"A minha família e os meus amigos sempre acharam que eu tinha mau gosto... (...) Reivindico os prazeres que tenho, mesmo que outros os achem estúpidos. Recuso a atitude tão frequente de pessoas que dizem, ao sair do cinema, rimo-nos muito, pois rimos... mas era uma parvoíce tão grande! Da minha parte, se me emocionei ou se me ri, não quero renegar essas emoções em nome de um qualquer nível cultural. O que não significa que me limite ao cinema para o grande público. Como espectador, sou um camaleão, capaz de ter gostos muito diversos, e de gostar de filmes que não têm nada a ver com os meus."
- Alain Resnais, em entrevista a Emmanuel Burdeau e Jean-Michel Frodon, na edição de Dezembro dos Cahiers du Cinéma
Blog-notas de ideias soltas; post-it público de observações casuais; fragmentos em roda livre, fixados em âmbar. Eu, sem filtro. jorge.mourinha@gmail.com
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31 de janeiro de 2004
JARDIM DE INVERNO
playlist: Marvin Gaye: "I Want You" (Tamla, 1976)
Na penumbra criada pelos projectores azuis na sala, as cadeiras e as mesas metálicas criam um ar de esplanada que a armação metálica estilizada e o trompe-l'oeil pré-rafaelita da mesa do fundo apenas reforçam. Claro que, depois, as caixas abertas que emolduram as janelas panorâmicas a dar para a rua, equilibradas do outro lado da sala por blocos claros fechados, quebram a ilusão. Mas parece-me bem estimulante este equilíbrio discreto entre a modernidade e o classicismo que a intervenção arquitectónica que veio restaurar o São Luiz conseguiu. Não se perderam nem os traçados que nos habituámos a reconhecer, nem a identidade própria que a sala ganhou ao longo dos anos; mas soube-se trazê-la para o presente sem a descaracterizar. O Jardim de Inverno é um espaço convidativo e agradável, onde dá prazer estar a assistir a um espectáculo, e recorda-me de noites passadas lisboetas de que os meus pais me falavam mas que ficaram para trás no tempo - desde o Chiado Terrasse ao terraço do Capitólio, em alturas em que a noite de Lisboa se construia por outros (quem sabe mais estimulantes?) circuitos.
Na penumbra criada pelos projectores azuis na sala, as cadeiras e as mesas metálicas criam um ar de esplanada que a armação metálica estilizada e o trompe-l'oeil pré-rafaelita da mesa do fundo apenas reforçam. Claro que, depois, as caixas abertas que emolduram as janelas panorâmicas a dar para a rua, equilibradas do outro lado da sala por blocos claros fechados, quebram a ilusão. Mas parece-me bem estimulante este equilíbrio discreto entre a modernidade e o classicismo que a intervenção arquitectónica que veio restaurar o São Luiz conseguiu. Não se perderam nem os traçados que nos habituámos a reconhecer, nem a identidade própria que a sala ganhou ao longo dos anos; mas soube-se trazê-la para o presente sem a descaracterizar. O Jardim de Inverno é um espaço convidativo e agradável, onde dá prazer estar a assistir a um espectáculo, e recorda-me de noites passadas lisboetas de que os meus pais me falavam mas que ficaram para trás no tempo - desde o Chiado Terrasse ao terraço do Capitólio, em alturas em que a noite de Lisboa se construia por outros (quem sabe mais estimulantes?) circuitos.
29 de janeiro de 2004
O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO
Ainda não é hoje que vou migrar para a banda larga. Senão, vejamos: marquei a instalação de uma tomada de cabo; pedi depois para alterar o dia por não poder estar em casa no dia; garantem-me no processo que a primeira data foi desmarcada e que ninguém aparece; não me aparecem na segunda data; telefono para a TVCabo a perguntar o que se passa e dizem-me que já vieram, na primeira data (que me garantiram que tinha sido desmarcada), e ninguém respondeu, quando à hora que dizem que ninguém respondeu eu até tinha acabado de chegar a casa; dizem-me também que já não podem vir hoje e agora só segunda-feira (claro, tinha de ser num dia que eu não posso de todo). Nesse caso, meus amigos, boa noite e um queijo; o cliente não tem de levar com a incompetência do vosso serviço ao cliente. No mínimo, deveriam fazer um esforço para vir cá hoje ainda ou então amanhã; mas como agora é só quando vos convém, acabam de perder um cliente Netcabo. A reclamação segue dentro de momentos. ADSL, aí vou eu.
MUNDOS SECRETOS #5: PEREGRINAÇÃO
De vez em quando, lembro-me dela e do que os seus discos representaram para mim durante os meus anos de universitário. Ainda hoje ela me toca como poucos outros; ainda hoje a sua música (só a música? não; também, sobretudo, ainda e sempre aquelas letras que tocam de muito perto a poesia, que tudo dizem quase sem precisar de dizer nada) continua guardada no jardim secreto onde só alguns têm acesso constante e privilegiado.
Ainda por cima, eu gosto, muito, do disco de Suzanne Vega de que quase todos se esquecem: "Days of Open Hand" (A&M, 1990), que provou que ela não tinha mesmo interesse nenhum em ficar quietinha na gaveta em que a queriam meter, em que brincou com electrónicas, texturas, ambições, e pediu para não a meterem em lado nenhum. Uma viagem ao inconsciente, a tudo aquilo que nos atrai, fascina, assusta e intriga, que encerra com uma letra que condensa a indefinível humanidade que todos transportamos: o nosso caminho, a nossa busca, o nosso desejo, o nosso receio. Na página do caderno do álbum onde a letra surge reproduzida, uma colagem de cartas de jogar, letras, objectos, evoca a dicotomia "liar"/"promise". Parece-me adequado a uma canção que, hoje, ressoa de modo muito maior do que na altura e onde podemos ler tudo o que quisermos. Eu leio "a vida e tudo o mais", para citar Woody Allen.
this line is burning
turning to ash as it hits the air
every step is a day in the week
it's a sunday or monday
a march over months of the year
this life is burning
turning to ash as it hits the air
every death is an end in the race
it's a stopping and starting
a march over millions of years
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
this land is burning
turning to ash as it hits the air
every line is a place on a map
it's a city or valley
a mark on these miles of fields.
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
this line is burning
turning to ash as it hits the air
every step is a day in the week
it's a wednesday or thursday
a march over months of the year.
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
Ainda por cima, eu gosto, muito, do disco de Suzanne Vega de que quase todos se esquecem: "Days of Open Hand" (A&M, 1990), que provou que ela não tinha mesmo interesse nenhum em ficar quietinha na gaveta em que a queriam meter, em que brincou com electrónicas, texturas, ambições, e pediu para não a meterem em lado nenhum. Uma viagem ao inconsciente, a tudo aquilo que nos atrai, fascina, assusta e intriga, que encerra com uma letra que condensa a indefinível humanidade que todos transportamos: o nosso caminho, a nossa busca, o nosso desejo, o nosso receio. Na página do caderno do álbum onde a letra surge reproduzida, uma colagem de cartas de jogar, letras, objectos, evoca a dicotomia "liar"/"promise". Parece-me adequado a uma canção que, hoje, ressoa de modo muito maior do que na altura e onde podemos ler tudo o que quisermos. Eu leio "a vida e tudo o mais", para citar Woody Allen.
this line is burning
turning to ash as it hits the air
every step is a day in the week
it's a sunday or monday
a march over months of the year
this life is burning
turning to ash as it hits the air
every death is an end in the race
it's a stopping and starting
a march over millions of years
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
this land is burning
turning to ash as it hits the air
every line is a place on a map
it's a city or valley
a mark on these miles of fields.
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
this line is burning
turning to ash as it hits the air
every step is a day in the week
it's a wednesday or thursday
a march over months of the year.
travel. arrival.
years of an inch and a step
toward a source.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
I'm coming to you.
I'll be there in time.
DOMO ARIGATO
Gosto da riqueza zen da cultura japonesa; do modo como tudo nela procura uma harmonia, um equilíbrio e uma paz que estão desoladoramente ausentes da nossa vida ocidental contemporânea. Gosto de ler os haikus (haikai?), esses poemas depurados que parecem ser meras evidências de La Palisse mas, com uma leitura mais atenta, desenrolam um universo inteiro de significados condensados em três linhas de uma simplicidade e de uma singeleza quase visuais. Gosto da educação e da polidez da sua tradição, do delicado jogo de corda-bamba entre o terreno e o espiritual, da beleza poética da sua caligrafia.
Leio o diário de viagem de Matsuo Bashô, "O Caminho Estreito para o Longínquo Norte", na tradução portuguesa de Jorge Sousa Braga para a Fenda (1987), que comprei nos últimos saldos do Mercado da Ribeira, em Lisboa. São apenas 50 e poucas páginas para condensar uma viagem de dois anos. As frases parecem ser banais, mas é só à superfície - na sua procurada banalidade, elas contêm em si todo um mundo, toda uma vivência, toda uma história. Um retrato minimalista de uma terrível e deslumbrante lucidez, onde tudo está no sítio, mais fiel à verdade do que quantas imaginações. Uma viagem que é tanto externa como interior, e que vai mais fundo do que muitas vezes os nossos circuitos infindos de palavras nos levam.
Preso na cascata
um instante:
o verão.
Leio o diário de viagem de Matsuo Bashô, "O Caminho Estreito para o Longínquo Norte", na tradução portuguesa de Jorge Sousa Braga para a Fenda (1987), que comprei nos últimos saldos do Mercado da Ribeira, em Lisboa. São apenas 50 e poucas páginas para condensar uma viagem de dois anos. As frases parecem ser banais, mas é só à superfície - na sua procurada banalidade, elas contêm em si todo um mundo, toda uma vivência, toda uma história. Um retrato minimalista de uma terrível e deslumbrante lucidez, onde tudo está no sítio, mais fiel à verdade do que quantas imaginações. Uma viagem que é tanto externa como interior, e que vai mais fundo do que muitas vezes os nossos circuitos infindos de palavras nos levam.
Preso na cascata
um instante:
o verão.
28 de janeiro de 2004
A VERDADE É MAIS ESTRANHA QUE A FICÇÃO
Confesso que nem tinha feito a ligação entre as duas coisas até me recordar que "Portugal S. A." estreia já amanhã. Mas as declarações de José Manuel de Mello ao Expresso de sábado passado - título em parangonas: "Façamos a Ibéria" - são perturbantemente próximas do cenário ficcional que o filme de Ruy Guerra coloca, onde um magnata financeiro (Henrique Viana) também se manifesta descrente das capacidades dos portugueses e pretende colocar o seu império nas mãos de interesses espanhóis.
Isto não me chatearia por aí além se não fosse o caso de "Portugal S. A." ser mau - porque a história que conta fica sempre pela rama, nunca aprofunda as boas pistas que vai lançando, recorre aos lugares-comuns mais básicos e maniqueístas da ideia que as pessoas fazem dos corredores do poder. As pessoas são muito mais complexas do que os estereótipos gritantemente demagógicos que o filme propõe (a esposa ninfomaníaca, o padre manipulador, o ministro secretamente homossexual, o alto funcionário drogado, etc, etc, todos eles corruptos até à quinta casa e sem um átomo de bondade no seu corpo). "Portugal S. A." é uma telenovela a fingir (e a fingir, ainda por cima, sem grande convicção) que é cinema.
E, num momento em que a crise das instituições em Portugal apenas dá razão à descrença generalizada dos portugueses no seu país, um filme destes, que não hesita em lançar mais achas para a fogueira e parece querer confirmar as piores suspeitas relativamente à venalidade de quem nos governa, não podia chegar em pior altura. Mesmo que essa conjugação de circunstâncias seja perfeitamente acidental, como acredito que é, e que o lado tópico da questão lhe garanta o sucesso comercial.
(Para que conste: também não tenho ilusões em relação ao sistema, mas não caio no erro primário de correr tudo pela mesma bitola. Como em tudo, há bons e maus e assim-assim, embora a percentagem de maus seja significativamente superior.)
Isto não me chatearia por aí além se não fosse o caso de "Portugal S. A." ser mau - porque a história que conta fica sempre pela rama, nunca aprofunda as boas pistas que vai lançando, recorre aos lugares-comuns mais básicos e maniqueístas da ideia que as pessoas fazem dos corredores do poder. As pessoas são muito mais complexas do que os estereótipos gritantemente demagógicos que o filme propõe (a esposa ninfomaníaca, o padre manipulador, o ministro secretamente homossexual, o alto funcionário drogado, etc, etc, todos eles corruptos até à quinta casa e sem um átomo de bondade no seu corpo). "Portugal S. A." é uma telenovela a fingir (e a fingir, ainda por cima, sem grande convicção) que é cinema.
E, num momento em que a crise das instituições em Portugal apenas dá razão à descrença generalizada dos portugueses no seu país, um filme destes, que não hesita em lançar mais achas para a fogueira e parece querer confirmar as piores suspeitas relativamente à venalidade de quem nos governa, não podia chegar em pior altura. Mesmo que essa conjugação de circunstâncias seja perfeitamente acidental, como acredito que é, e que o lado tópico da questão lhe garanta o sucesso comercial.
(Para que conste: também não tenho ilusões em relação ao sistema, mas não caio no erro primário de correr tudo pela mesma bitola. Como em tudo, há bons e maus e assim-assim, embora a percentagem de maus seja significativamente superior.)
27 de janeiro de 2004
MAIS DO MESMO. MAS...
Os Oscares, já o sabemos, não têm rigorosamente nada a ver com a qualidade dos filmes. Nem sequer com a vida real. Mas, vá-se lá perceber porquê, este ano acertaram mais do que é costume: "Lost in Translation", "Master and Commander", "Mystic River", "A Domadora de Baleias", "Cidade de Deus", "Estranhos de Passagem", "Nascido para Ganhar". Até se lembraram de Johnny Depp. Até passaram ao lado de "O Último Samurai" e "Cold Mountain" para os prémios principais.
Só é pena terem-se esquecido de Tim Burton e do seu soberbo "Grande Peixe" (estreia a 5 de Fevereiro; reservem desde já bilhetes, o objecto é transcendente). O resto, claro, é showbiz. Mas, se algum destes filmes ganhar mais espectadores ou interessar mais gente por causa destas nomeações, já me dou por satisfeito.
Só é pena terem-se esquecido de Tim Burton e do seu soberbo "Grande Peixe" (estreia a 5 de Fevereiro; reservem desde já bilhetes, o objecto é transcendente). O resto, claro, é showbiz. Mas, se algum destes filmes ganhar mais espectadores ou interessar mais gente por causa destas nomeações, já me dou por satisfeito.
26 de janeiro de 2004
CONEXÕES IMPROVÁVEIS
Hoje acordei com a "Javanaise" de Gainsbourg na cabeça.
j'avoue j'en ai bavé pas vous
mon amour
avant d'avoir eu vent de vous
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
à votre avis qu'avons nous vu
de l'amour
de vous à moi vous m'avez eu
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
hélas avril en vain me voue
à l'amour
j'avais envie de voir en vous
cet amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
la vie ne vaut d'être vécue
sans amour
mais c'est vous qui l'avez voulu
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
Depois, por estranhas sinapses, fui buscar "Manhattan Skyline", dos (gulp) A-ha (e não, não é um prazer culpado - é mesmo das poucas canções deles de que gosto):
we sit and watch umbrellas fly
I'm trying to keep my newspaper dry
I hear myself say
my boat's leaving now
so we shake hands and cry
now I must wave goodbye
wave goodbye
you know
I don't want to cry again
don't want to cry again
I don't want to say goodbye
don't wanna cry again
I don't wanna run away
I don't want to race this pain
I'll never see your face again
oh but how
how can you say
that I didn't try
you see things in the depths of my eyes
that my love's run dry
no
we leave to their goodbyes
I've come to depend on the look in their eyes
my blood's sweet for pain
the wind and the rain bring back words of a song
and they say wave goodbye
wave goodbye
you know
I don't want to fall again
I don't wanna know this pain
I don't want another friend
I don't wanna try again
don't want to see you hurt
don't let me see you hurt
I don't wanna cry again
I'll never see your face again
how can you say
that I didn't try
you know I did
you see things
in the depths of my eyes
that my love's run dry
so I read to myself
a chance of a lifetime to see new horizons
on the front page
a black and white picture of
Manhattan skyline
Não sei porque as juntei. Talvez tenha apenas a ver com a melancolia que se desprende de ambas, tão adequada ao dia triste e cinzento e à noite chuvosa. Ou apenas com a convicção de que there's never a forever thing.
j'avoue j'en ai bavé pas vous
mon amour
avant d'avoir eu vent de vous
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
à votre avis qu'avons nous vu
de l'amour
de vous à moi vous m'avez eu
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
hélas avril en vain me voue
à l'amour
j'avais envie de voir en vous
cet amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
la vie ne vaut d'être vécue
sans amour
mais c'est vous qui l'avez voulu
mon amour
ne vous déplaise
en dansant la javanaise
nous nous aimions
le temps d'une chanson
Depois, por estranhas sinapses, fui buscar "Manhattan Skyline", dos (gulp) A-ha (e não, não é um prazer culpado - é mesmo das poucas canções deles de que gosto):
we sit and watch umbrellas fly
I'm trying to keep my newspaper dry
I hear myself say
my boat's leaving now
so we shake hands and cry
now I must wave goodbye
wave goodbye
you know
I don't want to cry again
don't want to cry again
I don't want to say goodbye
don't wanna cry again
I don't wanna run away
I don't want to race this pain
I'll never see your face again
oh but how
how can you say
that I didn't try
you see things in the depths of my eyes
that my love's run dry
no
we leave to their goodbyes
I've come to depend on the look in their eyes
my blood's sweet for pain
the wind and the rain bring back words of a song
and they say wave goodbye
wave goodbye
you know
I don't want to fall again
I don't wanna know this pain
I don't want another friend
I don't wanna try again
don't want to see you hurt
don't let me see you hurt
I don't wanna cry again
I'll never see your face again
how can you say
that I didn't try
you know I did
you see things
in the depths of my eyes
that my love's run dry
so I read to myself
a chance of a lifetime to see new horizons
on the front page
a black and white picture of
Manhattan skyline
Não sei porque as juntei. Talvez tenha apenas a ver com a melancolia que se desprende de ambas, tão adequada ao dia triste e cinzento e à noite chuvosa. Ou apenas com a convicção de que there's never a forever thing.
