estimulante nas histórias de Dick, que Hollywood acaba por nunca explorar a fundo, preferindo sempre limitar-se aos pontos de partida. Aqui, estamos no dilema moral e ético da tecnologia, explorando de modo lúdico os paradoxos temporais. Não digo mais para não revelar demais, mas o filme é um entretenimento de primeira. E tem Uma, magnífica como começa a ser seu hábito.

CLUBE DE FÃS DO HENRIQUE

Venho por este meio exortar a blogosfera a inscrever-se no clube de fãs do Henrique, do qual eu, M. e J. somos os fundadores e presidentes honorários.

PEQUENA MEDITAÇÃO EM STRESS LABORAL

Detesto os períodos antes de se ir de viagem - não só porque sou criatura sedentária que precisa de algum tempo para se habituar à ideia de ir para outro lado qualquer, mas sobretudo pela quantidade de trabalho que ir de viagem implica quando se tem responsabilidades: é preciso deixar trabalho pronto para o período de ausência, antecipar questões que surjam. Sim, é verdade que hoje em qualquer porto há um telefone ou um computador, mas, por exemplo, o objectivo todo de umas férias é não ter de se preocupar com essas coisas, ou, no caso de uma viagem de trabalho, poder concentrar-se apenas naquilo que se tem para fazer e esquecer o resto. E, geralmente, nos dias antes de uma pessoa tirar um tempinho para si, cai sempre alguma urgência que é preciso despachar logo.

Isto, claro, é meramente teórico e lírico. A principal razão pela qual detesto os períodos pré-viagem é o stress acumulado que se manifesta, a sensação de ter demasiadas coisas a fazer em tempo insuficiente, a aceleração que se dá para deixar tudo resolvido. De repente, lembro-me das maratonas que fazia na EMI nos dias antes de ir de férias para deixar o máximo de questões despachadas e poder estar de férias descansado (e, mesmo assim, nunca estava). Hoje as coisas são incomparavelmente mais calmas, mas ainda assim lembro-me porque é que, a certa altura, deixei de gostar do que fazia: deixei de ter tempo para ter prazer ao fazê-lo. E isso não há responsabilidade que pague.

No resto, vou andar histérico hoje como tenho andado desde segunda-feira, e nem sequer vou de férias - apenas uns dias para o Fantasporto, o que para algumas pessoas é como se fossem férias...

17 de fevereiro de 2004

POLAROID JANTAR

Na mesa do canto do bar onde janto, um executivo sozinho frente ao jornal. Em cima da mesa, um isqueiro sobre um maço de tabaco (Marlboro Lights), um copo alto, uma garrafa de água tónica quase no fim, um jornal aberto; camisa branca de colarinho triangular sem botão, gravata vermelha, fato azul escuro, sapato preto engraxado. Dos 45 minutos que levo a jantar, ele passa uns bons vinte ao telemóvel com uma voz cujo timbre feminino se ouve em surdina do outro lado da linha, talvez a falar de trabalho. Quando saio do bar, ele ainda lá está, o copo, a garrafa, o tabaco e o isqueiro a formarem uma linha recta acima do jornal onde parece embrenhado. Um aroma de solidão mistura-se com o fumo do cigarro; talvez só fazer tempo até regressar a casa, talvez só um oásis de calma no meio de um dia trabalhoso. Talvez só enganar o jantar sozinho que não se quer ter; de um modo tão válido como as polaroids que vou tirando enquanto eu próprio janto sozinho com uma revista por única companhia.

POLAROID CAFÉ

No café em frente ao escritório do meu irmão onde por vezes lancho antes de seguir para o ginásio, entr uma miúda vestida como as miúdas andam hoje vestidas: calças de ganga apertadinhas na cintura, impossivelmente largas nos tornozelos, uma camisola justa no torso, larguinha na cintura, curta, deixando ver o umbigo (como pode haver quem ache um umbigo uma zona erógena nunca perceberei). E um pneuzinho de gordura roliço a obrigar o primeiro botão das calças a ficar desapertado, enquanto ela conta os trocos e compra um pacote de bolachas. E, contudo, o rosto ainda de bebé e o cabelo louro apanhado não a trairiam como gorduchinha; é, isso sim, a moda que a trai, porque há modas que não são feitas para serem vestidas por pessoas normais.

16 de fevereiro de 2004

DESCULPE?

Pedro Santana Lopes chama a Marcelo Rebelo de Sousa "o pregador de domingo" e diz que não aceita lições de alguém que perdeu todas as apostas em que se meteu. E diz também que tenciona cumprir o seu mandato até ao fim. Presumo que se refira ao mandato de aparecer em tudo o que é sítio a defender a sua gestão da Câmara Municipal de Lisboa, a defender-se a si próprio e a promover-se como a grande esperança laranja das eleições presidenciais. Porque, se ele faz mais alguma coisa para além disso - e do túnel do Marquês - confesso que não tenho reparado. Ou serei eu que sou despistado?

AS PALAVRAS DO MESTRE #2

"Said to Anthea, 'Those who don't have nervous breakdowns have physical ones.' Feels like where I'm heading. Desperate, sluggish feeling. (...) A. and I sat outside discussing Jews and Bosnia, euthanasia, capital punishment, Jane, big heads (I love hers - and her), computers for children (she's suspicious. Secretly so am I, but I defend them to see if they can be defended)."

