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1 de maio de 2004

AMBIVALÊNCIAS

O meu pai riu-se muito com a coluna do Vasco Pulido Valente no Diário de Notícias de hoje, e com o cartoon do Público ("Abril é uma seca"). Faz-me confusão vê-lo no quarto do hospital, antigo, vestido de pijama com um tubo translúcido a sair-lhe da braguilha e a ir dar a um saco cheio de um líquido vermelho desmaiado. E se ele tiver de ficar no hospital para lá de segunda-feira?

A minha mãe está casmurra como só uma idosa que não se entende no mundo moderno e se vê de súbito desprovida do seu "fiel da balança" pode estar (tem dificuldade em andar, ouço-a a arrastar-se pelo corredor de casa): passa as tardes no hospital com o meu pai, tentando animá-lo enquanto ele se aborrece a ver televisão, falando sem parar enquanto ele tenta ler os jornais do dia ou os livros que tem à cabeceira. São as poucas ocasiões que tenho de conseguir despachar trabalho, quando ela cá está chama-me de dez em dez minutos, às vezes porque precisa da minha ajuda, às vezes só porque não tenho as coisas como ela está habituada em casa dela.

Cuidar da minha mãe é uma ocupação a tempo inteiro que ninguém aceitaria fazer sem ser bem remunerada/o, porque equivale a pôr de parte a nossa própria vida pessoal para maior conforto dela. Este conceito de sacrifício será decerto muito cristão (a este propósito: vale a pena ler esta história que saiu na Time desta semana, pelo lado de exemplo moral que os americanos tanto gostam de erguer), mas o meu problema é que não fui criado na religião e moral católica, já que o nosso pai se incumbiu de nos incutir o mais veemente agnosticismo.

Tenho uma relação complicada, ambivalente, diria mesmo distante com os meus pais – resultado de uma coexistência demasiado prolongada para lá do que é normal para uma relação que aspira a saudável. (Sim, fiz parte da geração canguru. Se soubesse o que sei hoje, etc, etc.) Mas o simples facto da questão é que tudo isto apenas me veio mostrar como a minha vida é vivida na tensão de um brinquedo de corda com medo de que a corda parta a qualquer momento, e todos sabemos que geralmente essas coisas acontecem precisamente no momento em que menos devem. Não o posso controlar, é certo, mas posso tentar limitar os estragos.

No entretanto, o meu pai supostamente tem alta na segunda-feira; e a minha mãe está desejosa de o ter em casa, porque sabe que se sente completamente desasada sem ele. E, pelo menos, de todo este episódio resultou que ela já começou a perceber que as coisas não podem continuar como estavam, e que vai ser preciso fazer mudanças, significativas, no modo como os meus pais vivem/viviam no seu mundo fechado à realidade. Para já, ela ressona. É bom sinal: está a descansar. É mau sinal: até no sofá da sala se ouve o ressonar.

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