AS VIAGENS IMÓVEIS
Um mês de arquivos, jornais e revistas pacientemente escolhidos ao longo de um domingo preguiçoso, muitas delas lidas já de si com atraso. Na National Geographic americana de Dezembro: um fascinante artigo sobre a cultura samurai, um olhar romântico e sedutor sobre o tango em Buenos Aires, com excelentes fotografias (tenho que o mostrar ao António R., ver se aquilo é só romance ou tem fundamento). Na Wired de Dezembro: Philip K. Dick explicado aos incautos, a propósito da estreia americana de mais um filme adaptado do escritor, "Paycheck", de John Woo (estreia cá em Fevereiro). Numa revista do Expresso de uma destas semanas: a história de Luís Villas-Boas, o oficial do exército que resgatou o Refúgio Aboim Ascensão. Numa Grande Reportagem: o Pedro Nunes ao largo de Cascais, nas palavras e nas imagens de quem lá foi identificá-lo. (Nota mental: procurar a última Vega para me deslumbrar com o grafismo elegante do Rui.) Histórias de gente que eu gostava de conhecer e de sítios onde nunca fui. Viagens feitas sem sair do sofá.
c'est se taire et fuir
s'offrir à temps
partir avant
de découvrir
d'autres poisons
dans d'autres villes
et en finir
de ces voyages
immobiles
(Etienne Daho: "Les Voyages Immobiles", in "Paris ailleurs", Virgin 1991)
c'est se taire et fuir
s'offrir à temps
partir avant
de découvrir
d'autres poisons
dans d'autres villes
et en finir
de ces voyages
immobiles
(Etienne Daho: "Les Voyages Immobiles", in "Paris ailleurs", Virgin 1991)
PRAZERES RAROS
playlist: Pearl Jam/Danny Elfman, banda-sonora original: "Big Fish" (Sony Classical, 2003)
ficar ao domingo de manhã na cama depois de o despertador tocar:
embalado pelo calor suave dos lençóis de flanela, abandonar-me ao doce acordar, lento e gradual, de uma noite bem dormida.
fazer de conta que lá fora não há nada de importante.
ficar a ursar no quentinho como se tudo estivesse em paz.
fingir que tudo está suspenso. que o mundo não existiu durante aquela hora.
desfrutar do momento, porque amanhã a tirania do despertador volta a assumir os seus direitos.
ficar ao domingo de manhã na cama depois de o despertador tocar:
embalado pelo calor suave dos lençóis de flanela, abandonar-me ao doce acordar, lento e gradual, de uma noite bem dormida.
fazer de conta que lá fora não há nada de importante.
ficar a ursar no quentinho como se tudo estivesse em paz.
fingir que tudo está suspenso. que o mundo não existiu durante aquela hora.
desfrutar do momento, porque amanhã a tirania do despertador volta a assumir os seus direitos.
24 de janeiro de 2004
REPÚBLICA DAS BANANAS #3
playlist: Lisa Gerrard & Patrick Cassidy: "Immortal Memory" (4AD, 2004)
Pedro Santana Lopes irrita-me profundamente: não contente em passar o tempo a vangloriar-se do que já fez (talvez para fazer esquecer aquilo que ainda não fez ou nem sequer faz intenções de fazer), ainda aproveita o "tempo de antena" que lhe é proposto no Diário de Notícias para atacar quem não o deixa (não?) fazer.
O túnel do Marquês, tenho eu para mim, pouco sentido faz - é verdade que não vislumbro uma alternativa viável, mas não me parece que a obra venha efectivamente a facilitar o fluxo de trânsito para o centro. Ainda por cima, sabendo eu como os portugueses adoram dar uso ao carro, acho mesmo que é um convite para eles ainda trazerem o carro mais vezes para o centro. Até ela ficar concluída, contudo, o caos na zona das Amoreiras já é mais que muito e, por aquilo que ouço, não vejo os lisboetas muito convictos da utilidade do projecto. O que também não quer dizer nada, porque os portugueses são sempre do contra.
Entretanto, Ferro Rodrigues andou por Lisboa a promover uns outdoors do PS a dizer mal de Santana Lopes. É pena chegar tarde, o Bloco de Esquerda já o anda a fazer, e com bastante mais estilo, há uns tempos.
Pedro d'Anunciação, no Expresso de hoje, desanca no programa de Anabela Mota Ribeiro na nova 2:. Parece-me bem que se comecem a ouvir vozes discordantes do reinado de Manuel Falcão - primeiro porque a nova 2: me parece igual à antiga só que mais bem arrumada e com menos cinema, faltando ainda dar o salto que só se anuncia lá mais para a frente, segundo porque toda esta unanimidade para com o projecto me começava a parecer demasiado estranha, sobretudo porque é preciso dar tempo às coisas para elas assentarem. Tenho para mim que é a partir do segundo mês que se vai perceber o que funciona ou não.
Miguel Sousa Tavares muito bem no Público de ontem, como é seu hábito, sobre a ética quotidiana dos portugueses. A única coisa que me surpreende é ele pensar que eles (nós) a teríamos - as conversas que eu hoje ouvi a propósito do caso Fátima Felgueiras deixá-lo-iam estarrecido. A esse propósito, a entrevista de Carlos Vaz Marques ao árbitro Lucílio Baptista ao DNa de ontem é esclarecedora, por pôr os pontos nos is sobre uma certa mentalidade clubística portuguesa, tal como a coluna de Leonor Pinhão sobre Jose Antonio Camacho na Bola de quinta-feira.
Finalmente: João Bonifácio faz um texto assombroso no caderno Y do Público de ontem sobre o regresso do soulman Al Green. Deu-me vontade de ir ouvir o disco.
Pedro Santana Lopes irrita-me profundamente: não contente em passar o tempo a vangloriar-se do que já fez (talvez para fazer esquecer aquilo que ainda não fez ou nem sequer faz intenções de fazer), ainda aproveita o "tempo de antena" que lhe é proposto no Diário de Notícias para atacar quem não o deixa (não?) fazer.
O túnel do Marquês, tenho eu para mim, pouco sentido faz - é verdade que não vislumbro uma alternativa viável, mas não me parece que a obra venha efectivamente a facilitar o fluxo de trânsito para o centro. Ainda por cima, sabendo eu como os portugueses adoram dar uso ao carro, acho mesmo que é um convite para eles ainda trazerem o carro mais vezes para o centro. Até ela ficar concluída, contudo, o caos na zona das Amoreiras já é mais que muito e, por aquilo que ouço, não vejo os lisboetas muito convictos da utilidade do projecto. O que também não quer dizer nada, porque os portugueses são sempre do contra.
Entretanto, Ferro Rodrigues andou por Lisboa a promover uns outdoors do PS a dizer mal de Santana Lopes. É pena chegar tarde, o Bloco de Esquerda já o anda a fazer, e com bastante mais estilo, há uns tempos.
Pedro d'Anunciação, no Expresso de hoje, desanca no programa de Anabela Mota Ribeiro na nova 2:. Parece-me bem que se comecem a ouvir vozes discordantes do reinado de Manuel Falcão - primeiro porque a nova 2: me parece igual à antiga só que mais bem arrumada e com menos cinema, faltando ainda dar o salto que só se anuncia lá mais para a frente, segundo porque toda esta unanimidade para com o projecto me começava a parecer demasiado estranha, sobretudo porque é preciso dar tempo às coisas para elas assentarem. Tenho para mim que é a partir do segundo mês que se vai perceber o que funciona ou não.
Miguel Sousa Tavares muito bem no Público de ontem, como é seu hábito, sobre a ética quotidiana dos portugueses. A única coisa que me surpreende é ele pensar que eles (nós) a teríamos - as conversas que eu hoje ouvi a propósito do caso Fátima Felgueiras deixá-lo-iam estarrecido. A esse propósito, a entrevista de Carlos Vaz Marques ao árbitro Lucílio Baptista ao DNa de ontem é esclarecedora, por pôr os pontos nos is sobre uma certa mentalidade clubística portuguesa, tal como a coluna de Leonor Pinhão sobre Jose Antonio Camacho na Bola de quinta-feira.
Finalmente: João Bonifácio faz um texto assombroso no caderno Y do Público de ontem sobre o regresso do soulman Al Green. Deu-me vontade de ir ouvir o disco.
POLAROID CULTURGEST: 23/1/2004
nos dez minutos antes do início do concerto de Jane Birkin
Um senhor vem à boca de palco falar ao telemóvel, escondido na palma da mão, com um daqueles auriculares com microfone, enquanto as arrumadoras se afadigam a sentar os espectadores nos lugares certos e a corrigir os que se sentaram, de livre e espontânea vontade, nos lugares errados.
À minha frente instala-se um grupo de quatro trintonas acompanhadas por um miúdo dos seus dez anos. Três delas têm um ar de trintonas normais, a quarta (presumo que seja a mãe do miúdo) tem um ar de quem tentou não destoar do ambiente discreto da Culturgest e falhou rotundamente. É a que mais fala de todas: espanta-se por a sala estar quase esgotada e por haver tanta gente que ainda gosta da cultura francesa; pergunta se Vanessa Paradis ainda é casada com Johnny Deep (sic) e se casou com ele depois de ter vivido com Roman Polanski, não, a Sophie Marceau é que é casada com o Polanski (não é; está separada de Andrzej Zulawski, não faz mal, penso eu, afinal são os dois polacos e ela apanhou a terminação, enquanto luto para não a mandar calar); pergunta o que é feito de Johnny Hallyday, diz que alugou o "Chocolate" no video-clube e adorou (como é possível, um filme tão insosso), e que alugou a "Amélie" e gostou imenso mas que a irmã achou uma seca; pergunta às outras, que conversam entre si discretamente e sem chamar a atenção, se viram o "Gosto dos Outros"; ignora o rapazinho, que está sentado, afundado, na cadeira.
Ao meu lado senta-se um casal com ar de jovem intelectual bloco de esquerda.
Do meu outro lado, na coxia, chega um casal de meia-idade. Ela é uma ruiva de vestido frique, muito maquilhada, que cheira a incenso enjoativo. Ele tem aspecto de bon-vivant a fingir, pele tisnada, casaco de cabedal castanho gasto, e um aroma a álcool que chega à minha cadeira; parece ressonar durante as primeiras duas canções, mas está de olhos bem abertos, e quando sussurra à mulher fá-lo numa voz de baixo-barítono tudo menos discreta, com a rouquidão arrastada de quem bebe muito e fuma ainda mais.
a sala está cheia de fatos e gravatas e vestidos de noite para ouvir Jane Birkin cantar Serge Gainsbourg em toada árabe. O concerto é muito bonito, muito emocional. A audiência desfaz-se em bravos, ensaia timidamente palmas. Há uma ironia qualquer nesta institucionalização da alternativa; o que há vinte e cinco anos era radical chique e provocante hoje é mainstream. Mas é assim que as coisas são.
Um senhor vem à boca de palco falar ao telemóvel, escondido na palma da mão, com um daqueles auriculares com microfone, enquanto as arrumadoras se afadigam a sentar os espectadores nos lugares certos e a corrigir os que se sentaram, de livre e espontânea vontade, nos lugares errados.
À minha frente instala-se um grupo de quatro trintonas acompanhadas por um miúdo dos seus dez anos. Três delas têm um ar de trintonas normais, a quarta (presumo que seja a mãe do miúdo) tem um ar de quem tentou não destoar do ambiente discreto da Culturgest e falhou rotundamente. É a que mais fala de todas: espanta-se por a sala estar quase esgotada e por haver tanta gente que ainda gosta da cultura francesa; pergunta se Vanessa Paradis ainda é casada com Johnny Deep (sic) e se casou com ele depois de ter vivido com Roman Polanski, não, a Sophie Marceau é que é casada com o Polanski (não é; está separada de Andrzej Zulawski, não faz mal, penso eu, afinal são os dois polacos e ela apanhou a terminação, enquanto luto para não a mandar calar); pergunta o que é feito de Johnny Hallyday, diz que alugou o "Chocolate" no video-clube e adorou (como é possível, um filme tão insosso), e que alugou a "Amélie" e gostou imenso mas que a irmã achou uma seca; pergunta às outras, que conversam entre si discretamente e sem chamar a atenção, se viram o "Gosto dos Outros"; ignora o rapazinho, que está sentado, afundado, na cadeira.
Ao meu lado senta-se um casal com ar de jovem intelectual bloco de esquerda.
Do meu outro lado, na coxia, chega um casal de meia-idade. Ela é uma ruiva de vestido frique, muito maquilhada, que cheira a incenso enjoativo. Ele tem aspecto de bon-vivant a fingir, pele tisnada, casaco de cabedal castanho gasto, e um aroma a álcool que chega à minha cadeira; parece ressonar durante as primeiras duas canções, mas está de olhos bem abertos, e quando sussurra à mulher fá-lo numa voz de baixo-barítono tudo menos discreta, com a rouquidão arrastada de quem bebe muito e fuma ainda mais.
a sala está cheia de fatos e gravatas e vestidos de noite para ouvir Jane Birkin cantar Serge Gainsbourg em toada árabe. O concerto é muito bonito, muito emocional. A audiência desfaz-se em bravos, ensaia timidamente palmas. Há uma ironia qualquer nesta institucionalização da alternativa; o que há vinte e cinco anos era radical chique e provocante hoje é mainstream. Mas é assim que as coisas são.
23 de janeiro de 2004
GOSTO/NÃO GOSTO
Num dos primeiros posts deste blog remeti para a exibição no Arte de "A Arca Russa", de Aleksander Sokurov, filme que nunca chegou a ser exibido em Portugal.
Ontem estreou em Lisboa (no King) o seu mais recente filme, "Pai e Filho", embora tenha as minhas dúvidas se a palavra é apropriada para definir um objecto estético de deslumbrante beleza plástica que desafia todas as convenções narrativas e lineares do cinema como o entendemos.
Com Sokurov não estamos no domínio do cinema experimental, mas no de uma narrativa difusa e puramente visual, contada através de imagens de um estetismo sublimado, apolíneo, quase ariano no seu culto do corpo perfeito (o filme transpira homoerotismo latente, brinca de modo provocante com a fronteira do incesto); "Pai e Filho" é um filme embaciado, feito não de planos mas de quadros encenados com a mestria de um artista plástico, onde tudo é visto por um filtro difusor de cores saturadas e crepusculares.
Não sei o que achar de "Pai e Filho": é, talvez, o filme plasticamente mais belo e mais enfurecedoramente hermético que já vi. Não faço ideia se gosto dele, porque nem sequer tenho certeza de ter percebido o que Sokurov pretendia, tal o nevoeiro que deliberadamente constrói à volta das imagens. Não me acontece muitas vezes, mas quando acontece fico de orelha no ar.
(A propósito, "A Arca Russa" vai ser mostrado em sessões especiais no King, no fim-de-semana de 30.)
Ontem estreou em Lisboa (no King) o seu mais recente filme, "Pai e Filho", embora tenha as minhas dúvidas se a palavra é apropriada para definir um objecto estético de deslumbrante beleza plástica que desafia todas as convenções narrativas e lineares do cinema como o entendemos.
Com Sokurov não estamos no domínio do cinema experimental, mas no de uma narrativa difusa e puramente visual, contada através de imagens de um estetismo sublimado, apolíneo, quase ariano no seu culto do corpo perfeito (o filme transpira homoerotismo latente, brinca de modo provocante com a fronteira do incesto); "Pai e Filho" é um filme embaciado, feito não de planos mas de quadros encenados com a mestria de um artista plástico, onde tudo é visto por um filtro difusor de cores saturadas e crepusculares.
Não sei o que achar de "Pai e Filho": é, talvez, o filme plasticamente mais belo e mais enfurecedoramente hermético que já vi. Não faço ideia se gosto dele, porque nem sequer tenho certeza de ter percebido o que Sokurov pretendia, tal o nevoeiro que deliberadamente constrói à volta das imagens. Não me acontece muitas vezes, mas quando acontece fico de orelha no ar.
(A propósito, "A Arca Russa" vai ser mostrado em sessões especiais no King, no fim-de-semana de 30.)
22 de janeiro de 2004
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #4: A HISTÓRIA OFICIAL
Acabo de ler "Cantores de Abril", um livro onde o alentejano Eduardo Raposo colige uma série de entrevistas com cantores e não só que estiveram activos no chamado "canto de intervenção", antes e depois do 25 de Abril - José Mário Branco, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Sérgio Godinho, José Barata Moura, Manuel Alegre, entre muitos outros, e recordações de Adriano e Zeca.
Nascidas da investigação para uma tese de mestrado em história, estas entrevistas foram sendo publicadas em jornais e revistas locais e foram reunidas em livro em 2000 - comprei-o há uns meses na Buchholz, onde estava na prateleira sobre música, porque é um período sobre o qual não há, nunca há informação suficiente.