- Brian Eno, entrada de 15 de Fevereiro no seu diário "A Year with Swollen Appendices"

O GLORIOSO EMPATE

Quem me conhece sabe que não ligo a futebol - nunca percebi a atracção do jogo, aquilo que leva milhões de pessoas em todo o mundo a entregar-se-lhe com a paixão que conhecemos. Mas esta noite, jantando em casa dos meus pais com o televisor ligado no canal 1, vi o golo de Simão Sabrosa que deu ao Benfica o empate com o Porto.

E, nesse instante de transcendência em que o jogador reuniu todas as suas forças e as submeteu à sua vontade imperiosa de ultrapassar a defesa adversária e atirar a bola para o fundo da baliza, nesse momento onde a espontaneidade e a técnica se encontraram levando a uma efusiva explosão sonora no estádio da Luz, percebi porque é que o futebol arrasta multidões: por um momento, é-se maior que a vida toda.

É um golo tanto mais belo quanto transporta em si a improbabilidade de conseguir articular correctamente todos os parâmetros necessários para a bola encontrar a direcção certa. Como se a física quântica pudesse ser compreendida por instinto, como se a mais complexa equação matemática pudesse ser resolvida de olhos fechados por quem nunca a viu antes. É magia, sem outra explicação corriqueira; e se o futebol fosse o equivalente contemporâneo pragmático de um qualquer paganismo ancestral?

15 de fevereiro de 2004

LOGBOOK #5: À PROCURA DE NEMO, MAS ÀS ESCURAS

Sesimbra: Baía da Armação, domingo 15 de Fevereiro, 11h56: 12.8m, 51min, 14º C

No trajecto de ida, ainda com um sol tímido a brilhar por cima de nuvens de algodão altas a tintar o céu azul, são as falésias costeiras, a cair quase a pique sobre o mar chão cor de chumbo móvel, a mostrar as camadas milenares de sedimento, que chamam a atenção. No trajecto de volta, já à beira de entrar na baía de Sesimbra, vejo meia-dúzia de pescadores de fim-de-semana empoleirados numa reentrância das rochas; pergunto-me como terão chegado ali sem ser de barco. O vento, entretanto, levantou um pouco, o céu tornou-se num capacete acinzentado de nuvens brancas sujas, caíu o frio, negado pelo azul desmaiado que retorna calmamente ao céu à medida que guio de regresso a Lisboa.

Lá em baixo, a vida fervilhante de cardumes, anémonas, estrelas do mar, salgadeiras, até um choco que pachorrentamente se passeia (qual hipopótamo subaquático) pelas rochas em declive da costa até encontrarem o mar alto numa fronteira invisível em que a areia começa a dominar, tudo me faz lembrar "À Procura de Nemo" e o seu retrato multicor dos recifes de coral australianos. Mas faltam as cores - a suspensão da água torna-a num verde enevoado, a um tempo espesso e aquoso; é preciso o foco brilhante de luz da lanterna para devolver a cor a este universo em suspensão, vogando ao sabor da corrente. E, apesar de tudo, há muito menos vida do que na imagem que fazemos dos recifes de coral australianos. A suficiente, ainda assim, para encher 50 minutos de mergulho - não foram mais porque o João Torres ficou com frio, apesar do computador marcar os exactos mesmos 14 graus da semana passada. As máquinas, pelos vistos, não têm sempre razão.

14 de fevereiro de 2004

SOU UM SER HUMANO PROFISSIONAL, MAS O QUE FAÇO COM A MINHA VIDA PRIVADA?

Assombrosa, a coluna de Andrew Sullivan na Time desta semana - lida com atraso, mas lida. "Why the M Word Matters to Me" é uma exploração sensível e inteligente da solidão que todos encontramos quando nos sentimos à parte, marginais, diferentes - qualquer que seja o motivo dessa diferença (sexual, social, profissional, you name it). Quando, a certa altura, ele escreve "(I) immersed myself in schoolwork, the debate team, school plays, anything to give me an excuse not to confront reality", está a falar de todos aqueles que nunca encaixaram no sistema, de todos aqueles que sempre se esconderam atrás do trabalho, de todos aqueles que viram a "vida normal" - seja lá isso o que for - passar-lhes ao lado. Sullivan é homossexual, mas a emoção que ele expressa é universal.

13 de fevereiro de 2004

CREME DE LEGUMES, PATANISCAS DE BACALHAU E OS JORNAIS DE HOJE

Mário Lopes em muito grande no DNMais de hoje, sobretudo graças à excelente reportagem sobre Joss Stone (aliás, vénias também a Inês Nadais, igualmente muito bem no Y - apetece-me ir ouvir o disco, apesar dos receios) - só é pena alguns tiques de construção à Nuno Galopim. Este, por seu lado, insiste na sua obsessão com os neo-românticos que já começa a cansar - ainda por cima, a página que ele hoje preenche no DNMais com compilações-refugo de neo-românticos sortidos já é mesmo demais. (A coisa estende-se para a página a seguir, mas é Ricardo Sérgio que se encarrega de dizer mal. Com propriedade, aliás.)

No DNa, fico com vontade de ler a fundo a entrevista a Elizabeth Loftus por causa da frase com que termina o lead: "Penso que alguém tem de se preocupar com os inocentes. Já temos imensa gente a preocupar-se com os culpados." Fico também com vontade de ler o texto sobre o cinema moçambicano. Contento-me com os habituais recados de Pedro Rolo Duarte, aqui a queixar-se que toda a gente vai dizer mal do disco novo de Norah Jones porque é igual ao disco antes. Da minha parte pode ficar descansado, para ser justo direi tão mal deste como do anterior, porque francamente acho aquilo tudo muito insosso (embora ainda assim ache que Norah Jones é francamente melhor que Diana Krall, mesmo apesar de Diana Krall ser a actual musa do meu guru Elvis Costello).

