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29 de fevereiro de 2004

POLAROID MONUMENTAL

Um casal quarentão vê os cartazes dos filmes no átrio do Monumental. Falam muito alto, com o sotaque e a linguagem daquilo a que nos habituámos a chamar os bairros populares de Lisboa, com a voz rouca típica de quem teve de começar a desembaraçar-se na vida muito cedo. Estão vestidos "à moda", mas isso cria uma estranha décalage com o tipo físico e com a voz: ele tem uma camisola justa por cima de uma T-shirt, carteira na mão; ela tem o cabelo artificialmente louro e óculos escuros espalhafatosos, veste-se num arremedo triste de se agarrar a uma juventude que talvez não tenha tido, com calças boca-de-sino larguíssimas e ténis de cor. Vêem os horários e ela chama-lhe teimoso que nem uma mula, o filme não corre às horas que ele insistia; ele diz para não lhe chamar mula senão leva uns açoites no rabo; ela levanta a perna para lhe dar um chuto, ele agarra-lhe na perna e ela cai redonda no chão do átrio. Ele ajuda-a a levantar-se, ela senta-se nos bancos e amua; ele pede-lhe muitas desculpas, como se as estivesse a pedir a uma criança, enquanto o telemóvel emite uma melodia interminável. Ela amua, meditabunda, ele continua a falar, tenta convencê-la a ir tomar um café, tudo sempre num tom de voz muito alto, como se estivessem em sua própria casa. Acabam por descer as escadas e sair para a rua.

Cá fora, famílias alargadas e pais a gritar aos filhos. Rodrigo esteja quieto. Anda cá Alice. Uma senhora vende castanhas a partir de uma daquelas armações montadas à frente de uma motocicleta antiga; uma outra, de faces rosadas, vestida com roupas grossas, ténis e um gorro de lã, conversa com ela e vai-se embora, olhando-me fixamente enquanto tomo notas encostado ao pilar. Um rapaz passeia de bicicleta. Outro move-se sem parar, à espera de alguém que não aparece. Um pombo vem passear-se por cima do logotipo do Monumental desenhado no mosaico de calçada, talvez procurando algum pedaço de castanha assada que tenha caído, talvez apenas buscando o calor que emana do forno, o cheiro do carvão queimado e o fumo branco levados pelo vento em direcção ao Saldanha.

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