Mas é uma desilusão perceber que Eduardo Raposo não soube aproveitar o material bruto que tinha em mãos nem a pesquisa aturada que fez. Passando por cima de muitos dos textos estarem confrangedoramente mal escritos, o livro trai o bem-intencionado mas irritante maniqueísmo da defesa ardente dos combatentes da liberdade, do heroísmo quotidiano dos homens justos e íntegros que se sacrificaram para um futuro Portugal melhor, apresentado com uma convicção digna de outros Verões quentes.
E, nesse processo, Raposo esquece-se de organizar com um mínimo de critério as suas entrevistas, concentrando-se muitas vezes mais no lado político da sua luta do que no lado musical ou cultural, e tombando muitas vezes numa deslumbrada apologia dos nomes que entrevista, repleta de adjectivos desmesurados. Neste livro não há rapazes maus: são todos reduzidos à dimensão uniforme de grandes anti-fascistas. Que o foram, mas não apenas, não em exclusivo.
Que não haja confusões: não se trata aqui de minimizar a importância histórica, política e social destes nomes (nem tal seria possível num livro sobre cantores de intervenção). Apenas evitar cair num discurso maniqueísta que tende a reduzir ao arquétipo a dimensão humana verdadeiramente heróica desta gente. Porque eles foram acima de tudo seres humanos que duvidaram e fraquejaram a espaços, mesmo que em privado, mas que encontraram uma maneira de continuar o seu combate através da música ou das palavras, sem se esgotar nele nem se limitar a ele.
Reduzir essa dimensão humana a meia-dúzia de lugares comuns gastos acaba por ser, também, não fazer justiça à sua grandeza.
Em tempos escrevi no Blitz a propósito de uma reedição de José Afonso que a "história oficial" adoptada pela generalidade dos media do Zeca maldito, perseguido, autor dos hinos da resistência ao regime, era verdade. Mas era apenas uma das muitas facetas do José Afonso artista e homem.
E por trás dessa fachada que se convencionou adoptar havia uma obra musical de uma riqueza e de uma importância inigualadas por descobrir; mas é preciso furar para lá de "Grândola Vila Morena" e de "Venham Mais Cinco", em busca do "Avô Cavernoso" ou de "Nefertite Não Tinha Papeira" ou de todos os discos de que nunca ninguém se lembra.
Porque recordar não é apenas perpetuar o que já se sabe; é também descobrir, sem ficar apenas pela superfície.
Nascidas da investigação para uma tese de mestrado em história, estas entrevistas foram sendo publicadas em jornais e revistas locais e foram reunidas em livro em 2000 - comprei-o há uns meses na Buchholz, onde estava na prateleira sobre música, porque é um período sobre o qual não há, nunca há informação suficiente.
Mas é uma desilusão perceber que Eduardo Raposo não soube aproveitar o material bruto que tinha em mãos nem a pesquisa aturada que fez. Passando por cima de muitos dos textos estarem confrangedoramente mal escritos, o livro trai o bem-intencionado mas irritante maniqueísmo da defesa ardente dos combatentes da liberdade, do heroísmo quotidiano dos homens justos e íntegros que se sacrificaram para um futuro Portugal melhor, apresentado com uma convicção digna de outros Verões quentes.
E, nesse processo, Raposo esquece-se de organizar com um mínimo de critério as suas entrevistas, concentrando-se muitas vezes mais no lado político da sua luta do que no lado musical ou cultural, e tombando muitas vezes numa deslumbrada apologia dos nomes que entrevista, repleta de adjectivos desmesurados. Neste livro não há rapazes maus: são todos reduzidos à dimensão uniforme de grandes anti-fascistas. Que o foram, mas não apenas, não em exclusivo.
Que não haja confusões: não se trata aqui de minimizar a importância histórica, política e social destes nomes (nem tal seria possível num livro sobre cantores de intervenção). Apenas evitar cair num discurso maniqueísta que tende a reduzir ao arquétipo a dimensão humana verdadeiramente heróica desta gente. Porque eles foram acima de tudo seres humanos que duvidaram e fraquejaram a espaços, mesmo que em privado, mas que encontraram uma maneira de continuar o seu combate através da música ou das palavras, sem se esgotar nele nem se limitar a ele.
Reduzir essa dimensão humana a meia-dúzia de lugares comuns gastos acaba por ser, também, não fazer justiça à sua grandeza.
Em tempos escrevi no Blitz a propósito de uma reedição de José Afonso que a "história oficial" adoptada pela generalidade dos media do Zeca maldito, perseguido, autor dos hinos da resistência ao regime, era verdade. Mas era apenas uma das muitas facetas do José Afonso artista e homem.
E por trás dessa fachada que se convencionou adoptar havia uma obra musical de uma riqueza e de uma importância inigualadas por descobrir; mas é preciso furar para lá de "Grândola Vila Morena" e de "Venham Mais Cinco", em busca do "Avô Cavernoso" ou de "Nefertite Não Tinha Papeira" ou de todos os discos de que nunca ninguém se lembra.
Porque recordar não é apenas perpetuar o que já se sabe; é também descobrir, sem ficar apenas pela superfície.
21 de janeiro de 2004
IRREAL SOCIAL
Falamos como se vivêssemos juntos há anos, comentamos o dia que tivemos, dizemos não importa o quê, só para ouvirmos as nossas vozes. E nunca percebemos que não é o que dizemos que é importante, mas sim ouvir a voz; e, ao fazê-lo, fingir que não estamos sozinhos. Mas não é ouvir a tua voz que eu quero; é estar contigo, quem quer que sejas, onde quer que estejas;
e não poder, mesmo sabendo que não sei quem és nem onde estás, dói-me.
e não poder, mesmo sabendo que não sei quem és nem onde estás, dói-me.
PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #8
Crianças e adolescentes deixados sozinhos em quantidades apreciáveis sem supervisão paternal: fazem um barulho ensurdecedor, têm a mania que são engraçados e só fazem merda. Às vezes dou por mim a pensar: meu Deus, será que já fui como eles? E tremo de pensar que sim.
A GEOGRAFIA DA SOLIDÃO
Já ouvi várias pessoas reagirem com estranheza ao sub-título português que, por tecnicismos legais, a distribuidora nacional foi forçada a arranjar para "Lost in Translation", de Sofia Coppola (estreia amanhã): "O Amor é um Lugar Estranho". E, confesso-vos, apesar da minha estranheza inicial penso que a frase é, de modo convenientemente oblíquo, perfeitamente apropriada ao filme.
O que Sofia Coppola desenha com uma infinita delicadeza é uma espécie de geografia emocional da solidão, focada nos "outros lugares" onde não pertencemos e onde, talvez num esforço desesperado, procuramos alguma coisa ou alguém a que nos agarrar, sem saber muito bem onde essa necessidade quase impulsiva de não estarmos sozinhos nos pode levar. Que o amor - mesmo que impossível - surja num desses momentos em que a sensibilidade está mais aguda, mais receptiva, não deveria ser surpresa para todos aqueles que já se deixaram arrebatar por ele.
E, de facto, o amor é um lugar estranho; um sítio onde as regras lineares da lógica pragmática nem sempre exercem a sua benévola ditadura e onde, para o bem e para o mal, não temos nada a que nos agarrar a não ser o outro.
O que Sofia Coppola desenha com uma infinita delicadeza é uma espécie de geografia emocional da solidão, focada nos "outros lugares" onde não pertencemos e onde, talvez num esforço desesperado, procuramos alguma coisa ou alguém a que nos agarrar, sem saber muito bem onde essa necessidade quase impulsiva de não estarmos sozinhos nos pode levar. Que o amor - mesmo que impossível - surja num desses momentos em que a sensibilidade está mais aguda, mais receptiva, não deveria ser surpresa para todos aqueles que já se deixaram arrebatar por ele.
E, de facto, o amor é um lugar estranho; um sítio onde as regras lineares da lógica pragmática nem sempre exercem a sua benévola ditadura e onde, para o bem e para o mal, não temos nada a que nos agarrar a não ser o outro.
20 de janeiro de 2004
HAIKU MATINAL DO SEIXAL
(por cortesia do Ricardo S. e da Cândida)
Deixa o sol entrar nas tuas botas.
Deixa o sol entrar nas tuas botas.
CAETANO À CABECEIRA
Deve-se sempre ter Caetano à mão, para iluminar o caminho. Abro "Letra Só" ao acaso. Sai-me esta:
É de manhã
É de madrugada
É de manhã
Não sei mais de nada
É de manhã
Vou ver meu amor
É de manhã
Vou ver minha amada
É de manhã
Flor da madrugada
É de manhã
Vou ver minha flor
Vou pela estrada
E cada estrela é uma flor
Mas a flor amada
É mais que a madrugada
E foi por ela
Que o galo cocorocô
Nestas ocasiões, percebo que é só nos filmes que esse tipo de iluminação instantânea - o segredo da vida numa canção - resulta. Ou, se calhar, há aqui alguma mensagem secreta que preciso de decifrar. Mas, como Caetano é sábio e divino, maravilhoso, vou tentar outra vez amanhã. E, quem sabe, por entre as letras todas do mais talentoso, prolífico e genial dos poetas-artistas brasileiros, haja uma que ilustre na perfeição como me estou a sentir agora. Ou amanhã, a esta hora.
É de manhã
É de madrugada
É de manhã
Não sei mais de nada
É de manhã
Vou ver meu amor
É de manhã
Vou ver minha amada
É de manhã
Flor da madrugada
É de manhã
Vou ver minha flor
Vou pela estrada
E cada estrela é uma flor
Mas a flor amada
É mais que a madrugada
E foi por ela
Que o galo cocorocô
Nestas ocasiões, percebo que é só nos filmes que esse tipo de iluminação instantânea - o segredo da vida numa canção - resulta. Ou, se calhar, há aqui alguma mensagem secreta que preciso de decifrar. Mas, como Caetano é sábio e divino, maravilhoso, vou tentar outra vez amanhã. E, quem sabe, por entre as letras todas do mais talentoso, prolífico e genial dos poetas-artistas brasileiros, haja uma que ilustre na perfeição como me estou a sentir agora. Ou amanhã, a esta hora.
VALDISPERT
Quanto mais cedo tenho de me levantar, mais me custa a adormecer. Ter de me levantar antes da minha hora habitual parece chamar os fluxos que me levam a querer meter mais coisas no meu tempo, mais minutos nas horas antes de dormir. Como se quisesse provar a mim mesmo que consigo deitar-me tarde e acordar no dia seguinte fresco e descansado como se tivesse dormido o número de horas "regulamentar". Mas não é assim. E nunca tive constituição mental para directas. O simples facto de ter de ir para a cama por obrigação em vez de por cansaço parece ser o melhor estimulante que conheço - melhor que qualquer chávena de café forte (sim, porque não acredito nos estimulantes artificiais). Só de vez em quando, em momentos de maior aflição, convoco o Valdispert para ver se a cabeça abranda um bocadinho e me deixa sossegar as noites.
18 de janeiro de 2004
LOGBOOK #3: NÃO HÁ DOIS MERGULHOS IGUAIS
Sesimbra: Marca das Três Milhas, domingo 18 de Janeiro, 11h27: 17.3m, 41min, 13ºC
E ainda há quem diga que o mergulho é uma actividade relaxante? Há dias - e hoje nem foi dos piores - em que tem mais de aventura radical, em que um gajo se pergunta porque é que navega umas milhas para fora da costa e, depois de ter sido sacudido que nem bebida alcóolica em shaker de cocktail, se atira ao mar em movimento com uma garrafa de ar às costas. Posto desta maneira, não faz muito sentido, pois não?
Uma vez lá no fundo, percebe-se porquê. De regresso ao mesmo spot do domingo passado, a menor visibilidade e a corrente suave mas resistente contra a qual nadámos metade do tempo de imersão haviam mudado a paisagem, mas a longa esteira de pedras cobertas de anémonas, muitas salgadeiras, alguns corais a espaços mantinha-se um teimoso oásis no meio da areia, balizado pelas cordas-guia deixadas pelos pescadores locais para marcar as armadilhas que jazem vazias no fundo. Desde os pequenos peixes-pedra que se confundem com o fundo arenoso aos cardumes prateados que ziguezagueavam de direcção, nem a suspensão que coava a luminosidade conseguia impedir o espectáculo de ser deslumbrante. Alguém viu um peixe-lua (seria o mesmo da semana passada?), este nadando em mar alto; não fui eu e fiquei com pena. O resto é uma pacatez e uma plenitude incapazes de serem traduzidas em meras palavras.
E, em rigor, não estava assim tão mau cá fora: só o frio vento de nordeste e alguma ondulação a criar uma corrente desconfortável mas passageira à superfície. Ao regresso, em que voltámos contra a direcção do vento (mais forte), é que o efeito shaker se fez sentir, ainda por cima em semi-rígido a toda a brida. Se as pulseiras homeopáticas contra o enjôo não resultassem, tinha sido lindo.
E ainda há quem diga que o mergulho é uma actividade relaxante? Há dias - e hoje nem foi dos piores - em que tem mais de aventura radical, em que um gajo se pergunta porque é que navega umas milhas para fora da costa e, depois de ter sido sacudido que nem bebida alcóolica em shaker de cocktail, se atira ao mar em movimento com uma garrafa de ar às costas. Posto desta maneira, não faz muito sentido, pois não?
Uma vez lá no fundo, percebe-se porquê. De regresso ao mesmo spot do domingo passado, a menor visibilidade e a corrente suave mas resistente contra a qual nadámos metade do tempo de imersão haviam mudado a paisagem, mas a longa esteira de pedras cobertas de anémonas, muitas salgadeiras, alguns corais a espaços mantinha-se um teimoso oásis no meio da areia, balizado pelas cordas-guia deixadas pelos pescadores locais para marcar as armadilhas que jazem vazias no fundo. Desde os pequenos peixes-pedra que se confundem com o fundo arenoso aos cardumes prateados que ziguezagueavam de direcção, nem a suspensão que coava a luminosidade conseguia impedir o espectáculo de ser deslumbrante. Alguém viu um peixe-lua (seria o mesmo da semana passada?), este nadando em mar alto; não fui eu e fiquei com pena. O resto é uma pacatez e uma plenitude incapazes de serem traduzidas em meras palavras.
E, em rigor, não estava assim tão mau cá fora: só o frio vento de nordeste e alguma ondulação a criar uma corrente desconfortável mas passageira à superfície. Ao regresso, em que voltámos contra a direcção do vento (mais forte), é que o efeito shaker se fez sentir, ainda por cima em semi-rígido a toda a brida. Se as pulseiras homeopáticas contra o enjôo não resultassem, tinha sido lindo.
A VOLÚPIA
Não me parece que exista uma contradição ontológica em gostar de ler os Cahiers du Cinéma e gostar de gelados (era faxavor um copo de uma bola, caramel-cone-explosion, com cobertura de chocolate negro, aquele que solidifica ao contacto com o gelado); são apenas manifestações diversas de prazeres sem culpa.
17 de janeiro de 2004
REPÚBLICA DAS BANANAS #2 (ESPECIAL FIM-DE-SEMANA)
Segundo o Diário de Notícias, parece que os filiados do PCP já podem regularizar as suas quotas por multibanco. Finalmente uma coisa em que o partido acompanhou os tempos.
Noutra página do Diário de Notícias, diz-se que o ministro da Defesa Paulo Portas está em palpos de aranha para pagar as compensações que prometeu aos ex-combatentes do Ultramar por não se conseguir vender património do Estado que deveria servir para efectuar esses pagamentos. É o que dá falar antes de saber o que se vai fazer.
Algures no Expresso, fala-se de 1500 penicos em exposição (terei lido bem?...). O que me parece efectivamente uma notícia de extrema importância para o bem-estar social.
No noticiário da RTP-1, o primeiro-ministro Durão Barroso é vaiado em Óbidos. Não sei o que é mais patético: se o dispositivo policial que continha as escassas dezenas de protestantes inconformados (um gnr para cada cinco contestários - já sabemos para onde é que foi o aumento de policiamento prometido pelo ministro), se o alheamento com que o primeiro-ministro ignorou aqueles que, daqui a uns tempos, irá tentar aliciar para votar nele.
Noutra peça do mesmo noticiário, o secretário-geral do PS Ferro Rodrigues devolve ao governo as picardias relativas à mensagem de alerta do Presidente Sampaio, prosseguindo o ping-pong de "a mensagem era para ti"/"não, era para ti" digno de um cartoon dos Looney Tunes.
Pelo menos hoje não se falou da Casa Pia nem da GNR no Iraque (da qual, aliás, já não se fala há uns tempos, para alívio, creio eu, sobretudo dos próprios, que ao voluntariarem-se para a missão não tinham assinado contrato para vigilância mediática quase 24 horas por dia). Mas, em contrapartida, falou-se de uma investigação da Polícia Judiciária Militar ao comandante-geral da Guarda e do abandono escolar.
E a minha mãe escandalizou-se com uma reportagem sobre strip-tease às 20h15 da noite. Não sei porquê - a Alexandra Lencastre fazia de stripper em prime-time e ninguém se escandalizou com isso. Ou era eu que não estava atento?
Noutra página do Diário de Notícias, diz-se que o ministro da Defesa Paulo Portas está em palpos de aranha para pagar as compensações que prometeu aos ex-combatentes do Ultramar por não se conseguir vender património do Estado que deveria servir para efectuar esses pagamentos. É o que dá falar antes de saber o que se vai fazer.
Algures no Expresso, fala-se de 1500 penicos em exposição (terei lido bem?...). O que me parece efectivamente uma notícia de extrema importância para o bem-estar social.
No noticiário da RTP-1, o primeiro-ministro Durão Barroso é vaiado em Óbidos. Não sei o que é mais patético: se o dispositivo policial que continha as escassas dezenas de protestantes inconformados (um gnr para cada cinco contestários - já sabemos para onde é que foi o aumento de policiamento prometido pelo ministro), se o alheamento com que o primeiro-ministro ignorou aqueles que, daqui a uns tempos, irá tentar aliciar para votar nele.