No Y, Kathleen Gomes assina um excelente texto sobre a trilogia de Lucas Belvaux que ontem arrancou em Lisboa, "Um Casal Encantador", "Em Fuga" e "Depois da Vida", mas fiquei sem perceber o que é que ela realmente achou dos filmes. Mais á frente, irrita-me a incapacidade dos críticos de cinema do Y de apreciarem um filme escorreito e mediano por aquilo que ele é. É verdade que um filme mediano pode ser uma coisa muito anónima, e isso nunca é um bom cartão de visita, mas há mais em "Rapariga com Brinco de Pérola" do que apenas a fotografia de Eduardo Serra e a presença de Scarlett Johansson. Acho a unanimidade da bolinha solitária muito injusta, mas enfim, eles também não gostaram de "O Grande Peixe". O café chegou antes de eu me atirar ao Inimigo Público.

SEXTA-FEIRA, 13

Já mestre Stevie o dizia, nos idos de 1972.

very superstitious, writings on the wall
very superstitious, ladders 'bout to fall
thirteen month old baby, broke the lookin' glass
seven years of bad luck, the good things in your past

when you believe in things that you don't understand
then you suffer
superstition ain't the way

very superstitious, wash your face and hands
rid me of the problem, do all that you can
keep me in a daydream, keep me goin' strong
you don't wanna save me, sad is my song

when you believe in things that you don't understand
then you suffer
superstition ain't the way

very superstitious, nothin' more to say
very superstitious, the devil's on his way
thirteen month old baby, broke the lookin' glass
seven years of bad luck, good things in your past

when you believe in things that you don't understand
then you suffer
superstition ain't the way

A VINGANÇA DE O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO

playlist: Virgínia Rodrigues: "Mares Profundos" (Edge Music, 2004)

Estava eu muito sossegadinho ontem à noite a transcrever uma entrevista (é como contabilidade ou arquivo: é daquelas coisas que tem de se fazer de rajada senão é uma chatice) quando recebo chamada no telemóvel de número desconhecido. E não é que era da TVCabo? A solícita assistente queria perguntar-me se eu não estava interessado no serviço Netcabo.

Expliquei-lhe sucintamente os acontecimentos expostos em vários posts anteriores deste blog e disse-lhe que achava este contacto no mínimo insultuoso. A senhora fez uma pausa do género se-tivesse-aqui-um-buraco-metia-me-já-nele e explicou que não tinha acesso a esse tipo de informações. A conversa não se prolongou por muito mais tempo. Escusado será dizer que ainda fiquei com pior opinião do serviço ao cliente da TVCabo.

12 de fevereiro de 2004

AS PALAVRAS DO MESTRE #1

If all I'd ever wanted to do was make money, I'd probably be really poor by now.

- Brian Eno, entrada de 12 de Fevereiro do seu diário "A Year with Swollen Appendices" (Londres: Faber & Faber, 1996)

PEQUENO MANUAL DA OBSESSÃO PARA USO PRIVADO

É aquilo a que se costuma chamar "uma puta duma canção". Pelo seu retrato do amor como desespero, esperança, confiança, certeza, insegurança, ilusão, posse, desejo, rendição, entrega, partilha, tristeza, decepção, ciúme, tudo ao mesmo tempo agora, desculpa-se tudo a Sting.

every breath you take
and every move you make
every bond you break
every step you take
I'll be watching you

every single day
and every word you say
every game you play
every night you stay
I'll be watching you

oh can't you see
you belong to me
how my poor heart aches
with every step you take

every move you make
and every vow you break
every smile you fake
every claim you stake
I'll be watching you

since you're gone
I've been lost without a trace
I dream at night
I can only see your face
I look around but it's you I can't replace
I feel so cold and I long for your embrace
I keep crying baby
baby
please

oh can't you see
you belong to me
how my poor heart aches
with every step you take

every move you make
and every vow you break
every smile you fake
every claim you stake
I'll be watching you

every move you make
every step you take
I'll be watching you

I'll be watching you.




(Aos interessados sobre o tema, estreia amanhã [hoje, que já passou a meia-noite...] o muito recomendável "Bem Me Quer... Mal Me Quer", filme-surpresa da francesa Laetitia Colombani. Cujo título podia muito bem ser "every breath you take"...)

11 de fevereiro de 2004

BREVE DISSERTAÇÃO PARADIGMÁTICA SOBRE O GOSTO

Olho para o top português de álbuns e vejo em primeiro lugar os Evanescence; uma banda que me irrita sobremaneira pelo aspecto tão completamente fabricado para o sucesso que tem, como se fossem o resultado de uma experiência de laboratório que cruzasse genes do nu-metal e do rock gótico num formato pop. Mas faz sentido que sejam primeiro lugar num país que sempre teve particular mau gosto a comprar discos (podemos lembrar-nos dos Modern Talking ou dos Century).

Faz tanto sentido como estarem os Incubus em terceiro lugar ou os Limp Bizkit terem sido coqueluche há uns anos atrás; ou seja, não faz, porque há sempre um desfasamento entre aquilo de que os jornais falam, as preferências das elites, e aquilo que as pessoas compram, o gosto das massas. Manda a regra que uns e outros estejam eternamente de costas voltadas, e quando por algum milagre existe unanimidade (vide "Tribalistas") isso não quer dizer rigorosamente nada. Faz tanto sentido como tudo o resto; ou seja, não faz.

