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2 de abril de 2004

OS TEMPOS QUE CORREM

Substituam onde apropriado e digam lá se não se podiam aplicar estes pronunciamentos aos tempos que correm.

— Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.

(...) o Ega falava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta de independência. Um receio tão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em deixar cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal (...) Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a Galiza estendida até ao Douro...

(...) E enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via ele a "salvação do país" (...)

— Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio português! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos (...) estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilização como outrora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o st. emilion.

(...) E, no silêncio que se fez, Dâmaso (...) ergueu a voz pausadamente, disse, com ar de bom senso e de finura:

— Se as coisas chegassem a esse ponto, se se pusessem assim feias, eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris...

Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se, pirar-se!... Era assim que de alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!...

(...) Ega rugiu. Para que estavam eles fazendo essa "pose" heróica? Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecia no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarde raça da Europa?...

— Isso são os lisboetas — disse Craft.

— Lisboa é Portugal — gritou o outro. — Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...


- Eça de Queirós, "Os Maias" (1888)

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