Noutra peça do mesmo noticiário, o secretário-geral do PS Ferro Rodrigues devolve ao governo as picardias relativas à mensagem de alerta do Presidente Sampaio, prosseguindo o ping-pong de "a mensagem era para ti"/"não, era para ti" digno de um cartoon dos Looney Tunes.
Pelo menos hoje não se falou da Casa Pia nem da GNR no Iraque (da qual, aliás, já não se fala há uns tempos, para alívio, creio eu, sobretudo dos próprios, que ao voluntariarem-se para a missão não tinham assinado contrato para vigilância mediática quase 24 horas por dia). Mas, em contrapartida, falou-se de uma investigação da Polícia Judiciária Militar ao comandante-geral da Guarda e do abandono escolar.
E a minha mãe escandalizou-se com uma reportagem sobre strip-tease às 20h15 da noite. Não sei porquê - a Alexandra Lencastre fazia de stripper em prime-time e ninguém se escandalizou com isso. Ou era eu que não estava atento?
QUANDO O TELEFONE TOCA
playlist: Coldplay: "A Rush of Blood to the Head", Parlophone 2002
ligaste-me num impulso, e eu gostei de ouvir a tua voz;
porque nela percebi que também é
à solidão que te magoa
que queres fugir,
e que sonhas os mesmos sonhos.
e nada mais importa,
agora.
ligaste-me num impulso, e eu gostei de ouvir a tua voz;
porque nela percebi que também é
à solidão que te magoa
que queres fugir,
e que sonhas os mesmos sonhos.
e nada mais importa,
agora.
PERPLEXIDADES #2
Sim, é verdade: ainda há mães extremosas que, confrontadas com a necessidade urgente de mictar expressa vocalmente pelo seu rebento, põem as criancinhas a urinar no passeio público, mesmo que num sítio mais ou menos recatado para ninguém ver. Pergunto-me é se serão apenas as criancinhas, ou se mesmo os pais o farão em caso de extrema urgência.
NEM TUDO ESTÁ PERDIDO
"(...) Quando as pessoas se apaixonam, o que lhes sai da boca são os piores lugares-comuns do mundo. São verdadeiros, são sentidos e são reais, mas as palavras não exprimem a profundidade dos sentimentos, são muito vazias de conteúdo."
Isto disse-me David Byrne em 2001, quando o entrevistei a propósito de "Look Into the Eyeball". Lembrei-me disto por várias razões, mas também porque hoje passei o dia a cantar isto. Não só porque gosto realmente da canção, nem porque o riff central de guitarra de Jon Buckland é de sublime inspiração estratosférica; mas também porque, por vezes, são mesmo só as palavras mais corriqueiras e vazias de conteúdo que são capazes de exprimir com a potência exigida os sentimentos mais difíceis de expressar. Ainda por cima, tenho vindo a descobrir que os Coldplay são exímios nessa arte difícil de dar a volta, discretamente, quase sem se dar por isso, às banalidades que todos os outros já disseram de mil maneiras. Às vezes, basta só ouvi-las na altura certa.
Não é que Byrne não tenha razão; mas há casos em que querer dizer as coisas de maneira diferente, apenas para não as dizer igual, pode jogar contra.
when I counted up my demons
saw there was one for every day
with the good ones on my shoulder
I drove the other ones away
so if you ever feel neglected
if you think that all is lost
I'll be counting up my demons, yeah
hoping everything's not lost
when you thought that it was over
you could feel it all around
when everybody's out to get you
don't you let it drag you down
'cause if you ever feel neglected
if you think that all is lost
I'll be counting up my demons, yeah
hoping everything's not lost
sing it out
everything's not lost
Isto disse-me David Byrne em 2001, quando o entrevistei a propósito de "Look Into the Eyeball". Lembrei-me disto por várias razões, mas também porque hoje passei o dia a cantar isto. Não só porque gosto realmente da canção, nem porque o riff central de guitarra de Jon Buckland é de sublime inspiração estratosférica; mas também porque, por vezes, são mesmo só as palavras mais corriqueiras e vazias de conteúdo que são capazes de exprimir com a potência exigida os sentimentos mais difíceis de expressar. Ainda por cima, tenho vindo a descobrir que os Coldplay são exímios nessa arte difícil de dar a volta, discretamente, quase sem se dar por isso, às banalidades que todos os outros já disseram de mil maneiras. Às vezes, basta só ouvi-las na altura certa.
Não é que Byrne não tenha razão; mas há casos em que querer dizer as coisas de maneira diferente, apenas para não as dizer igual, pode jogar contra.
when I counted up my demons
saw there was one for every day
with the good ones on my shoulder
I drove the other ones away
so if you ever feel neglected
if you think that all is lost
I'll be counting up my demons, yeah
hoping everything's not lost
when you thought that it was over
you could feel it all around
when everybody's out to get you
don't you let it drag you down
'cause if you ever feel neglected
if you think that all is lost
I'll be counting up my demons, yeah
hoping everything's not lost
sing it out
everything's not lost
16 de janeiro de 2004
A HERESIA DO "MOMENTO"
Eu sei, eu sei. A letra é um chorrilho de lugares-comuns alinhados uns atrás dos outros. O teledisco é do mais pedestre que há. Mas não são muitas as canções capazes de mexer comigo como "Momento", de Pedro Abrunhosa, o faz. Até vos digo mais: tenho o álbum, mas raramente o ouço para lá da primeira canção. Porque "Momento" é tão perfeita (aquele piano à Satie...) que tudo o que vier a seguir não se aguenta à bronca. Nem precisa. Abrunhosa poderá não ter feito mais nada de jeito na vida (enfim, há mais umas quantas boas canções) que só esta já mereceria que ele entrasse nos livros. Por nenhuma razão especial a não ser que é uma das melhores canções pop que já ouvi sobre os pequenos nadas de passagem que dão sentido aos dias que vão passando.
(estavam à espera da letra? vocês sabem-na de cor - mesmo que não o admitam!)
(estavam à espera da letra? vocês sabem-na de cor - mesmo que não o admitam!)
15 de janeiro de 2004
CLAQUETTE. CÂMARA. ACÇÃO
playlist: Miles Davis: "Ascenseur pour l'Échafaud", Emarcy 1958
Não é um exclusivo deste disco (que mandei agora vir dos saldos de Janeiro da Fnac online francesa; em versão restaurada, remasterizada, com montes de takes alternativos e inéditos etc), mas é comum a quase todas as gravações de jazz da era bop, nos late fifties/early sixties.
E a pergunta: o tom cinemático, de clube fumarento, luz dirigida, preto-e-branco contrastado, noite na cidade que é um espaço ambíguo, de segredos e sorrisos, é sugerido só pela música ou surge-nos dos filmes que a usaram como banda sonora?
O trompete em surdina a deslizar por sobre a música é um lugar-comum cinematográfico porque Miles era tão genial que todos os outros o quiseram imitar ou porque os filmes se encarregaram de estandardizar tudo?
Esta música transporta uma imagem tão precisa colada às notas porque assim nasceu ou porque assim nos foi passada pelos anos que passaram entretanto?
Não que isto tenha alguma importância, entenda-se. São só perguntas inspiradas por música que, apesar de instrumental, fervilha de palavras, imagens e ideias. E continua a soar tão moderna hoje como em 1957, quando foi composta e gravada.
Não é um exclusivo deste disco (que mandei agora vir dos saldos de Janeiro da Fnac online francesa; em versão restaurada, remasterizada, com montes de takes alternativos e inéditos etc), mas é comum a quase todas as gravações de jazz da era bop, nos late fifties/early sixties.
E a pergunta: o tom cinemático, de clube fumarento, luz dirigida, preto-e-branco contrastado, noite na cidade que é um espaço ambíguo, de segredos e sorrisos, é sugerido só pela música ou surge-nos dos filmes que a usaram como banda sonora?
O trompete em surdina a deslizar por sobre a música é um lugar-comum cinematográfico porque Miles era tão genial que todos os outros o quiseram imitar ou porque os filmes se encarregaram de estandardizar tudo?
Esta música transporta uma imagem tão precisa colada às notas porque assim nasceu ou porque assim nos foi passada pelos anos que passaram entretanto?
Não que isto tenha alguma importância, entenda-se. São só perguntas inspiradas por música que, apesar de instrumental, fervilha de palavras, imagens e ideias. E continua a soar tão moderna hoje como em 1957, quando foi composta e gravada.
PERPLEXIDADES #1: as pessoas vestem tão mal nos ginásios
Desde a matrona de cabelo louro oxigenado que vai de maillot rosa shocking com lenço de pescoço a condizer ao jovem suburbano de cabelo com gel operação triunfo, camisola de alças a mostrar a musculatura desenvolvida e calças de treino largueironas a arrastar pelo chão, é espantoso como as pessoas parecem ser afectadas por um qualquer ataque súbito de mau gosto quando entram nos ginásios.
É verdade que alguma da roupa própria para a prática desportiva não favorece muito. E não me vou isentar de telhados de vidro (as meias de futebol, confesso, são muito confortáveizinhas nestes dias frios). Mas o que há de mal com uma sweatshirt ou uma t-shirt velha e uns calções ou umas calças de treino normais? Ou agora também é obrigatório ir fashion para o ginásio?
A parte mais divertida: no geral, quem leva roupa para mostrar o corpo é quem não tem corpo que valha a pena ser mostrado...
É verdade que alguma da roupa própria para a prática desportiva não favorece muito. E não me vou isentar de telhados de vidro (as meias de futebol, confesso, são muito confortáveizinhas nestes dias frios). Mas o que há de mal com uma sweatshirt ou uma t-shirt velha e uns calções ou umas calças de treino normais? Ou agora também é obrigatório ir fashion para o ginásio?
A parte mais divertida: no geral, quem leva roupa para mostrar o corpo é quem não tem corpo que valha a pena ser mostrado...
TUDO É RELATIVO
playlist: Serge Gainsbourg: "Théâtre des Capucines", Philips/Mercury 2001
Não costumo ter o João Miguel Tavares, do Diário de Notícias, em conta de rapaz que não sabe o que diz, mas confesso-me perplexo quando o vejo hoje, no quadrinho das estrelas do cartaz de cinema daquele jornal, a dar uma solitária estrela ao novo filme de Jane Campion, "Atracção Perigosa", e duas a "A Casa de Campo", de Mike Figgis. Perplexo porque, mesmo não gostando do filme de Jane Campion (e eu gosto, muito), será difícil que não se reconheça nele um projecto arriscado que ousa mil vezes mais que dezenas de produções correntes de Hollywood -- e porque "A Casa de Campo" é, esse sim, o banalíssimo thriller que ele acusa "Atracção Perigosa" de ser.
Evidentemente, tudo é relativo, e não se trata aqui de questionar opiniões. Apenas de constatar que, muitas vezes, estas brincadeiras das classificações são armadilhas à espera de um passo em falso. O que me incomodou mais na discrepância das notas do João Miguel é que ele coloque um produto de consumo que ele próprio admite não ter sinais particulares como mais digno de ser visto do que um filme mais pessoal e ousado, mesmo que falhado. Está no seu direito, mas...
Também é verdade que o filme da Campion andou a levar porrada de quase toda a crítica internacional. O que também não é inesperado, já que a realizadora neo-zelandesa parece incomodar muito boa gente a quem nunca fez mal nenhum -- algumas das coisas mais simpáticas que li sobre "Atracção Perigosa" consideravam o filme "pedante" ou "uma instalação de galeria". Mas, ontem, com amigos à volta de um televisor que mostrava o trailer, o João, que acha a Meg Ryan uma "seresma" (sic), disse que ela estava "estranhamente sexuada" e mostrou-se interessado, ao que o Rui respondeu "é a Jane Campion, fez dela uma mulher". Ou qualquer coisa do género.
Seja como for, eu gosto da Jane Campion e gosto mais de "Atracção Perigosa" - que me parece ser um filme sobre o modo como nos deixamos levar pelo desejo - do que do "Piano" (e eu gosto do "Piano"). Não sei se isso serve de grande recomendação, mas pronto...
De passagem, já alguém reparou que está a estrear uma quantidade absurda de filmes, alguns dos quais condenados por essa mesma voragem à inglória semana de cartaz que eu julgava definitivamente lá para trás no tempo?
Não costumo ter o João Miguel Tavares, do Diário de Notícias, em conta de rapaz que não sabe o que diz, mas confesso-me perplexo quando o vejo hoje, no quadrinho das estrelas do cartaz de cinema daquele jornal, a dar uma solitária estrela ao novo filme de Jane Campion, "Atracção Perigosa", e duas a "A Casa de Campo", de Mike Figgis. Perplexo porque, mesmo não gostando do filme de Jane Campion (e eu gosto, muito), será difícil que não se reconheça nele um projecto arriscado que ousa mil vezes mais que dezenas de produções correntes de Hollywood -- e porque "A Casa de Campo" é, esse sim, o banalíssimo thriller que ele acusa "Atracção Perigosa" de ser.
Evidentemente, tudo é relativo, e não se trata aqui de questionar opiniões. Apenas de constatar que, muitas vezes, estas brincadeiras das classificações são armadilhas à espera de um passo em falso. O que me incomodou mais na discrepância das notas do João Miguel é que ele coloque um produto de consumo que ele próprio admite não ter sinais particulares como mais digno de ser visto do que um filme mais pessoal e ousado, mesmo que falhado. Está no seu direito, mas...
Também é verdade que o filme da Campion andou a levar porrada de quase toda a crítica internacional. O que também não é inesperado, já que a realizadora neo-zelandesa parece incomodar muito boa gente a quem nunca fez mal nenhum -- algumas das coisas mais simpáticas que li sobre "Atracção Perigosa" consideravam o filme "pedante" ou "uma instalação de galeria". Mas, ontem, com amigos à volta de um televisor que mostrava o trailer, o João, que acha a Meg Ryan uma "seresma" (sic), disse que ela estava "estranhamente sexuada" e mostrou-se interessado, ao que o Rui respondeu "é a Jane Campion, fez dela uma mulher". Ou qualquer coisa do género.
Seja como for, eu gosto da Jane Campion e gosto mais de "Atracção Perigosa" - que me parece ser um filme sobre o modo como nos deixamos levar pelo desejo - do que do "Piano" (e eu gosto do "Piano"). Não sei se isso serve de grande recomendação, mas pronto...
De passagem, já alguém reparou que está a estrear uma quantidade absurda de filmes, alguns dos quais condenados por essa mesma voragem à inglória semana de cartaz que eu julgava definitivamente lá para trás no tempo?
14 de janeiro de 2004
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #3
Uma das coisas que se perdeu do vinil para o CD (e uma das poucas que me fazem falta) era aquela noção de "identidade gráfica" que as editoras discográficas costumavam ter - o conforto de se reconhecer o design de uma etiqueta, uma marca colocada na capa ou na contra-capa que nos dava a entender poder estar ali um bom disco, ou apenas a sensação de reencontrar um velho amigo.
Agora mesmo, fui buscar o CD de "Mainstream", de Lloyd Cole, para recuperar a letra de "Hey Rusty", e reconheci na bolacha de alumínio o velho logotipo da Polydor: o semi-círculo, misto de arco-íris, anfiteatro e disco-meio-tirado-da-capa que abria a preto sobre um rectângulo vermelho, símbolo graficamente tão feliz que ainda hoje, décadas depois de ter sido criado, ainda é usado pela actual detentora dos direitos da marca. E lembro-me das velhas etiquetas vermelhas coladas ao centro dos vinis. Esse tipo de etiquetas desapareceu completamente com o advento do CD e, com eles, uma das mais estimulantes avenidas de construção visual de uma identidade gráfica constante, coerente e perene. Não é com certeza por acaso que o logotipo da Polydor sobreviveu às sucessivas convulsões da editora que o criou; há identidades que nem as leis do mercado conseguem abafar.
Agora mesmo, fui buscar o CD de "Mainstream", de Lloyd Cole, para recuperar a letra de "Hey Rusty", e reconheci na bolacha de alumínio o velho logotipo da Polydor: o semi-círculo, misto de arco-íris, anfiteatro e disco-meio-tirado-da-capa que abria a preto sobre um rectângulo vermelho, símbolo graficamente tão feliz que ainda hoje, décadas depois de ter sido criado, ainda é usado pela actual detentora dos direitos da marca. E lembro-me das velhas etiquetas vermelhas coladas ao centro dos vinis. Esse tipo de etiquetas desapareceu completamente com o advento do CD e, com eles, uma das mais estimulantes avenidas de construção visual de uma identidade gráfica constante, coerente e perene. Não é com certeza por acaso que o logotipo da Polydor sobreviveu às sucessivas convulsões da editora que o criou; há identidades que nem as leis do mercado conseguem abafar.
MUNDOS SECRETOS #4
Costumo gravar cassetes para ouvir no meu carro, comprado ainda antes dos leitores de CD serem praticamente standard automóvel. Nelas compilo canções que vou sacando da minha colecção de discos, peças que me parece construirem um sentido juntas, criarem um ambiente em conjunto, ganhar novas dimensões fora do seu habitat natural, agrupadas por temas, atmosferas, conceitos, sensações. Ou passo para cassete álbuns que quero esmiuçar enquanto guio, discos que quero descobrir ao pormenor. Vou-as rodando irregularmente, consoante o estado de espírito do condutor, dos passageiros, do próprio dia.