Para que conste: cada um gosta do que gosta e todos amigos como dantes. Eu não gosto dos Evanescence e acho que quem os compra está a enfiar um barrete de todo o tamanho, mas isso sou só eu. Eu nem gosto dos Red Hot Chili Peppers.

10 de fevereiro de 2004

ISTO SOU EU. AGORA

Thomas: I'm sorry.

Isabelle: What are you sorry for? Do you know?

Thomas: No. I don't. I don't know what I'm sorry for. But I am sorry. That's got to mean something, right? I mean, whatever it is she told you... Whatever it is I was... This is me. Now. What else can I do?

Diálogo entre Isabelle Huppert, divina, e Martin Donovan, no sublime filme de Hal Hartley, "Amateur". Andei com ele na cabeça o dia todo. Deve haver uma razão.

MEMORANDO PARA MIM PRÓPRIO

MUITO IMPORTANTE - NÃO ESQUECER:

Pensar sempre no que se vai dizer antes de abrir a boca

A VITÓRIA DE O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO

É oficial: já estou em banda larga, depois de três semanas de uma telenovela venezuelana do género só-acontece-aos-outros. Para chegar a este resultado, quase insultei uma operadora particularmente burra da linha comercial da Telepac, que só faltou dizer-me ser a culpa disto tudo minha. (Como se já não chegasse o resto.) Felizmente o bom senso prevaleceu e os operadores do apoio técnico funcionaram perfeitamente. A saga, para já, conclui-se a contento de todas as partes.

OS FILHOS DA NAÇÃO

No telejornal do canal 1, pergunta-se a alunos de economia e gestão o que eles fariam para resolver a actual crise económica. Estou ali a ver os futuros senhores da nação, rapazes e raparigas bem, com um ar muito beto, roupa de marca, bem penteados, alunos da Católica ou da Nova, com um à-vontade invejável perante as câmaras, quase como se o futuro lhes estivesse garantido de bandeja, como se soubessem que amanhã serão eles a mandar. As Manuelas Ferreiras Leites e os Durões Barrosos de amanhã, os fatos-e-gravatas que estarão nos topos das hierarquias institucionais daqui por trinta anos. Uma elite, de certa maneira. Será que eles têm consciência disso? Não há nada que se possa fazer para lhes instilar um pouco de bom senso hoje?

POLAROID GCP

Uma senhora já de meia-idade, de cabelo louro, usa um fato de treino de veludo vermelho que exibe bem grande a sua marca: Dolce & Gabbana, procurando fingir uma idade que já não tem.

Os adolescentes que jogam râguebi e que vão ali fazer treino físico distinguem-se sempre pelas meias altas, pelas camisolas com motivos alusivos ao jogo. Em alguns casos, até pelo tipo físico, se é que tal é imaginável.

Há dois trintões que ali vão quase diariamente fazer o seu treino de musculação; carregam as máquinas de pesos que me assustam só de olhar para eles, depois levantam-nos com rostos de grande sofrimento e ruídos de quem está a fazer um esforço sobre-humano.

Os estagiários dos cursos de educação física parecem, quase sempre, perdidos, sem saber para onde se virar, a tentar perceber se é a isto que vão dedicar a sua vida profissional quando terminarem a universidade. Isto: passar dias a fio fechado num ginásio a fazer treinos e querer ajudar pessoas que, na maior parte dos casos, ali estão apenas por uma qualquer sensação de culpa, para impressionar alguém, para fingir que estão a fazer alguma coisa pelo seu corpo. Esses nunca se vêem muito tempo.

Algumas máquinas estão desligadas das tomadas e têm uma folha branca impressa a computador: "equipamento em manutenção". Como quase toda a gente que ali vai. Muitos deles vão irregularmente ou fazem meia-dúzia de sessões antes de desistir. Já conheço de vista os que estão ali a sério.

No balneário, os miúdos que acabam de sair do judo entram em brincadeiras parvas, próprias da idade. Um deles põe desodorizante, daqueles baratos, fortes, com um cheiro muito enjoativo, mesmo ao meu lado, enquanto um miúdo mais novo repete irritantemente tudo o que ele diz, como vingança por lhe terem atirado a mochila para cima dos cacifos.

9 de fevereiro de 2004

MEMÓRIA DE ELEFANTE

Hoje não estou muito bem comigo próprio: desiludi um amigo, sem perceber que o estava a fazer, e de repente, quando já era tarde demais, a luz vermelha de aviso acendeu-se. O mal estava feito, contudo.

Sei que falhar não me torna automaticamente numa má pessoa; para mim, contudo, é pior falhar do que ser uma má pessoa, porque não posso culpar mais ninguém senão eu próprio. E compreender o mal que se fez sem querer é infinitamente doloroso: é a dúvida metódica que se instala, para sempre, para nunca mais nos largar. Porque não há fugas nem desculpas: fui eu.

Nestas ocasiões fecho-me ainda mais, remeto-me ao silêncio magoado. Nunca esqueço os meus erros. E quando somo mais um à já longa lista que fui dando ao longo dos meus 35 anos, a minha vontade é encontrar o buraco mais próximo e meter-me nele muito de mansinho para que ninguém se lembre que eu estou ali, que eu sequer existo. E de que serve querer pertencer, querer ser aceite, querer criar laços quando sou eu que me afasto dos outros?

Lembro-me, sempre, de tudo; e é por não ser capaz de deixar o passado para trás que estou condenado à solidão. E talvez eu não mereça outra coisa.

