Blog-notas de ideias soltas; post-it público de observações casuais; fragmentos em roda livre, fixados em âmbar. Eu, sem filtro. jorge.mourinha@gmail.com
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13 de junho de 2004
DO CABARÉ PARA O CONVENTO
O meu pai não gosta da maior parte dos filmes de Pedro Almodóvar (embora não tenha visto os últimos) porque acha que "são muito naïf". A afirmação faz todo o sentido aplicada a "Negros Hábitos", fita de 1983 que agora saiu em DVD e que estive a ver na sexta-feira em casa de amigos depois de agradável refeição: a terceira longa-metragem de Almodóvar é um objecto onde se detectam já muitas das "marcas registadas" do realizador, afogadas pelo meio da pobreza da produção e do amadorismo dos raccords e da montagem.
No essencial, o filme é uma primeira iteração dos tópicos da identidade e do desejo que percorrem toda a sua alma, disfarçado dentro de uma subversão actualizada dos dramalhões latinos de faca e alguidar que, em Lisboa, passavam no Odeon ou no Avis: uma mulher perdida, cantora de cabaré e prostituta, refugia-se no convento para recomeçar a vida do zero, fugindo à atenção da polícia que suspeita de envolvimento seu na morte do namorado (um toxicodependente morto de overdose de produto adulterado). Só que o convento das Redentoras Arrependidas onde ela se refugia é tudo menos o espaço de clausura habitual: a madre superiora é uma heroinómana lésbica, uma das irmãs escreve romances de cordel sob pseudónimo, outra (Marisa Paredes, de "A Flor do Meu Segredo" e "Tudo Sobre a Minha Mãe") diz ter visões do Senhor depois de tomar ácidos, outra ainda (Carmen Maura) tem como bichinho de estimação um tigre adulto a quem toca congas para que ele se lembre de África.
Visto na altura em que estreou, "Negros Hábitos" seria uma curiosidade excêntrica, com pormenores interessantes mas insuficientes para perceber se estaria ali cineasta. Percebia-se já a direcção de actrizes, a capacidade de escrever diálogos e de subverter por dentro a estética do melodrama, de dizer coisas sérias a brincar, mas falta ainda o savoir-faire técnico e o conforto de produção que ajudariam Almodóvar a dar saltos de gigante nos filmes seguintes. Há ainda uma sensação de alguém a brincar ao cinema, sem saber muito bem o que está a fazer, mas com um charme inegável.
"Negros Hábitos" estreou em Portugal com seis anos de atraso, em plena "febre" Almodóvar, três meses depois de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos". Estreou (imaginem!) no Condes, com um cartaz que reproduzia em parte o original espanhol mas com o nome de Carmen Maura puxado para primeiro plano, muito embora a actriz que viria a celebrizar-se como musa do realizador aqui tivesse um mero papel secundário, numa daquelas tácticas de "chico esperto" que os distribuidores de cinema "à antiga" arranjavam para levar os pacóvios ao cinema. Lembro-me que "Negros Hábitos" ficou pouco tempo em cartaz. O DVD que agora sai não tem extras e o master não está em grande estado, parecendo ter sido feito a partir de uma cópia de película com algumas irregularidades.
E o Zé tem alguma razão: terá estado aqui a inspiração para "Do Cabaré para o Convento"?
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