Esta semana, em trânsito de Sesimbra com um dia desmaiado, decidi animar-me com uma selecção de Verão que fechava com uma das minhas canções preferidas de Lloyd Cole; um momento por onde ecoam o entusiasmo juvenil, o desencanto pós-adolescente, o lirismo conversacional, o cinismo quotidiano. Um grande-plano sobre os rostos secretos da grande cidade, sobrepondo o intimismo telegráfico da letra à grandeza urbana da tela musical. Uma canção sobre acreditar que podemos sempre recomeçar de novo - e que, misteriosamente, parece dizer-me tudo sobre o meu estado de espírito actual. Mas esse é o segredo das grandes canções: fazerem, sempre, sentido, em qualquer ocasião.
hey Rusty
's a long time
remember
's like yesterday
stealing cigarettes
and laughing as they chased us
down the boulevards
then I got a job
white collar
turn coat
you just spun around and walked
said we wouldn't meet again
hey Rusty don't hang up
I feel so young
hey Rusty don't hang up
'cause we're still young
I just need one friend
she said hey
don't take it so bad
she said hey
it wasn't so much
we just ran out of gas
or something like that
that's when I
I crashed my car
not by chance
and not out of love
then I walked out of that job
you should've seen their faces
hey Rusty don't hang up
I just need one friend
and we're not finished yet
no way
hey Rusty
I changed my mind
what d'you say we start again
no I mean it this time
stealing cigarettes
and laughing as they chase us
down the boulevards.
Esta semana, em trânsito de Sesimbra com um dia desmaiado, decidi animar-me com uma selecção de Verão que fechava com uma das minhas canções preferidas de Lloyd Cole; um momento por onde ecoam o entusiasmo juvenil, o desencanto pós-adolescente, o lirismo conversacional, o cinismo quotidiano. Um grande-plano sobre os rostos secretos da grande cidade, sobrepondo o intimismo telegráfico da letra à grandeza urbana da tela musical. Uma canção sobre acreditar que podemos sempre recomeçar de novo - e que, misteriosamente, parece dizer-me tudo sobre o meu estado de espírito actual. Mas esse é o segredo das grandes canções: fazerem, sempre, sentido, em qualquer ocasião.
hey Rusty
's a long time
remember
's like yesterday
stealing cigarettes
and laughing as they chased us
down the boulevards
then I got a job
white collar
turn coat
you just spun around and walked
said we wouldn't meet again
hey Rusty don't hang up
I feel so young
hey Rusty don't hang up
'cause we're still young
I just need one friend
she said hey
don't take it so bad
she said hey
it wasn't so much
we just ran out of gas
or something like that
that's when I
I crashed my car
not by chance
and not out of love
then I walked out of that job
you should've seen their faces
hey Rusty don't hang up
I just need one friend
and we're not finished yet
no way
hey Rusty
I changed my mind
what d'you say we start again
no I mean it this time
stealing cigarettes
and laughing as they chase us
down the boulevards.
13 de janeiro de 2004
SOMA E SEGUE
O trabalho aperta, o tempo condensa-se e contrai-se, de repente dou por mim quase sem tempo para pensar ou sequer para pôr em dia as leituras do fim-de-semana; mas marco João Bonifácio a escrever no Y de sexta sobre o "shoegazing", João Lisboa a falar no Expresso de sábado das pistas sonoras dos "Looney Tunes" e de "Aconteceu no Oeste", Luís Guerra no Blitz de hoje a elogiar comida indiana ao mesmo nível dos Air (não é possível, a comida indiana é francamente melhor do que qualquer coisa que os Air possam fazer), a excelente entrevista de Don de Lillo no Mil Folhas de sábado (fiquei curioso em ler "Cosmópolis", mas ainda aí tenho "Os Nomes" para digerir, depois de "Mao II" e "Ruído Branco" me terem batido fundo), Eurico de Barros a desancar com muita propriedade "O Último Samurai" no Diário de Notícias de sexta (fita mais chata). Vejo o programa da Cinemateca para este mês, fico com vontade de ir às sessões das 15h30 ver uns quantos filmes de que muito ouvi falar mas que nunca vi - "Léon Morin, Prêtre" do meu bem-amado Melville, "Docteur Popaul" de Chabrol, o célebre "Les Enfants du Paradis" e "Les Visiteurs du Soir" de Marcel Carné. Às vezes pergunto-me para quê insistir em ler tudo, ver tudo; pergunto-me se será verdadeiramente vontade de aprender, de descobrir, ou apenas desejo consumista de acumulação, marcar com um "visto" coisas que devia conhecer. O melhor é que ambas as coisas não são incompatíveis, ou não fosse eu um obsessivo-compulsivo.
PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #7
As pessoas que, tendo uma passadeira de peões cinco metros à sua esquerda, insistem teimosamente em atravessar no meio da rua com o sinal aberto para os carros. Portugal parece adorar ser ostensivo no modo como desrespeita as regras mais básicas do trânsito, e depois sente-se ultrajado na sua honra quando alguém lhes aponta isso, desculpando-se com o "não sou só eu - toda a gente faz o mesmo"...
12 de janeiro de 2004
LOST IN TRANSLATION
Let's never come here again because it wouldn't be as much fun.
- Scarlett Johansson a Bill Murray, in "Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho", de Sofia Coppola
E se estiver aqui, sem aviso prévio, um dos filmes da minha vida?
- Scarlett Johansson a Bill Murray, in "Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho", de Sofia Coppola
E se estiver aqui, sem aviso prévio, um dos filmes da minha vida?
11 de janeiro de 2004
LOGBOOK #2: É PRECISO TER CALMA
Sesimbra: Marca das Três Milhas, domingo 11 de Janeiro, 11h15; 15.1m, 44min, 14º C
Porque há receios que são mais fortes que a razão e que têm de se enfrentar; porque há um respeito que tem de se experimentar; porque as águas nem sempre estão calmas e límpidas; porque há um vento que insiste em atirar-me com autênticos jactos de água fria para cima dos meus óculos de sol graduados; porque há sempre um octopus que se recusa a ficar preso ao colete, uma fivela que nunca fica bem apertada, é preciso combater o primeiro reflexo. Reencontrar a segurança de saber que, apesar do mar algo agitado à superfície, lá em baixo tudo flui com a proverbial calma oceânica.
O efeito combinado do vento frio e da ondulação é imperceptível a quinze metros de fundo, nestas águas que se sentem mais frias através do fato de sete milímetros do que a temperatura indicada pelo computador; pelo corredor de rochedos e vegetação que funciona como "rota" pelo meio de um vasto mar de areia, deixamo-nos levar em calma pela ligeira corrente que nos devolve à direcção de Sesimbra. Alguém fotografa; quase todos dão por si a olhar para os cardumes infinitos que flutuam naquela espécie de oásis; pairo em silêncio acima das rochas, procurando ver o choco que todos seguem, o peixe-lua escondido, a âncora coberta de vida marinha. Lá em cima é outro mundo; aqui, só as águas que me empurram suavemente traem a superfície em movimento.
De regresso após os obrigatórios três minutos a cinco metros, tudo está mais calmo que quando me deixei cair na água 45 minutos antes. Subi um grau mais na minha confiança e no meu à-vontade. O mar voltou a exercer o seu fascínio retemperador.
Porque há receios que são mais fortes que a razão e que têm de se enfrentar; porque há um respeito que tem de se experimentar; porque as águas nem sempre estão calmas e límpidas; porque há um vento que insiste em atirar-me com autênticos jactos de água fria para cima dos meus óculos de sol graduados; porque há sempre um octopus que se recusa a ficar preso ao colete, uma fivela que nunca fica bem apertada, é preciso combater o primeiro reflexo. Reencontrar a segurança de saber que, apesar do mar algo agitado à superfície, lá em baixo tudo flui com a proverbial calma oceânica.
O efeito combinado do vento frio e da ondulação é imperceptível a quinze metros de fundo, nestas águas que se sentem mais frias através do fato de sete milímetros do que a temperatura indicada pelo computador; pelo corredor de rochedos e vegetação que funciona como "rota" pelo meio de um vasto mar de areia, deixamo-nos levar em calma pela ligeira corrente que nos devolve à direcção de Sesimbra. Alguém fotografa; quase todos dão por si a olhar para os cardumes infinitos que flutuam naquela espécie de oásis; pairo em silêncio acima das rochas, procurando ver o choco que todos seguem, o peixe-lua escondido, a âncora coberta de vida marinha. Lá em cima é outro mundo; aqui, só as águas que me empurram suavemente traem a superfície em movimento.
De regresso após os obrigatórios três minutos a cinco metros, tudo está mais calmo que quando me deixei cair na água 45 minutos antes. Subi um grau mais na minha confiança e no meu à-vontade. O mar voltou a exercer o seu fascínio retemperador.
VAI ACONTECER DE NOVO
Esta canção está perdida num álbum a solo do brasileiro Paulo Miklos, um dos integrantes dos esquizofrénicos mas sempre interessantes Titãs, ao qual ninguém ligou praticamente nada. O álbum tem um título de génio - retirado do refrão da canção - mas só esta canção faz realmente jus ao título do disco: "Vou Ser Feliz e Já Volto". E é a canção que me tem servido de lema ao longo dos últimos meses - porque não é a fugir das coisas que encontramos aquilo de que andamos à procura.
Está anoitecendo
e vai acontecer de novo
eu vou sair
pra me divertir um pouco
anoiteceu
e eu preciso ir
espere aqui
eu não demoro
a noite é pra se divertir
vou ser feliz e já volto
eu não me enxergo mesmo
não me vejo fazendo
as coisas que dizem
que eu ando fazendo
posso ouvir os conselhos
de quem me quer bem
e tem medo
mas não entendo o que eles estão dizendo
eu não tenho medo
que me achem um tolo
se quem é feliz
parece agir como louco
eu não tenho medo
de sofrer de novo
se posso aproveitar
e ser feliz um pouco
Está anoitecendo
e vai acontecer de novo
eu vou sair
pra me divertir um pouco
anoiteceu
e eu preciso ir
espere aqui
eu não demoro
a noite é pra se divertir
vou ser feliz e já volto
eu não me enxergo mesmo
não me vejo fazendo
as coisas que dizem
que eu ando fazendo
posso ouvir os conselhos
de quem me quer bem
e tem medo
mas não entendo o que eles estão dizendo
eu não tenho medo
que me achem um tolo
se quem é feliz
parece agir como louco
eu não tenho medo
de sofrer de novo
se posso aproveitar
e ser feliz um pouco
PARECE DIFÍCIL
A minha amiga Isabel não diz as coisas pela metade: "puta que a pariu!". Curioso: é uma coisa que a própria Elis Regina teria dito, se tivesse ouvido a filha cantar. Quem conhece o disco único de Maria Rita já sabe que a semelhança de timbre, de fraseado, de colocação vocal entre a filha e a mãe é de estarrecer. Mas era legítimo desconfiar. Perguntar se não seria uma invenção de marketing. Visto o concerto, a resposta é negativa: Maria Rita existe e não é, apenas, a filha de Elis. Da mãe herdou tudo o que havia de bom para herdar; agora, tem de fazer o seu caminho pessoal e, a julgar pelo excelente concerto que vi esta noite no Coliseu, está bem lançada. Muitos iam ver Elis reencarnada; Maria Rita deu-lhes Maria Rita. Foi a melhor das surpresas.
10 de janeiro de 2004
BLOGO, LOGO EXISTO #3: PERPLEXIDADES ALEATÓRIAS
Fenómeno curioso: de vez em quando, as janelinhas de comentário aos posts que aqui vou deixando trazem a surpresa de um comentário perfeitamente aleatório, deixado por um autor de outro blog que parece interessado apenas em ganhar visitantes para o seu próprio blog (com ou sem intuitos menos evidentes pelo meio). (Ainda recentemente dei por isso também no Marítimo.) As justaposições desses comentários aparentemente "random-generated" com o post que alegadamente comentam é deliciosa - "portões de lágrimas" a propósito de cozinha indiana??? um gajo que me vem dizer em inglês que gostou muito de ler o meu blog em português, língua que não deve dominar de todo??? - mas também algo preocupante pelo que anunciam da mentalidade bloguista; o que eles manifestam não é uma reacção a algo que leram mas uma campanha mobilizadora de promoção a si próprios, "OK, agora que já fiz a boa acção de 'ver' o teu vem cá ler o meu". Só que a cortesia é uma coisa bem diferente. E a cortesia retribui-se com cortesia. Não é o caso...
9 de janeiro de 2004
INDIAN TANDOORI
playlist: Lizz Fields: "By Day By Night", Unisex 2003
É quase um ritual: primeiro, a chamuça ou os bojés acompanhados pelos quatro chutneys em tacinhas metálicas (reservo-me para a menta líquida, verde-claro quase fluorescente, e para o picante aromático verde-escuro granuloso). Depois, o cesto plástico do pão com a forma ainda quente do forno do naan de alho que mergulhamos gulosamente nos chutneys. Só depois a rendição total à textura delicada dos molhos coloridos e aveludados, espécie de bomba calórica de natas e especiarias harmoniosamente combinadas, onde os pedacinhos de frango constroem pequenos relevos escondidos: para mim o vermelho-vivo suave e cremoso salpicado de branco do tikka masala, para a Marta e o Luís o caramelo texturado de nozes do korma, a envolver o arroz solto e seco que realça o travo só levemente condimentado. Só café, depois, para retermos o máximo de tempo possível o festival de sabores que se cruzam na boca durante a refeição. Levei muito tempo a descobrir o requinte da cozinha indiana, mesmo que ocidentalizada. Hoje rendo-me-lhe com o abandono que a sua sensualidade exige.
É quase um ritual: primeiro, a chamuça ou os bojés acompanhados pelos quatro chutneys em tacinhas metálicas (reservo-me para a menta líquida, verde-claro quase fluorescente, e para o picante aromático verde-escuro granuloso). Depois, o cesto plástico do pão com a forma ainda quente do forno do naan de alho que mergulhamos gulosamente nos chutneys. Só depois a rendição total à textura delicada dos molhos coloridos e aveludados, espécie de bomba calórica de natas e especiarias harmoniosamente combinadas, onde os pedacinhos de frango constroem pequenos relevos escondidos: para mim o vermelho-vivo suave e cremoso salpicado de branco do tikka masala, para a Marta e o Luís o caramelo texturado de nozes do korma, a envolver o arroz solto e seco que realça o travo só levemente condimentado. Só café, depois, para retermos o máximo de tempo possível o festival de sabores que se cruzam na boca durante a refeição. Levei muito tempo a descobrir o requinte da cozinha indiana, mesmo que ocidentalizada. Hoje rendo-me-lhe com o abandono que a sua sensualidade exige.
REPÚBLICA DAS BANANAS #1
É impressão minha ou Portugal entrou completamente em roda livre? E será que isso tem algum interesse enquanto Catarina Furtado continuar a apresentar a Operação Triunfo, as grandes manchetes da Casa Pia serem dedicadas à eventual libertação de Carlos Cruz e Anabela Mota Ribeiro fazer aquele cruzamento inesperado de Bárbara Guimarães e Carlos Pinto Coelho (ora aí está uma ideia que ainda ninguém teve) que é o magazine cultural da "nova" 2?
Miguel Vale de Almeida diz, no seu post do dia de hoje, que há lições a tirar do passado. Miguel Sousa Tavares diz, na sua coluna do Público de hoje, que se navega em águas turbulentas e se corre o risco de abrir precedentes perigosos. Mas servirá para alguma coisa deixar alertas no olho do furacão quando toda a gente está armada em avestruz?
Miguel Vale de Almeida diz, no seu post do dia de hoje, que há lições a tirar do passado. Miguel Sousa Tavares diz, na sua coluna do Público de hoje, que se navega em águas turbulentas e se corre o risco de abrir precedentes perigosos. Mas servirá para alguma coisa deixar alertas no olho do furacão quando toda a gente está armada em avestruz?
8 de janeiro de 2004
O SANGUE OCULTO
Eduardo Prado Coelho escreve hoje, com alguma deselegância, na sua coluna no Público, que o Quarteto se tornou num "lugar inóspito" - a Cristina, a Marta e o Luís devem estar já a rogar pragas ao eminente comentador - mas vale a pena ousar penetrar nesse lugar inóspito para ver "O Seu Irmão", de Patrice Chéreau (estreia hoje em exclusivo naquela sala; chegará mais tarde ao Porto), um dos mais avassaladores filmes que vi nos últimos anos e, sem margem para dúvidas, um dos melhores que vai estrear cá este ano.
É também um dos filmes mais insuportáveis de se ver que já me passaram à frente - o filme de Chéreau é uma crónica de uma morte anunciada, traçando a reconciliação entre dois irmãos desavindos face à doença terminal de um deles. A doença é mostrada de forma clínica e desapaixonada, como aliás todo o filme, concentrado apenas em perseguir, pelo meio do que se diz e, sobretudo, do que não se diz, o "sangue oculto" que os liga indelevelmente. (A excelente nota do António Rodrigues no Diário de Notícias explica tudo.)
É duro ver "O Seu Irmão"; é uma espécie de catarse que não garante a purificação no fim. É um filme que nos confronta com a vida sem pedir licença, que não escamoteia o feio e o sujo. Mas que o faz sem hipocrisias, com toda a entrega e honestidade de que é capaz. É duro, sim; mas é, também, por isso mesmo, obrigatório. E há algo de apropriado em ser exibido nesse "lugar inóspito" em que o Quarteto se tornou para Eduardo Prado Coelho: é um filme sobre a coragem.
É também um dos filmes mais insuportáveis de se ver que já me passaram à frente - o filme de Chéreau é uma crónica de uma morte anunciada, traçando a reconciliação entre dois irmãos desavindos face à doença terminal de um deles. A doença é mostrada de forma clínica e desapaixonada, como aliás todo o filme, concentrado apenas em perseguir, pelo meio do que se diz e, sobretudo, do que não se diz, o "sangue oculto" que os liga indelevelmente. (A excelente nota do António Rodrigues no Diário de Notícias explica tudo.)