8 de fevereiro de 2004

AS PRAIAS DESERTAS

É um dos mais belos poemas de amor que conheço.

as praias desertas continuam
esperando por nós dois
a este encontro eu não devo faltar

o mar que brinca na areia
está sempre a chamar
agora eu sei que não posso faltar

o vento que venta lá fora
o mato onde não vai ninguém
tudo me diz
não podes mais fingir

porque tudo na vida há de ser sempre assim
se eu gosto de você
e você gosta de mim

as praias desertas continuam
esperando por nós dois


- António Carlos Jobim

7 de fevereiro de 2004

LOGBOOK #4: TIRAR A CARTA

Sesimbra: Cabo Afonso, sábado 7 de Fevereiro, 11h26: 9.2m, 28min, 14º C

O dia está como no meu primeiro mergulho de mar, em Março de 1997, quando ainda estava a tirar o curso: o sol como um disco difuso de luz pálida a querer furar por trás do nevoeiro e das nuvens altas, o mar calmo e cinza. Ilusão: saímos do porto de abrigo em direcção ao Espichel, o mar a bater contra as rochas dá a entender que é melhor mudar de rumo. Na direcção oposta, o Cabo Afonso está mais abrigado, mas hoje o mar não está muito para peixe, muito embora haja uns quantos a deixarem-se ir por entre as rochas e os buracos, também eles levados pela corrente que, aqui, perto da costa, nos puxa e empurra com alguma força. Quando os conseguimos ver, que a visibilidade não está para mais de dois-três metros, e assim que algum dos meus parceiros se afasta um bocadinho perco-o logo de vista.

Atribulações: a minha máscara tem a correia torcida, está a entrar alguma água, antes mesmo de descer volto à superfície para ajustar a correia; mais à frente um não consegue compensar, volta ao barco; de repente, o nosso trio reforma-se com um extraviado que se perdeu de outro grupo no mesmo barco por entre a água verde enevoada; com o foco da lanterna vasculho os buracos a ver que peixes ali se escondem, mas não posso ficar muito tempo que os outros, apressados para chegar sabe-se lá onde, já vão mais à frente; entretanto, o segundo faz sinal de ter chegado a meio da garrafa e, no processo de voltar para trás, perde-se de nós - faço-lhe sinal com a lanterna mas ele não vê e sobe à superfície para voltar ao barco; fico eu e mais um, faço-lhe sinal para subirmos juntos e ele faz que não, que quer ficar. Vou insistindo, com alguma irritação, e finalmente lá sobe ele.

Há dois anos atrás, eu ficaria passado da cabeça e seriamente ansioso com estas confusões todas. Pior: há dois anos atrás, seria eu que as faria e não os meus parceiros (um deles "encartado" recente) nesta manhã atribulada. Hoje, surpreendo-me do à-vontade com que as enfrentei e procurei resolver, e ao fim de meia-hora de encontrões, quando subo à superfície, ainda tenho mais de metade do ar na garrafa. É tudo uma questão de prática; quando se tira a carta de condução, não se fica logo a saber guiar. É preciso tempo. Parecendo que não, estou contente.

"MEEGA, NA LA KWEESTA!" JÁ NÃO É O QUE ERA

Meto no DVD "Stitch! O Filme". O título é enganador - esta sequela directa-para-video do delicioso "Lilo & Stitch" que se tornou numa das minhas (e não só...) animações de culto recentes não é um filme, mas sim o episódio-piloto de uma hora da série televisiva que a Disney desenvolveu a partir do filme original. O extraterrestre azul, espécie de catástrofe ambulante de mau feitio e potencial destrutivo infinito arraçada de Calvin em dia mau, é uma das mais geniais personagens que os estúdios Disney já lançaram, muito mais próxima da anarquia descontrolada dos Looney Tunes clássicos.

É por isso penoso ver "Stitch! O Filme", e não só por ser feito para a televisão, sem a intervenção da equipa criativa do filme original: é como se Stitch, personagem de cinema se alguma vez existiu uma pela sua vontade de estilhaçar sistematicamente as regras e as convenções, pelo seu próprio estatuto de alienígena fabricado em laboratório, se visse de súbito encerrado numa jaula de jardim zoológico. Ainda por cima, o objecto, com uma hora de duração e animação de segunda categoria, tem realmente poucos rasgos de inspiração ao nível do filme original, do qual por outro lado recicla grande parte das situações embora noutros contextos.

Talvez que a série tenha mais piada, mas fica-se a perceber porque é que fazer uma sequela é muitas vezes uma má ideia. Mesmo para produto directo para video "Stitch! O Filme" é fraquito.

6 de fevereiro de 2004

O REGRESSO DE O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO

Ainda não foi desta que instalei a banda larga. Apesar de ter o modem instalado, o computador configurado, a ligação feita, alguém na Telepac meteu a pata na poça e avisou-me de que a minha linha ADSL estava activa. Há três dias que não consigo ligação e foi preciso insistir para saber se estava tudo bem com a minha configuração para o operador do serviço aos clientes me dizer, com um tom incrédulo na sua própria voz, que de facto o serviço não tinha ainda sido activado embora tudo desse a indicar que sim (até, espante-se, o próprio modem que mantém ali, com ar trocista, as duas luzes verdes de presença teimosamente acesas).

Fiz o meu melhor esforço para não desatar em impropérios ofensivos até para um parente afastado do paciente operador que não tem culpa nenhuma no meio disto, aproveitei para lavrar a minha reclamação por aquilo que considero ser a absoluta incompetência das empresas de telecomunicações portuguesas no geral, e como a primeira regra de qualquer operador de serviço ao cliente deve ser dizer ao cliente que ele tem sempre razão, do outro lado apenas ouvi anuências e interjeições contritas. Deve ser frustrante ser operador de serviço ao cliente na Telepac, na TVCabo, etc, etc. Há duas semanas que esta telenovela venezuelana continua e cada vez mais me convenço que Portugal é um país à deriva.