É duro ver "O Seu Irmão"; é uma espécie de catarse que não garante a purificação no fim. É um filme que nos confronta com a vida sem pedir licença, que não escamoteia o feio e o sujo. Mas que o faz sem hipocrisias, com toda a entrega e honestidade de que é capaz. É duro, sim; mas é, também, por isso mesmo, obrigatório. E há algo de apropriado em ser exibido nesse "lugar inóspito" em que o Quarteto se tornou para Eduardo Prado Coelho: é um filme sobre a coragem.
CROQUETES & RISSÓIS #4
Segundo lote da revisitação do catálogo Bor Land, iniciada no fim-de-semana e completada aproveitando a chuva miudinha que cobre Lisboa de um cinzento muito nortenho.
Os Alla Polacca, de quem aqui elogiei o EP "Not the White P?", confundem-me. A sua metade do duplo CD "We Have Made Thousands of Lonely People Happy: Why Not You?" (o segundo CD é assinado pelos Stowaways) é uma desilusão - pós-rock a mais, inspiração a menos, melhor nos momentos mais estratosféricos - , mas as suas três colaborações na compilação colectiva "Looking for Stars", também em formato mais convencional de canção, dão a entender que eles também não se safam mal. Pergunto-me se está precisamente nessa multiplicidade de formatos o segredo.
Já que estou a falar de "Looking for Stars", em que cinco nomes tiveram direito a três temas cada para mostrar o que valem: muito bem Old Jerusalem, igualmente muito bem Polaroid (muito anos 80, num cruzamento inspirado das influências do eixo Liverpool-Manchester com as elegias melódicas da primeira Sétima Legião), francamente menos bem Boiar e Abstrakt Circkle, ambos boiando num cabaret desconstruído que soa demasiado a in-joke de universitário armado em intelectual.
Francamente bem, também, os Norton no EP "Make Me Sound"; dentro da corrente do indie frágil com guitarras ambientais, têm bom gosto e alguma inspiração. Nada de novo, mas bem feito.
A segunda metade do split "We Have Made Thousands..." cabe aos Stowaways, e aqui outra grande desilusão - aquilo que me parecia inspirado na compilação "007" surge aqui demasiado marcado pela inspiração Radiohead. Em tempos li, a propósito dos Velvet Underground, que o impacto de um grupo pop na cultura se mede pelo número de bandas que inspira, mas deveria medir-se também pelo número de bandas que inspira mal. No caso dos Stowaways, há muito pouco de próprio e demasiado tirado da banda de Thom Yorke, que continua a ser um marco incontornável... para o bem e para o mal.
Os Alla Polacca, de quem aqui elogiei o EP "Not the White P?", confundem-me. A sua metade do duplo CD "We Have Made Thousands of Lonely People Happy: Why Not You?" (o segundo CD é assinado pelos Stowaways) é uma desilusão - pós-rock a mais, inspiração a menos, melhor nos momentos mais estratosféricos - , mas as suas três colaborações na compilação colectiva "Looking for Stars", também em formato mais convencional de canção, dão a entender que eles também não se safam mal. Pergunto-me se está precisamente nessa multiplicidade de formatos o segredo.
Já que estou a falar de "Looking for Stars", em que cinco nomes tiveram direito a três temas cada para mostrar o que valem: muito bem Old Jerusalem, igualmente muito bem Polaroid (muito anos 80, num cruzamento inspirado das influências do eixo Liverpool-Manchester com as elegias melódicas da primeira Sétima Legião), francamente menos bem Boiar e Abstrakt Circkle, ambos boiando num cabaret desconstruído que soa demasiado a in-joke de universitário armado em intelectual.
Francamente bem, também, os Norton no EP "Make Me Sound"; dentro da corrente do indie frágil com guitarras ambientais, têm bom gosto e alguma inspiração. Nada de novo, mas bem feito.
A segunda metade do split "We Have Made Thousands..." cabe aos Stowaways, e aqui outra grande desilusão - aquilo que me parecia inspirado na compilação "007" surge aqui demasiado marcado pela inspiração Radiohead. Em tempos li, a propósito dos Velvet Underground, que o impacto de um grupo pop na cultura se mede pelo número de bandas que inspira, mas deveria medir-se também pelo número de bandas que inspira mal. No caso dos Stowaways, há muito pouco de próprio e demasiado tirado da banda de Thom Yorke, que continua a ser um marco incontornável... para o bem e para o mal.
MUNDOS SECRETOS #3
Na edição de Dezembro da Mojo - revista inglesa de música que gosto muito de ler porque gosto de aprender com quem sabe tratar bem das memórias da cultura pop - descubro a melhor definição que jamais li da música de Bruce Springsteen. É na crítica da grande Sylvie Simmons ao recém-lançado "The Essential" (Columbia/Sony, 2003) e é daquelas peças de prosa que me fazem roer-me de inveja por não ter conseguido escrever nada de tão bom (desculpem não traduzir, mas esta tem de ir mesmo no original):
"When I grew up", Bruce Springsteen once told me, "rock'n'roll was the only thing that was never untrue, never let me down. So you've got a lot to live up to when you walk out there and do it. You've got to be your own hero." Coming from anyone else, a line like that could spin itself into a very strong noose (imagine Sting saying that, or Jon Bon Jovi); but there has always been something heroic about Springsteen. An adolescent heroism - all big, unmanageable, Technicolor emotions and hormones. It's in the music: the lonely echo on the vocal, the big, barnstorming build-ups from the band, the almost overwrought exuberance and extravagant idealism. A stagey, big-gesture kind of heroism - "West Side Story" set in New Jersey - where the little guy with the big heart gets the girl and the glory in the end.
E foi, sempre, precisamente essa fé inabalável no poder redentor do rock'n'roll que me atraiu a Springsteen. Porque ele acredita, e porque comunica essa crença com toda a energia que tem, em concertos que sempre tiveram muito mais de celebração comunal do mito americano do que, apenas, de rock'n'roll. Talvez por isso não seja totalmente casual que uma das suas melhores canções recentes, "The Fuse", tenha aparecido no genérico final do melhor filme que vi em 2003, "A Última Hora", de Spike Lee; tem tudo a ver com a redenção que só a entrega total permite, com o abandono àquilo que é maior que nós. E não é por acaso que o rock'n'roll, para Springsteen, sempre foi uma religião.
"When I grew up", Bruce Springsteen once told me, "rock'n'roll was the only thing that was never untrue, never let me down. So you've got a lot to live up to when you walk out there and do it. You've got to be your own hero." Coming from anyone else, a line like that could spin itself into a very strong noose (imagine Sting saying that, or Jon Bon Jovi); but there has always been something heroic about Springsteen. An adolescent heroism - all big, unmanageable, Technicolor emotions and hormones. It's in the music: the lonely echo on the vocal, the big, barnstorming build-ups from the band, the almost overwrought exuberance and extravagant idealism. A stagey, big-gesture kind of heroism - "West Side Story" set in New Jersey - where the little guy with the big heart gets the girl and the glory in the end.
E foi, sempre, precisamente essa fé inabalável no poder redentor do rock'n'roll que me atraiu a Springsteen. Porque ele acredita, e porque comunica essa crença com toda a energia que tem, em concertos que sempre tiveram muito mais de celebração comunal do mito americano do que, apenas, de rock'n'roll. Talvez por isso não seja totalmente casual que uma das suas melhores canções recentes, "The Fuse", tenha aparecido no genérico final do melhor filme que vi em 2003, "A Última Hora", de Spike Lee; tem tudo a ver com a redenção que só a entrega total permite, com o abandono àquilo que é maior que nós. E não é por acaso que o rock'n'roll, para Springsteen, sempre foi uma religião.
BLOGO, LOGO EXISTO #2
Alguém me dizia no Forum Sons que um blog é como um tamagochi (lembram-se?...): precisa de ser bem tratado e regularmente. E para quê?... Os pais, geralmente, não hesitam em lançar impropérios contra os filhos mal-agradecidos que não sabem reconhecer tudo o que fizeram por eles; porque haveria de ser diferente com um blog?
A esse respeito, apanhei no domingo por mero acaso uma passagem de um documentário no canal 2 sobre Maria Callas, onde a diva, falando sobre a sua mãe, dizia que as mães têm a obrigação de serem maravilhosas porque é para isso que existem. O dever de mãe é ser a melhor mãe do mundo e se não o fôr alguma coisa está errada.
Por analogia, o dever de um bloguista é ser o melhor bloguista do mundo, mesmo sabendo que a lei das probabilidades matemáticas (e a quantidade abismal de blogs existente) joga contra nós. E, contudo, nós, os bloguistas, insistimos (blogo logo insisto?). Sabendo muito bem que um blog é uma espécie de castelo na areia que se constrói, desconstrói e reconstrói diariamente, ao sabor de quem o vai fazendo e lendo...
Para mim, confesso, o blog é, entre muitas outras coisas, um atalho para redescobrir o prazer da escrita confidencial; aquela que se faz apenas porque se tem uma necessidade de comunicar, de soltar algo que está cá dentro, sem mote prévio nem prazo a cumprir nem regra de estilo.
Mas e se o blog fosse também um artifício, uma ilusão construída para nós próprios, a ilusão da nossa própria importância/influência no mundo? Se o blog fôssemos nós a exigir os nossos quinze minutos de fama independentemente de os merecermos? Se o blog fôssemos nós a fingir para nós mesmos que temos amigos à distância de um teclado e de uma linha telefónica - mas que não passam de uma comunidade virtual alojada na nossa imaginação?
Há uns anos passou aí uma fita independente americana - presciente, face ao que sei hoje, mas que na altura não me convenceu por aí além... - chamada "Denise Telefona", sobre um grupo de amigos que passavam a vida a telefonar uns aos outros - e que preferiam falar-se ao telefone do que encontrar-se em pessoa. E se o blog fosse a versão virtual dessa comunidade tecnologicamente primitiva?
A esse respeito, apanhei no domingo por mero acaso uma passagem de um documentário no canal 2 sobre Maria Callas, onde a diva, falando sobre a sua mãe, dizia que as mães têm a obrigação de serem maravilhosas porque é para isso que existem. O dever de mãe é ser a melhor mãe do mundo e se não o fôr alguma coisa está errada.
Por analogia, o dever de um bloguista é ser o melhor bloguista do mundo, mesmo sabendo que a lei das probabilidades matemáticas (e a quantidade abismal de blogs existente) joga contra nós. E, contudo, nós, os bloguistas, insistimos (blogo logo insisto?). Sabendo muito bem que um blog é uma espécie de castelo na areia que se constrói, desconstrói e reconstrói diariamente, ao sabor de quem o vai fazendo e lendo...
Para mim, confesso, o blog é, entre muitas outras coisas, um atalho para redescobrir o prazer da escrita confidencial; aquela que se faz apenas porque se tem uma necessidade de comunicar, de soltar algo que está cá dentro, sem mote prévio nem prazo a cumprir nem regra de estilo.
Mas e se o blog fosse também um artifício, uma ilusão construída para nós próprios, a ilusão da nossa própria importância/influência no mundo? Se o blog fôssemos nós a exigir os nossos quinze minutos de fama independentemente de os merecermos? Se o blog fôssemos nós a fingir para nós mesmos que temos amigos à distância de um teclado e de uma linha telefónica - mas que não passam de uma comunidade virtual alojada na nossa imaginação?
Há uns anos passou aí uma fita independente americana - presciente, face ao que sei hoje, mas que na altura não me convenceu por aí além... - chamada "Denise Telefona", sobre um grupo de amigos que passavam a vida a telefonar uns aos outros - e que preferiam falar-se ao telefone do que encontrar-se em pessoa. E se o blog fosse a versão virtual dessa comunidade tecnologicamente primitiva?
7 de janeiro de 2004
O COPO MEIO VAZIO
playlist: marginália at the movies: Angelo Badalamenti, Craig Armstrong
porque a solidão não se compadece com a leviandade de uma carícia displicente
tu não me bastas
já ouvi as tuas palavras vezes sem conta
ditas por outrem
e já na altura não acreditava nelas
porque sei que (apesar do que possas dizer)
continuarei sozinho depois de te ires embora
à procura de quem me preencha o vazio
sabendo que o vazio é grande demais
e que a solidão estará a roer
à borda do espaço que ficou por encher
porque é isso que a solidão faz:
até já não se perceber
que já não se está sozinho.
porque a solidão não gosta de estar acompanhada.
porque a solidão não se compadece com a leviandade de uma carícia displicente
tu não me bastas
já ouvi as tuas palavras vezes sem conta
ditas por outrem
e já na altura não acreditava nelas
porque sei que (apesar do que possas dizer)
continuarei sozinho depois de te ires embora
à procura de quem me preencha o vazio
sabendo que o vazio é grande demais
e que a solidão estará a roer
à borda do espaço que ficou por encher
porque é isso que a solidão faz:
até já não se perceber
que já não se está sozinho.
porque a solidão não gosta de estar acompanhada.
NO CINEMA TUDO É PERFEITO
Já perto do fim de "Punch-Drunk Love", a obra-prima mágica de Paul Thomas Anderson, Adam Sandler confronta Philip Seymour Hoffman. E diz-lhe isto:
I have so much strength in me you have no idea. I have a love in my life. That makes me stronger than anything you can imagine.
Gostava de poder dizer o mesmo de mim.
I have so much strength in me you have no idea. I have a love in my life. That makes me stronger than anything you can imagine.
Gostava de poder dizer o mesmo de mim.
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #2
De passagem pela Defensores de Chaves pouco antes da hora do almoço, passei pelo espaço onde em tempos esteve o Estúdio 444 (em frente à actual Direcção-Geral dos Registos e Notariado). Já nenhum sinal está naquela frontaria anónima e fechada de que ali esteve uma sala de cinema, bastante simpática por sinal, muito anos 60 (paredes revestidas a madeira, se não me engano), onde passava muito cinema europeu. Apesar da entrada ser exígua (afinal, era uma cave de prédio de habitação...), lá dentro o átrio (foyer, como antes se chamava...) era até bastante espaçoso, aliás como a sala (os meus arquivos dão-lhe pouco mais de 400 lugares). Apanhei-a já nos seus anos terminais da década de 80 - fechou, se não me falha a memória, em 86 ou 87, com o inenarrável "Querido Lilás" (Artur Semedo e Herman José, olha que dois!) como último filme que lá foi exibido. Não me recordo de ali ter existido alguma coisa após o fecho - hoje parece-me vazio, a sala provavelmente desmontada. A loja de artigos para automóveis que sempre conheci ao seu lado, Fórmula 81 de seu nome, continua lá.
ALEGRIA NO TRABALHO
Hoje fui atendido numa loja da Avenida de Roma por uma empregada que não apenas foi simpática, bem-educada e disponível como era parecidíssima com Edie Falco, a Carmela da série "Os Sopranos". De facto, faz uma diferença daquelas balconistas enjoadas que parecem fazer um frete do caraças quando perguntamos se tem aquele sapato no nosso número ou noutra cor e têm de ir ao armazém verificar. Por isso é que eu desconfio sempre daquelas campanhas "salvem o comércio tradicional" (como se o comércio tradicional fosse uma espécie em vias de extinção, tipo lince da serra da Malcata) - às vezes, a qualidade do atendimento (ao nível do funcionalismo público mais rasteiro) dá a entender que o comércio tradicional não quer realmente ser salvo...
6 de janeiro de 2004
PARABÉNS A VOCÊ
O Apple Macintosh, o computador pessoal mais carismático do mundo, faz vinte anos esta semana. Até os detractores (e são muitos...) terão de admitir que é uma data histórica, sobretudo para uma máquina que está longe de ser massificada. Mas o facto é que quase toda a arquitectura de interfaces que é hoje standard em qualquer PC manhoso foi desenvolvida pela Apple, e que o Macintosh foi sempre um líder estético e criativo que ajudou, e muito, à chegada da era do computador pessoal. Claro que, como todos sabemos, os pioneiros vanguardistas nunca arrecadam as recompensas financeiras, e a Apple continua a ser um nicho de mercado. Mas o carisma garante ferrenhos - o carisma e a fiabilidade (mesmo sabendo eu que os modelos mais potentes usados em aplicações gráficas vão abaixo mais do que seria desejável). Afinal, eu já vou em doze anos de Macintosh e apenas precisei de mudar duas vezes de computador - em ambos os casos por pura e simples obsolescência do sistema...
POST FILOSÓFICO DE CALÃO CARO E CONTEÚDO NULO
playlist: Canto Nono: "O Porto a Oito Vozes", Capitol/EMI, 2003
"O meu único interesse é pela autenticidade e pela integridade. É isso que quero que a minha vida reflicta. A originalidade induz totalmente em erro, está sobrevalorizada e só está lá para estancar a criatividade das pessoas. No passado a ideia de originalidade era só uma idiotice pós-moderna. Advogo a autenticidade sobre a originalidade."
"A percepção que as pessoas têm de alguém não é realmente a essência do que são. Faço tudo para descobrir o que é essa essência. Não escondo a minha idiotice. Na realidade tento muitas vezes trabalhar com as minhas limitações como se fossem as minhas forças. Esse é o nosso direito de nascimento como seres humanos - tornarmo-nos em quem somos realmente e ser capaz de comunicar verdadeiramente com os outros. Não se pode fazer isso por trás de conversas de chacha ou de fachadas."