POLAROID METRO

Momentos antes, no cais da Alameda, enquanto esperávamos pelo comboio, falávamos desses personagens estranhos que percorrem Lisboa, aparentemente desfasados do quotidiano normal ou apenas vivendo num quotidiano seu onde as regras normais não se aplicam. Da senhora que sobe às vezes a minha rua e se detém algumas portas abaixo da minha, em frente a um pátio à antiga, para proferir longamente impropérios dirigidos a um morador do pátio de quem, segundo julgo compreender, terá sido companheira. Do escarcéu à antiga lisboeta que se cria nesses momentos irregulares.

Estávamos, os três, encostados à divisória que abre para a cabine, a conversar. À aproximação de uma estação, um senhor dos seus 50 anos sentado num dos bancos levanta-se. Traz um anorak azul de modelo antigo, uma pasta; tem os cabelos e o bigode grisalhos, usa óculos, a tez pálida que identifico com um fumador em excesso. Agarra-se ao varão central como se fosse sair na próxima estação, virado para nós, mas não sai. Fica a olhar para nós como se estivesse a ouvir a nossa conversa, como se fizesse parte do nosso grupo, como se nos fosse perguntar alguma coisa. Olha para mim, ora para M., ora para C., de acordo com o fluir da conversa. Reparamos, mas fingimos que não, continuamos a conversar como se nada fosse, escondemos o incómodo o melhor que podemos. Na chegada à estação seguinte, larga o varão e coloca-se em frente à porta, muito encostado, e sai assim que as portas abrem.

REPÚBLICA DAS BANANAS #5

Portugal parece por vezes funcionar por uma lógica de passa-a-outro-e-não-o-mesmo de desresponsabilização crónica. Há uns dias, falei aqui de uma peça na Time onde se falava dos cientistas europeus que se passaram para os EUA por aí ser mais fácil prosseguir com algum desafogo o seu trabalho; alguns dos entrevistados sentiam-se cerceados por uma burocracia kafkiana que conspirava para travar a pesquisa.

Portugal é um país de burocracia kafkiana - não sei se por resultado das décadas de obscurantismo atravessadas ou por genética enraizada - que nos força a contentarmo-nos com os pequenos triunfos quotidianos sem importância, na certeza de que será difícil ou mesmo quase impossível que ela se multiplique numa vitória decisiva. Não é de espantar que o futebol seja tão polarizador - é uma maneira de sublimar a modorra cinzenta de um quotidiano difícil - mas mesmo nessa polarização vêm ao de cima as peculiares características de "país do empata" que nós somos, em que uma decisão nunca é definitiva porque é sempre possível voltar atrás e ver as coisas sob outro prisma.

Olho para os jornais, vejo as notícias na TV, e não gosto do que vejo. Sei que sozinho não o consigo mudar, e não acredito que a maior parte das pessoas pense sequer duas vezes no assunto; é tão mais fácil criticar do que levantar o rabo da cadeira e fazer alguma coisa, é tão mais fácil deixar andar e esperar que sejam os outros a resolver os problemas. E o problema é mesmo esse: esperamos sempre que sejam os outros.

5 de fevereiro de 2004

OLHA O FOGUETE

Quem nunca se sentiu um astronauta ao menos uma vez na vida?

she packed my bag last night pre-flight
zero hour, nine a. m.
and I'm gonna be high as a kite by then

I miss the Earth so much
I miss my wife
it's lonely out in space
on such a timeless flight

and I think it's gonna be a long, long time
til touchdown brings me round again to find
I'm not the man they think I am at home
oh no, no, no
I'm a rocket man
burning out his fuse
up here alone

Mars ain't the kind of place to raise the kids
in fact it's cold as hell
and there's no one there to raise them
if you did

and all this science I don't understand
it's just my job five days a week
a rocket man
(just my job, five days a week)
a rocket man

and I think it's gonna be a long, long time
to touch down brings me round again to find
I'm not the man they think I am at home
oh no, no, no
and I think it's gonna be a long, long time
to touch down brings me round again to find
I'm not the man they think I am at home
oh no, no, no
I'm a rocket man
rocket man
burning out his fuse
up here alone

I think it's gonna be a long, long time

O CINEMA A SÉRIO É OUTRA COISA. MAS...

Uma das fitas que estreia hoje em sala é a versão cinematográfica das aventuras de Michel Vaillant, produzida por Luc Besson. Confesso que o objecto reenviou-me para a banda-desenhada franco-belga que eu devorava quando era miúdo, na passagem dos anos 70 para os anos 80, na revista Tintin e nos álbuns cartonados de capa dura que a Bertrand publicava com os heróis da revista.

Quando se tem dez, doze anos, as questões da verosimilhança e da densidade narrativa são vistas de maneira diferente; na altura gostava dos livros de Michel Vaillant, hoje acho aquilo tudo básico e datado. Mas acho que é precisamente por isso que gosto do filme de Louis-Pascal Couvelaire que hoje estreia: porque apanha muitíssimo bem essa dimensão juvenil e básica da aventura, porque propõe uma divisão do mundo simples e fácil que a realidade nos mostra ser implausível e impossível.