- Billy Childish, músico e pintor inglês, em entrevista a Phil Alexander, in Mojo, Dezembro de 2003 (mas eu subscrevo)
"O meu único interesse é pela autenticidade e pela integridade. É isso que quero que a minha vida reflicta. A originalidade induz totalmente em erro, está sobrevalorizada e só está lá para estancar a criatividade das pessoas. No passado a ideia de originalidade era só uma idiotice pós-moderna. Advogo a autenticidade sobre a originalidade."
"A percepção que as pessoas têm de alguém não é realmente a essência do que são. Faço tudo para descobrir o que é essa essência. Não escondo a minha idiotice. Na realidade tento muitas vezes trabalhar com as minhas limitações como se fossem as minhas forças. Esse é o nosso direito de nascimento como seres humanos - tornarmo-nos em quem somos realmente e ser capaz de comunicar verdadeiramente com os outros. Não se pode fazer isso por trás de conversas de chacha ou de fachadas."
- Billy Childish, músico e pintor inglês, em entrevista a Phil Alexander, in Mojo, Dezembro de 2003 (mas eu subscrevo)
O BURRO A OLHAR PARA O PALÁCIO
Que me desculpem os muitos ferrenhos da série "Sete Palmos de Terra" que ontem recomeçou na "nova" 2: não consigo ver. Acho muito bom mas aquilo mexe comigo a um nível tão fundo que não sou capaz de ficar a ver um episódio que seja, contorço-me todo de desconforto. Acontece.
(Também nunca achei graça ao "Seinfeld", mas acho que isso é por outros motivos.)
(Também nunca achei graça ao "Seinfeld", mas acho que isso é por outros motivos.)
5 de janeiro de 2004
CONVERSAS DA TRETA
Em conversa com a minha amiga Maria (com quem até o simples acto de tomar um café se transforma num exercício saudável de lucidez, numa aprendizagem constante dos pequenos detalhes que nos definem enquanto pessoas), discutíamos a incapacidade que ambos temos de entrarmos na proverbial "conversa de chacha" que apenas nos faz perder tempo e projecta imagens que, provavelmente, nada têm a ver com as pessoas reais por trás das convenções sociais. E, contudo, quantas serão as pessoas que usam o facto de não gostarem de conversas da treta para o transformarem, ele próprio, numa conversa da treta? O paradoxo fica aí. O café estava bom.
SOL DE INVERNO
De um momento para o outro, as ruas voltaram a encher-se de carros, o metro de gente com pressa, o ginásio onde treino de pessoas com imensa vontade de perder depressa as calorias ganhas durante as comezainas das festas. De um momento para o outro, Lisboa voltou ao seu estatuto de metrópole moderna apressada, com as longas filas de carros em hora de ponta e as revoadas de passageiros que entram e saem dos transportes públicos. De um momento para o outro, a neura das festas é substituída pela neura do regresso ao trabalho, peculiar característica da espécie humana "homo portugalis" que tem tendência a só gostar das coisas quando já não as tem/pode ter. Não deve ser por acaso que uma sondagem europeia dizia no outro dia que os portugueses são o povo mais deprimido da Europa. Só o brilho ofuscante do sol de inverno contradiz o quadro; como se se tivesse carregado no botão de "pause" a 23 de Dezembro e retomado o "play" a 5 de Janeiro, como se este intervalo não tivesse realmente existido.
4 de janeiro de 2004
CROQUETES & RISSÓIS #3
playlist: Atmosphere, "Seven’s Travels", Epitaph 2003
Fim-de-semana dedicado, entre outros sons (Missy Elliott a legislar "Under Construction" no carro, porque ainda não passei "This Is Not a Test!" para cassete), a uma visão de conjunto do muito estimulante catálogo Bor Land, sugerida pela omnipresença do "ponta-de-lança" Old Jerusalem entre os melhores do ano e por um simpático promo antecipação 2004 enviado pela companhia. Uma pequena editora portuguesa (gente do Norte, carago!) que está a construir aquele que já é, sem sombra para dúvidas, o mais interessante catálogo independente nacional dos últimos anos, tanto musical como graficamente (as capas são, todas, notáveis). A coerência do que aqui se ouve é espantosa; poderá estar aqui o equivalente nacional de uma 4AD? Para quem não conhece nada e quer ouvir, há um site.
O Rodrigo Cardoso fez o especial favor de me ir enviando as edições todas de 2003 (aqui fica o agradecimento público) e teve o azar que me tenha calhado em rifa fazer crítica no Blitz ao disco que menos gostei do lote – o muito cavernoso "Fantôme Intro Das Waltz" dos Kafka (um disco um bocadinho gótico demais para o meu gosto, confesso). Mas a audição de conjunto favorece, e muito, o reportório.
Confirma-se – "April", o longo de Old Jerusalem, "alter ego" do cantor-compositor Francisco Silva, é um disco que cresce com o tempo. Quando o ouvi pela primeira vez achei que havia ali Will Oldham, Michael Stipe e Nick Drake a mais, agora já não; acho mesmo que há isso tudo na medida exacta e que Francisco Silva é um talento que convém deixar amadurecer com calma, na sombra, sem pressas. Porque "April" já é muito bom, mas ainda só é o primeiro.
Dos discos que piquei na altura e a que só agora prestei a devida atenção (primeiro lote; o segundo ficará para outro post), o destaque evidente vai para os Alla Polacca. O EP (4 temas) "Not the White P?" é uma colecção de miniaturas delicadas freeform ao piano que, juro, me recordam Keith Jarrett na fase do concerto de Colónia, o que, no meu livro, é uma coisa mesmo muito boa.
No outro extremo estão os In Her Space, cujo álbum "No Body Needed", registo integral de um concerto ao vivo, tem uma curiosa versão desacelerada de "Careless Whisper" de George Michael. Isso não impede, contudo, que eu ache que os In Her Space andam a ouvir muito Radiohead via Codeine, o que, no meu livro, não é necessariamente bom.
No meio está o EP (3 temas) de The Neon Road, "Am I Welcome Here", numa estética de folk astral que me pareceu demasiado Vincent Gallo para o meu gosto o que, no meu livro, é francamente preocupante. No meio ainda a compilação "007", que, como qualquer compilação, tem os seus momentos; retenho, curiosamente, como mais interessante os nomes cujo trabalho já me é conhecido (Old Jerusalem, Unplayable Sofa Guitar, Bildmeister e Norton) e alguns que me deixaram vontade de investigar (Stowaways, Mindelo, Simpletone).
Fim-de-semana dedicado, entre outros sons (Missy Elliott a legislar "Under Construction" no carro, porque ainda não passei "This Is Not a Test!" para cassete), a uma visão de conjunto do muito estimulante catálogo Bor Land, sugerida pela omnipresença do "ponta-de-lança" Old Jerusalem entre os melhores do ano e por um simpático promo antecipação 2004 enviado pela companhia. Uma pequena editora portuguesa (gente do Norte, carago!) que está a construir aquele que já é, sem sombra para dúvidas, o mais interessante catálogo independente nacional dos últimos anos, tanto musical como graficamente (as capas são, todas, notáveis). A coerência do que aqui se ouve é espantosa; poderá estar aqui o equivalente nacional de uma 4AD? Para quem não conhece nada e quer ouvir, há um site.
O Rodrigo Cardoso fez o especial favor de me ir enviando as edições todas de 2003 (aqui fica o agradecimento público) e teve o azar que me tenha calhado em rifa fazer crítica no Blitz ao disco que menos gostei do lote – o muito cavernoso "Fantôme Intro Das Waltz" dos Kafka (um disco um bocadinho gótico demais para o meu gosto, confesso). Mas a audição de conjunto favorece, e muito, o reportório.
Confirma-se – "April", o longo de Old Jerusalem, "alter ego" do cantor-compositor Francisco Silva, é um disco que cresce com o tempo. Quando o ouvi pela primeira vez achei que havia ali Will Oldham, Michael Stipe e Nick Drake a mais, agora já não; acho mesmo que há isso tudo na medida exacta e que Francisco Silva é um talento que convém deixar amadurecer com calma, na sombra, sem pressas. Porque "April" já é muito bom, mas ainda só é o primeiro.
Dos discos que piquei na altura e a que só agora prestei a devida atenção (primeiro lote; o segundo ficará para outro post), o destaque evidente vai para os Alla Polacca. O EP (4 temas) "Not the White P?" é uma colecção de miniaturas delicadas freeform ao piano que, juro, me recordam Keith Jarrett na fase do concerto de Colónia, o que, no meu livro, é uma coisa mesmo muito boa.
No outro extremo estão os In Her Space, cujo álbum "No Body Needed", registo integral de um concerto ao vivo, tem uma curiosa versão desacelerada de "Careless Whisper" de George Michael. Isso não impede, contudo, que eu ache que os In Her Space andam a ouvir muito Radiohead via Codeine, o que, no meu livro, não é necessariamente bom.
No meio está o EP (3 temas) de The Neon Road, "Am I Welcome Here", numa estética de folk astral que me pareceu demasiado Vincent Gallo para o meu gosto o que, no meu livro, é francamente preocupante. No meio ainda a compilação "007", que, como qualquer compilação, tem os seus momentos; retenho, curiosamente, como mais interessante os nomes cujo trabalho já me é conhecido (Old Jerusalem, Unplayable Sofa Guitar, Bildmeister e Norton) e alguns que me deixaram vontade de investigar (Stowaways, Mindelo, Simpletone).
LOGBOOK #1: A MELHOR VISIBILIDADE DE SESIMBRA
Sesimbra: Cabo Afonso, domingo 4 de Janeiro, 11h01; 11.8m, 51min, 14ºC
O azul luminoso e infinito do céu, a esbranquiçar até encontrar o horizonte perfeito circular do azul do mar, o semi-rígido que parece deslizar sobre a água, a gaivota que rasa a superfície à mesma velocidade do barco para de súbito se elevar e se lhe atravessar ao caminho e desaparecer nas minhas costas. A viagem de regresso é sempre o momento em que o mergulho completa o seu efeito: em que todas as preocupações são atiradas para trás das costas e fica a vontade de reter aquele instante, para o recuperar sempre que os dias não correm como gostaríamos.
Antes, quase uma hora de imponderabilidade, a cirandar a pedra viva do Cabo Afonso, a fazer zoom às vidas que ali fluem com as ondas - aqui um choco, ali uma anémona, acolá uma estrela do mar, todos eles alheios à dúzia de visitantes que foi ali à procura de um instante de deslumbre. As minhas barbatanas, mesmo a um metro do chão arenoso, levantam uma pequena nuvem de poeira branca que desenha o movimento da pouca corrente; só o som mecânico da minha respiração, o borbulhar que se escapa dos reguladores interrompe o ruído branco, atmosférico e tranquilizante, do mar costeiro, da água turquesa de visibilidade quase interminável. O som de um mundo em harmonia consigo próprio. A recarga de equilíbrio pessoal que só o mar permite.
O azul luminoso e infinito do céu, a esbranquiçar até encontrar o horizonte perfeito circular do azul do mar, o semi-rígido que parece deslizar sobre a água, a gaivota que rasa a superfície à mesma velocidade do barco para de súbito se elevar e se lhe atravessar ao caminho e desaparecer nas minhas costas. A viagem de regresso é sempre o momento em que o mergulho completa o seu efeito: em que todas as preocupações são atiradas para trás das costas e fica a vontade de reter aquele instante, para o recuperar sempre que os dias não correm como gostaríamos.
Antes, quase uma hora de imponderabilidade, a cirandar a pedra viva do Cabo Afonso, a fazer zoom às vidas que ali fluem com as ondas - aqui um choco, ali uma anémona, acolá uma estrela do mar, todos eles alheios à dúzia de visitantes que foi ali à procura de um instante de deslumbre. As minhas barbatanas, mesmo a um metro do chão arenoso, levantam uma pequena nuvem de poeira branca que desenha o movimento da pouca corrente; só o som mecânico da minha respiração, o borbulhar que se escapa dos reguladores interrompe o ruído branco, atmosférico e tranquilizante, do mar costeiro, da água turquesa de visibilidade quase interminável. O som de um mundo em harmonia consigo próprio. A recarga de equilíbrio pessoal que só o mar permite.
3 de janeiro de 2004
AFORISMO INÚTIL #4
Os portugueses são um povo que defende apaixonadamente as regras para os outros e que defende ainda mais ferventemente as excepções às regras para si próprios.
OS MARINHEIROS AVENTUREIROS #1
playlist: In Her Space: "No Body Needed" (Bor Land, 2003); Alexandre Desplat: "Girl with a Pearl Earring" (Decca, 2003)
O Público da passada terça-feira (30) trazia uma deliciosa notícia sobre o recorde nacional de 81m de profundidade atingido pelos mergulhadores da Armada portuguesa utilizando aparelhos de respiração semi-fechados. A notícia é deliciosa não só pelo ridículo da situação - lá fora até mergulhadores desportivos amadores, os chamados "techies", vão mais fundo do que isto respirando ar ou misturas gasosas em circuito aberto, e os recordes de profundidade atingidos, quer em apneia quer com aparelhos de respiração, ultrapassam em muito os 81m - como pelas questões que levanta relativas à legislação portuguesa do mergulho amador e perante aquilo a que hoje em dia se convencionou considerar jornalismo.
A discussão tem sido acesa no Forum Mergulho, mas penso que vale a pena extrapolar um pouco. Muitos apontaram a notícia como exemplo de um jornalismo de desinformação que parece estar a ganhar terreno na nossa imprensa, sobretudo face a algumas incorrecções técnicas presentes no texto.
Num dos posts colocados no Forum Mergulho, diz-se que na comunicação social não se comunica - informa-se. A questão não é que a comunicação social informe em vez de comunicar, visto que a sua função sempre foi informar e continua a sê-lo – geralmente, só aos colunistas ou críticos residentes é permitido emitir uma opinião, necessariamente pessoal e intransmissível, sobre um assunto, já que as regras fundamentais do jornalismo favorecem a neutralidade face a qualquer assunto e a apresentação clara e concisa dos vários pontos de vista de uma mesma questão.
Mas é realmente possível, face à multiplicidade de pontos de vista que hoje em dia existem – e estou já a extrapolar para fora do caso específico que deu origem a este post -, que ainda exista essa isenção e neutralidade? Sobretudo num momento dramático em que jornais lutam para sobreviver, em que são os DVDs e os livros que efectivamente puxam a carroça das vendas dos diários, sugerindo que não são já os jornais aquilo que as pessoas compram, mas sim os "extras"? Sobretudo face à multiplicidade de "casos da vida", de questões sociais que quase exigem uma tomada de partido, ética ou moral ou apenas sensata, que parecem ser o cerne dos noticiários televisivos? Onde está o espaço para a informação rigorosa quando já se provou que é o sensacionalismo que ganha audiências?
Toda a gente viu, falou ou ouviu falar do momento em que Miguel Sousa Tavares e Manuela Moura Guedes se degladiaram num noticiário da TVI – mas alguém se lembra do assunto que o originou? E será que isso tem alguma importância? Toda a gente se lembra da polémica que se gerou à volta da questão da atribuição dos subsídios a "Branca de Neve", a "obra ao negro" de João César Monteiro. Muito se protestou, muita tinta correu nos jornais e nas televisões (é para subsidiar isto que está a ir o dinheiro dos contribuintes?), mas nunca ninguém se preocupou em verificar se o subsídio tinha sido atribuído ao projecto quando ele ainda era um filme "normal", antes de Monteiro ter feito a sua "birra cósmica" e ter decidido que o filme não teria imagem, nem em investigar as sequelas (o subsídio foi efectivamente gasto? se não, foi devolvido?).
A notícia do Público, que considero um fait-divers sem especial importância para o futuro da nação (embora talvez não para os bolsos dos contribuintes...), é um daqueles casos típicos de "silly season" cíclica em que a ausência de outros assuntos mais estimulantes puxa para destaque notícias que normalmente passariam mais despercebidas. Mas ela, e a reacção apaixonada que mereceu da comunidade subaquática, é também um sintoma. De que os padrões estão a baixar e de que ainda há quem não o admita; da consciência que os jornalistas têm de que estão, cada vez mais, a falar para o boneco; da consciência que os leitores têm de que, cada vez mais, não se revêem naquilo que lêem. Mas o filão desta questão está ainda longe de estar esgotado.
O Público da passada terça-feira (30) trazia uma deliciosa notícia sobre o recorde nacional de 81m de profundidade atingido pelos mergulhadores da Armada portuguesa utilizando aparelhos de respiração semi-fechados. A notícia é deliciosa não só pelo ridículo da situação - lá fora até mergulhadores desportivos amadores, os chamados "techies", vão mais fundo do que isto respirando ar ou misturas gasosas em circuito aberto, e os recordes de profundidade atingidos, quer em apneia quer com aparelhos de respiração, ultrapassam em muito os 81m - como pelas questões que levanta relativas à legislação portuguesa do mergulho amador e perante aquilo a que hoje em dia se convencionou considerar jornalismo.
A discussão tem sido acesa no Forum Mergulho, mas penso que vale a pena extrapolar um pouco. Muitos apontaram a notícia como exemplo de um jornalismo de desinformação que parece estar a ganhar terreno na nossa imprensa, sobretudo face a algumas incorrecções técnicas presentes no texto.
Num dos posts colocados no Forum Mergulho, diz-se que na comunicação social não se comunica - informa-se. A questão não é que a comunicação social informe em vez de comunicar, visto que a sua função sempre foi informar e continua a sê-lo – geralmente, só aos colunistas ou críticos residentes é permitido emitir uma opinião, necessariamente pessoal e intransmissível, sobre um assunto, já que as regras fundamentais do jornalismo favorecem a neutralidade face a qualquer assunto e a apresentação clara e concisa dos vários pontos de vista de uma mesma questão.