No mundo de Michel Vaillant os bons são bons, os maus são maus, sabemos com quem podemos contar, e as velhas virtudes éticas da honra, da lealdade, do companheirismo são todos erguidas ao grau máximo; o bem triunfa sempre sobre o mal, mesmo que por um preço. O filme é muito fiel a esse espírito dos livros, mesmo que não os adapte à letra (e ainda bem que não o faz, senão seria ridículo). E, por hora e meia, é bom reencontrar a simplicidade reconfortante dos prazeres de miúdo, ainda por cima filmada com um virtuosismo puramente estético mas bastante convincente.

Claro que o cinema a sério é outra coisa, e "Michel Vaillant" é como uma refeição de junk food. Mas mesmo os nutricionistas dizem que uma refeição de junk food uma vez de longe em longe não é nada de catastrófico. E a comparação até faz sentido - os putos gostam muito de junk food, e eu senti-me puto a ver "Michel Vaillant".

4 de fevereiro de 2004

CUIDADO JOSELITO, SEU PAI MORREU FAZENDO ESSE NÚMERO

Há dias em que me canso de estar sozinho, fechado no meu universo entrópico, e desejo sôfregamente estar com alguém, ouvir uma palavra amiga, sentir que há alguém do lado de lá a compreender.

E há dias em que me retiro de regresso a ele, como um cão que retorna cabisbaixo, lambendo as suas feridas, jurando para nunca mais sair do cantinho que lhe está reservado.

Algures pelo meio há um equilíbrio delicado e fugidio que só se encontra a muito custo. E há alturas em que temos mais paciência para o procurar do que outras.

Há quem nunca o encontre. E esse é um dos meus temores.

AMANHÃ É DIA DE PEIXE

Amanhã estreia "O Grande Peixe". É o grande novo filme de Tim Burton; uma daquelas jóias preciosas que aparece de proveniências incertas e suspeitas e que nos apanha à socapa sem nós darmos por isso. Confesso que não sabia o que esperar de Burton depois de "Planeta dos Macacos", e o facto da crítica americana não ter sido muito simpática com o filme deixou-me ainda mais de pé atrás.

Não havia razões para isso, afinal: "O Grande Peixe" é para Tim Burton, de uma só vez, o fecho de um ciclo, o abrir de um novo e um "ponto da situação" onde tudo de repente fica claro. É um filme sobre a família, sobre a herança, sobre a morte e sobre a vida, sobre o amor, sobre as grandes emoções que nos marcam os momentos mais ínfimos. E o título é perfeito: tal como um peixe se nos escapa pelas mãos quando o queremos agarrar, também "O Grande Peixe" se esquiva a todas as tentativas de definição. À excepção de uma, e mesmo essa é escorregadia: obra-prima. Tim Burton nunca fez nada assim - e só o podia ter feito agora.

3 de fevereiro de 2004

PEQUENO DESABAFO IRRITADO

Vão-me certamente desculpar o desabafo. Não é dirigido a nenhum dos visitantes regulares que deixam comentários ou reflexões pessoais a propósito daquilo que aqui vou deixando à laia de diário pessoal dos dias que correm.

Tinha eu acabado de colocar o post abaixo e já lá estava um comentário. Achei estranho. Fui lê-lo. Dizia assim: "Banana Republic. Pode? See you later in my blog." Ass: Céline.

Fiquei incrédulo pelo absoluto despropósito face ao tópico do post, só explicável por ele ter sido gerado e publicado aleatoriamente sem que tenha havido intervenção "humana", sem que alguém tenha reparado onde é que ele ia cair. (Presumo que se alguém tivesse reparado não teria sido colocado ali.)

Já não é a primeira vez que vejo aqui comentários aleatórios. Uma vez surgiu um comentário de um gajo inglês a dizer que tinha ouvido falar do meu blog e tinha gostado muito do que tinha lido - isto quando o blog ainda tinha começado e o gajo claramente não percebia português. Já aconteceu mais duas ou três vezes.

No limite, é como se quem deixa esses comentários-links o faça com a exclusiva intenção de coleccionar visitas e visitantes, manifestando um enorme desrespeito pelo que aqui se escreve - e que, falo por mim e pelo meu caso, não deixa nunca de ser intensamente pessoal. Dir-me-ão que faz parte do jogo da exposição pública encontrar quem nos seja indiferente ou mesmo avesso, e não o negarei, embora em rigor o carácter pessoal e intransmissível do que aqui escrevo me deixe razoavelmente imune a essas questões. Mas este comentário que suscitou o meu desabafo não configura indiferença nem aversão; apenas displicência e desrespeito.

Como é evidente não estou com isto a pretender sequer censurar os comentários que qualquer um aqui queira fazer, nem me dirijo à grande maioria dos que por aqui passam mais ou menos regularmente e têm sempre alguma coisa a dizer sobre as linhas que vou deixando. Estou só a desabafar: não acho graça a ver algumas coisas que me saem cá de dentro serem passadas por cima com tanta leviandade. Pronto.

Este post foi editado, por razões que por acaso têm a ver com um comentário deixado pelo Alexandre Monteiro na janelinha de comentários. No segmento que cortei reportava-me ao caso dos comentários que o Tiago Pimentel teria vindo a deixar em posts que aparentemente nada tinham a ver, e em conversa com o Tiago ele confirmou-me que, de facto e como o Alexandre dá a entender, há quem ande a postar por ele. O meu pedido de desculpas ao Tiago, o meu agradecimento ao Alexandre. O argumento e o desabafo mantêm-se.

IN MEMORIAM

it was only one hour ago
it was all so different then
there's nothing yet has really sunk in
looks like it always did
this flesh
and bone
is just the way that you were tied in
now there's no one home
I grieve
for you
you leave
me
it's so hard to move on
still loving what's gone
they say life carries on
carries on and on
and on
and on

the news that truly shocks
is the empty, empty page
while the final rattle rocks
its empty, empty cage
and I can't handle this
I grieve
for you
and you leave
me
let it out and move on
missing what's gone
they say life carries on
they say life carries on
and on
and on

life carries on in the people I meet
in everyone that's out on the street
in all the dogs and cats
in the flies and the rats
in the rot and the rust
in the ashes, in the dust
and life carries on and on
and on and on
life carries on and on
and on

it's the car that we ride in
the home we reside in
the face that we hide in
the way that we are tied in
and life carries on and on
and on and on
life carries on and on
and on

did I dream this belief
or did I believe this dream
now I can't find relief

I grieve.


(Peter Gabriel: "I Grieve", para D. e J.C., porque quero dizer algo, porque não sei o que dizer nem como dizê-lo e porque, mesmo correndo o risco de parecer banal, mesmo que esteja a ser inoportuno, mesmo que não sirva de nada, prefiro dizê-lo assim a não dizer nada.
E, sempre, em memória do Rui Ferreira, a quem nunca soube dizer em pessoa, enquanto pude, o tanto, o tudo que ainda, hoje, todos estes anos depois, lhe devo.)

2 de fevereiro de 2004

REPÚBLICA DAS BANANAS #4

Não vos parece que o futebol é sempre o tema de abertura dos telejornais de segunda-feira? E sempre pelas razões erradas?

E é preciso vir o professor Cavaco Silva para nos dizer que as presidenciais são só daqui a dois anos e que há coisas muito mais importantes em Portugal para discutir agora?

1 de fevereiro de 2004

PAZ, PÃO, HABITAÇÃO, SAÚDE, EDUCAÇÃO

A última edição da Economist dedica algumas páginas a uma análise da má situação do ensino universitário em Inglaterra, onde Tony Blair vai propôr uma alteração aos estatutos das universidades que implicará um aumento no valor das propinas. Há algumas semanas, a Time dedicava a história de capa aos cientistas e investigadores europeus que prosseguiram as suas carreiras académicas nos Estados Unidos, aproveitando o maior reconhecimento, as maiores oportunidades e os maiores incentivos financeiros à investigação académica.

No limite, o que ambas as peças davam a entender é a necessidade de reformar o conceito de ensino universitário público, aproximando-o do modelo americano de "oferta-e-procura", em que as universidades são livres de cobrar as propinas que entenderem, mas que cultiva um grau de exigência do aluno completamente diferente do modelo inglês/europeu em grande parte subvencionado e regulado pelo estado. É quase uma relação fornecedor/cliente, prestador de serviços/consumidor: quem paga exige um serviço condigno com o valor que pagou.

Evidentemente, em Inglaterra a questão não está a ser nada pacífica. Faço a ligação com as crises das propinas que têm levado os estudantes à rua nos últimos anos, e recordo-me da minha própria experiência académica (já com quase vinte anos, é certo, mas ainda assim). Fiz Letras na Clássica em Lisboa, não porque quisesse ser professor ou seguir carreira académica, mas porque era realmente a única coisa que alguma vez pensei seguir, a única para a qual sentia vocação. Estive na universidade por gosto e por curiosidade intelectual - porque quis saber e aprender mais, independentemente do que depois poderia fazer com o curso que tirei. Mas, como eu, não havia muitos.

Grande parte das pessoas que encontrei na Clássica durante o meu curso estava na universidade porque queria ter um diploma, o célebre "canudo" que uma certa mentalidade ainda achava símbolo de estatuto e de entrada automática numa outra e melhor vida profissional, mas não estava em Letras por gosto. Estava porque era o curso onde a média para entrar era acessível, ou porque era o que exigia menos das suas capacidades intelectuais, ou porque era aquele que parecia mais fácil. Facilmente metade dos alunos que cruzei durante os meus quatro anos de licenciatura eram estudantes sofríveis ou desinteressados, apenas a marcar tempo para entrar no mercado de trabalho melhor armados do que se não tivessem seguido um curso superior. Como se tirar um curso garantisse automaticamente um emprego melhor.

Calculo que muitos deles tenham acabado a exercer ensino liceal, sem gosto nem vontade, sujeitos à lotaria das colocações e mini-concursos que todos os anos preenche horas de telejornais. O grau de exigência destes alunos para com os seus professores era zero; era muito fácil perceber, ao fim de algumas semanas, quem eram os professores que puxavam por quais alunos, e quais os alunos que tinham gosto em estar ali. Havia até quem já nem tentasse fingir interesse.

Isto tudo para dizer que se aumentar o valor das propinas universitárias garantir uma elevação do nível do ensino superior nacional público, e evitar as constantes crises e apertões financeiros que as instituições universitárias sistematicamente sofrem, acho muito bem que se aumente, sob pena de entrarmos numa espiral sem regresso em que temos cada vez mais alunos a entrar num sistema universitário cada vez em pior estado. Compreendo que haja, sobretudo em tempo de crise, quem tenha dificuldades para o fazer; mas também acho que esses casos (que não me parece correspondam à grande maioria dos universitários) devem ser ajudados e apoiados por quem de direito, e deve haver um regime excepcional para tomar conta deles.

E, sobretudo, nenhuma universidade pode ficar contente por saber que não está realmente a perpetuar saber e conhecimento nem a estimular intelectualmente quem a frequenta, mas sim apenas a processar alunos de um ponto A para um ponto B ao longo de um curso superior.