Mas é realmente possível, face à multiplicidade de pontos de vista que hoje em dia existem – e estou já a extrapolar para fora do caso específico que deu origem a este post -, que ainda exista essa isenção e neutralidade? Sobretudo num momento dramático em que jornais lutam para sobreviver, em que são os DVDs e os livros que efectivamente puxam a carroça das vendas dos diários, sugerindo que não são já os jornais aquilo que as pessoas compram, mas sim os "extras"? Sobretudo face à multiplicidade de "casos da vida", de questões sociais que quase exigem uma tomada de partido, ética ou moral ou apenas sensata, que parecem ser o cerne dos noticiários televisivos? Onde está o espaço para a informação rigorosa quando já se provou que é o sensacionalismo que ganha audiências?
Toda a gente viu, falou ou ouviu falar do momento em que Miguel Sousa Tavares e Manuela Moura Guedes se degladiaram num noticiário da TVI – mas alguém se lembra do assunto que o originou? E será que isso tem alguma importância? Toda a gente se lembra da polémica que se gerou à volta da questão da atribuição dos subsídios a "Branca de Neve", a "obra ao negro" de João César Monteiro. Muito se protestou, muita tinta correu nos jornais e nas televisões (é para subsidiar isto que está a ir o dinheiro dos contribuintes?), mas nunca ninguém se preocupou em verificar se o subsídio tinha sido atribuído ao projecto quando ele ainda era um filme "normal", antes de Monteiro ter feito a sua "birra cósmica" e ter decidido que o filme não teria imagem, nem em investigar as sequelas (o subsídio foi efectivamente gasto? se não, foi devolvido?).
A notícia do Público, que considero um fait-divers sem especial importância para o futuro da nação (embora talvez não para os bolsos dos contribuintes...), é um daqueles casos típicos de "silly season" cíclica em que a ausência de outros assuntos mais estimulantes puxa para destaque notícias que normalmente passariam mais despercebidas. Mas ela, e a reacção apaixonada que mereceu da comunidade subaquática, é também um sintoma. De que os padrões estão a baixar e de que ainda há quem não o admita; da consciência que os jornalistas têm de que estão, cada vez mais, a falar para o boneco; da consciência que os leitores têm de que, cada vez mais, não se revêem naquilo que lêem. Mas o filão desta questão está ainda longe de estar esgotado.
CROQUETES & RISSÓIS #2
Primeiro de Janeiro calmo, oportunidade para pôr em dia mais uns quantos atrasos. Em rigor, um deles não o era - "Négatif" de Benjamin Biolay (Virgin, 2003) já tinha rodado pelo leitor, mas não com a atenção que agora o confirma um magnífico (e ambicioso) álbum que recorda um Lloyd Cole bem mais elegante alimentado aos grandes chansonniers franceses. O disco é duplo, cheio de boas canções, e não faço ideia se chegou a sair cá - nem, aliás, o excelente anterior (de estreia) "Rose Kennedy" (Virgin, 2002). Se o virem por aí, não liguem à capa muito David Bailey e peçam para ouvir antes de comprar, que eu não ando aqui a enganar ninguém.
As três repescagens seguintes são mesmo repescagens - uma compilação de gravações de Boris Vian ("Boris Vian", Philips/Mercury, 2001), gravadas maioritariamente em 1956 (com uma excepção de 1955), o recente duplo best-of de Jacques Brel ("Infiniment", Barclay/Universal, 2003), e a reedição de "White-Out Conditions" dos Bel Canto (Crammed Discs/Ananana, 1988/2003) integrada na colecção comemorativa do aniversário da Crammed.
De Brel já falei noutro post e toda a insistência para o escutarmos será sempre pouca - este duplo com 40 temas (ampliando o anterior "best of" em CD "15 Ans d'Amour") propõe ainda por cima cinco inéditos que Brel deixou de fora do seu último álbum por os considerar inacabados, terminados hoje pelos seus colaboradores de sempre François Rauber e Gérard Jouannest. Não me parece boa ideia colocá-los a abrir - ainda por cima isso obriga a que a primeira metade do primeiro CD seja completada por mais alguns temas contemporâneos e que a primeira canção do disco seja ainda por cima uma versão -, mas é só vontade de botar defeito na edição.
De Vian é delicioso compreender como a sua ironia e a sua irrisão eram mascaradas pela aparente banalidade das composições (apenas aparente), fazendo passar mensagens profundamente subversivas por entre canções perfeitamente normais para o seu tempo (como esse imortal "Je Suis Snob" ou as corrosivíssimas "La Java des Bombes Atomiques" e "Le Déserteur"). A gravação está com boa qualidade sonora, pena a falta de informação na edição (que julgo reproduzir um LP de época). O disco é um mid-price francês indisponível cá (www.fnac.com é sempre uma boa ideia, sobretudo no princípio do ano com os escoamentos de stock).
Dos Bel Canto, na altura muito endeusados por quem estava mais ligado ao "som da frente", fica-me apenas um ligeiro travo "fora de prazo", de disco muito preso ao tempo em que foi feito (e a referência aos Cocteau Twins em formato digital está demasiado presente). Curiosamente, coisas como "Upland" antecipam o "alter ego" Biosphere, que um dos elementos do trio, Geir Jenssen, lançaria anos mais tarde, mas ouvido hoje "White-Out Conditions" tem muito ar de polaroid desbotada de época.
As três repescagens seguintes são mesmo repescagens - uma compilação de gravações de Boris Vian ("Boris Vian", Philips/Mercury, 2001), gravadas maioritariamente em 1956 (com uma excepção de 1955), o recente duplo best-of de Jacques Brel ("Infiniment", Barclay/Universal, 2003), e a reedição de "White-Out Conditions" dos Bel Canto (Crammed Discs/Ananana, 1988/2003) integrada na colecção comemorativa do aniversário da Crammed.
De Brel já falei noutro post e toda a insistência para o escutarmos será sempre pouca - este duplo com 40 temas (ampliando o anterior "best of" em CD "15 Ans d'Amour") propõe ainda por cima cinco inéditos que Brel deixou de fora do seu último álbum por os considerar inacabados, terminados hoje pelos seus colaboradores de sempre François Rauber e Gérard Jouannest. Não me parece boa ideia colocá-los a abrir - ainda por cima isso obriga a que a primeira metade do primeiro CD seja completada por mais alguns temas contemporâneos e que a primeira canção do disco seja ainda por cima uma versão -, mas é só vontade de botar defeito na edição.
De Vian é delicioso compreender como a sua ironia e a sua irrisão eram mascaradas pela aparente banalidade das composições (apenas aparente), fazendo passar mensagens profundamente subversivas por entre canções perfeitamente normais para o seu tempo (como esse imortal "Je Suis Snob" ou as corrosivíssimas "La Java des Bombes Atomiques" e "Le Déserteur"). A gravação está com boa qualidade sonora, pena a falta de informação na edição (que julgo reproduzir um LP de época). O disco é um mid-price francês indisponível cá (www.fnac.com é sempre uma boa ideia, sobretudo no princípio do ano com os escoamentos de stock).
Dos Bel Canto, na altura muito endeusados por quem estava mais ligado ao "som da frente", fica-me apenas um ligeiro travo "fora de prazo", de disco muito preso ao tempo em que foi feito (e a referência aos Cocteau Twins em formato digital está demasiado presente). Curiosamente, coisas como "Upland" antecipam o "alter ego" Biosphere, que um dos elementos do trio, Geir Jenssen, lançaria anos mais tarde, mas ouvido hoje "White-Out Conditions" tem muito ar de polaroid desbotada de época.
2 de janeiro de 2004
PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #6
Os portugueses que resmungam sozinhos, em público, no metro, na rua, nas passagens de peões, contra tudo e contra todos, e contra este "país de merda" (frase muito ouvida aos resmungões), mas que na realidade nada fazem para que ele deixe de o ser.
CÂMARA LENTA
playlist: marginália at the movies: Cliff Martinez, Richard Robbins, Thomas Newman
Levantar-me a horas de poder gozar a manhã pelas ruas calmas de Lisboa, apanhar a estação dos correios vazia, o metro sem enchentes (mas com uma tia de meia-idade das Avenidas Novas muito mal-educada). Sentar-me no sofá a ler os jornais do dia sem pressas e com calmas. No Público, o director do Instituto das Artes quer estar entre o Alentejo e Nova Iorque, parafraseando Variações que queria estar (e esteve quase sempre) entre Braga e Nova Iorque (o que se seguirá? os Delfins entre Cascais e Nova Iorque? o Big Brother entre a Venda do Pinheiro e Nova Iorque?). O DNA parece estar a especializar-se em entrevistas depressivas - a mais recente é a soberba mas desencantada conversa entre Luís Osório e Nicolau Breyner que lhe dá capa, oportunidade de ver o outro lado de alguém que nos habituámos a reconhecer como bonacheirão. Mas que, como quem viu "Os Imortais" sabe, é capaz de muito mais e muito melhor. Na televisão, os noticiários continuam a rapar o tacho do caso Casa Pia, falam dos acidentes na estrada, do Benfica-Sporting. Lá fora, como o noticiário prova, Portugal não mudou. Só o calendário tem marcas diferentes.
É bom começar o ano em câmara lenta.
Levantar-me a horas de poder gozar a manhã pelas ruas calmas de Lisboa, apanhar a estação dos correios vazia, o metro sem enchentes (mas com uma tia de meia-idade das Avenidas Novas muito mal-educada). Sentar-me no sofá a ler os jornais do dia sem pressas e com calmas. No Público, o director do Instituto das Artes quer estar entre o Alentejo e Nova Iorque, parafraseando Variações que queria estar (e esteve quase sempre) entre Braga e Nova Iorque (o que se seguirá? os Delfins entre Cascais e Nova Iorque? o Big Brother entre a Venda do Pinheiro e Nova Iorque?). O DNA parece estar a especializar-se em entrevistas depressivas - a mais recente é a soberba mas desencantada conversa entre Luís Osório e Nicolau Breyner que lhe dá capa, oportunidade de ver o outro lado de alguém que nos habituámos a reconhecer como bonacheirão. Mas que, como quem viu "Os Imortais" sabe, é capaz de muito mais e muito melhor. Na televisão, os noticiários continuam a rapar o tacho do caso Casa Pia, falam dos acidentes na estrada, do Benfica-Sporting. Lá fora, como o noticiário prova, Portugal não mudou. Só o calendário tem marcas diferentes.
É bom começar o ano em câmara lenta.
1 de janeiro de 2004
PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #5
A moda jovem Operação Triunfo, de calças desbotadas à boca de sino e camisolas justas de fantasia e penteados artísticos de gel que faz os homens parecerem aspirantes suburbanos a modelos hoje e ridículos daqui a um mês.
MUNDOS SECRETOS #2
playlist: Jacques Brel, "Infiniment", Barclay 2003
Há algo de força da natureza, arrebatador, na entrega louca com que Jacques Brel se dava a cada uma e a todas as suas canções. Como se essa entrega nos arrastasse consigo num turbilhão de emoções onde já não sabemos se havemos de rir ou de chorar (ou de ambos ao mesmo tempo), mas onde reconhecêssemos todas as nuances da emoção humana nos seus detalhes mais ínfimos. Brel não se ouve; Brel vive-se. Brel guarda-se no jardim secreto e não se partilha, porque face à sua intensidade e à sua lucidez estamos todos sozinhos. Mesmo quando, como Jef, não o estamos.
non, Jef, t'es pas tout seul
mais arrête de pleurer comme ça devant tout le monde
parce qu'une demi-vieille, parce qu'une fausse blonde
t'a relaissé tomber
non Jef t'es pas tout seul
mais tu sais que tu me fais honte
à sangloter comme ça bêtement devant tout le monde
parce qu'une trois quarts putain t'a claqué dans les mains
non Jef t'es pas tout seul
mais tu fais honte à voir
mes gens se paient notre tête
foutons le camp de ce trottoir
allez viens Jef viens viens
viens il me reste trois sous
on va aller se les boire chez la mère Françoise
viens, Jef, viens, il me reste trois sous
et si c'est pas assez ben il me restera l'ardoise
puis on ira manger des moules et puis des frites
des frites et puis des moules et du vin de Moselle
et si t'es encore triste on ira voir les filles
chez la madame Andrée
parait qu'y en a de nouvelles
on rechantera comme avant
on sera bien tous les deux
comme quand on était jeunes
comme quand c'était le temps que j'avais de l'argent
non Jef t'es pas tout seul
mais arrête tes grimaces
soulève tes cent kilos, fais bouger ta carcasse
je sais que t'as le cœur gros mais il faut le soulever
non Jef t'es pas tout seul
mais arrête de sangloter
arrête de te répandre
arrête de répéter que t'es bon à te foutre à l'eau
que t'es bon à te pendre
non Jef t'es pas tout seul
mais c'est plus un trottoir
ça devient un cinéma où les gens viennent te voir
viens Jef viens viens
viens il me reste ma guitare
je l'allumerai pour toi et on sera espagnols
comme quand on était mômes
même que j'aimais pas ça t'imiteras le rossignol
puis on se trouvera un banc
on parlera de l'Amérique
où c'est qu'on va aller quand on aura du fric
et si t'es encore triste ou rien que si t'en as l'air
je te raconterai comment tu deviendras Rockfeller
on sera bien tous les deux
on rechantera comme avant
comme quand on était beaux
comme quand c'était le temps d'avant qu'on soit poivrots
allez viens Jef viens viens...
Há algo de força da natureza, arrebatador, na entrega louca com que Jacques Brel se dava a cada uma e a todas as suas canções. Como se essa entrega nos arrastasse consigo num turbilhão de emoções onde já não sabemos se havemos de rir ou de chorar (ou de ambos ao mesmo tempo), mas onde reconhecêssemos todas as nuances da emoção humana nos seus detalhes mais ínfimos. Brel não se ouve; Brel vive-se. Brel guarda-se no jardim secreto e não se partilha, porque face à sua intensidade e à sua lucidez estamos todos sozinhos. Mesmo quando, como Jef, não o estamos.
non, Jef, t'es pas tout seul
mais arrête de pleurer comme ça devant tout le monde
parce qu'une demi-vieille, parce qu'une fausse blonde
t'a relaissé tomber
non Jef t'es pas tout seul
mais tu sais que tu me fais honte
à sangloter comme ça bêtement devant tout le monde
parce qu'une trois quarts putain t'a claqué dans les mains
non Jef t'es pas tout seul
mais tu fais honte à voir
mes gens se paient notre tête
foutons le camp de ce trottoir
allez viens Jef viens viens
viens il me reste trois sous
on va aller se les boire chez la mère Françoise
viens, Jef, viens, il me reste trois sous
et si c'est pas assez ben il me restera l'ardoise
puis on ira manger des moules et puis des frites
des frites et puis des moules et du vin de Moselle
et si t'es encore triste on ira voir les filles
chez la madame Andrée
parait qu'y en a de nouvelles
on rechantera comme avant
on sera bien tous les deux
comme quand on était jeunes
comme quand c'était le temps que j'avais de l'argent
non Jef t'es pas tout seul
mais arrête tes grimaces
soulève tes cent kilos, fais bouger ta carcasse
je sais que t'as le cœur gros mais il faut le soulever
non Jef t'es pas tout seul
mais arrête de sangloter
arrête de te répandre
arrête de répéter que t'es bon à te foutre à l'eau
que t'es bon à te pendre
non Jef t'es pas tout seul
mais c'est plus un trottoir
ça devient un cinéma où les gens viennent te voir
viens Jef viens viens
viens il me reste ma guitare
je l'allumerai pour toi et on sera espagnols
comme quand on était mômes
même que j'aimais pas ça t'imiteras le rossignol
puis on se trouvera un banc
on parlera de l'Amérique
où c'est qu'on va aller quand on aura du fric
et si t'es encore triste ou rien que si t'en as l'air
je te raconterai comment tu deviendras Rockfeller
on sera bien tous les deux
on rechantera comme avant
comme quand on était beaux
comme quand c'était le temps d'avant qu'on soit poivrots
allez viens Jef viens viens...
O GATO
playlist: Benjamin Biolay: "Négatif", Virgin 2003
A janela do meu quarto dá para o telhado (em telha vermelha, à antiga) da arrecadação encostada ao quintal do prédio. Quando me levanto de manhã, esse telhado é o poiso preferido de uma mão-cheia de gatos da zona que ali bezerram com todo o panache de que são capazes.
Prefiro, sempre, o orgulho secretamente vulnerável do gato à dependência sincera do cão. Prefiro, sempre, a sua elegância felina e discreta. Prefiro, sempre, o seu saber estar altaneiro capaz de se desintegrar instantaneamente no fascínio brincalhão de um laço vistoso, de uma bola fugidia, de um brinquedo intrigante. Prefiro, sempre, a sua dignidade falsamente arrogante que apenas esconde a sua afeição subterrânea mas profunda.
Prefiro, sempre, a independência. Há um preço, claro, mas o gato não tem problemas com isso.
A janela do meu quarto dá para o telhado (em telha vermelha, à antiga) da arrecadação encostada ao quintal do prédio. Quando me levanto de manhã, esse telhado é o poiso preferido de uma mão-cheia de gatos da zona que ali bezerram com todo o panache de que são capazes.
Prefiro, sempre, o orgulho secretamente vulnerável do gato à dependência sincera do cão. Prefiro, sempre, a sua elegância felina e discreta. Prefiro, sempre, o seu saber estar altaneiro capaz de se desintegrar instantaneamente no fascínio brincalhão de um laço vistoso, de uma bola fugidia, de um brinquedo intrigante. Prefiro, sempre, a sua dignidade falsamente arrogante que apenas esconde a sua afeição subterrânea mas profunda.
Prefiro, sempre, a independência. Há um preço, claro, mas o gato não tem problemas com isso.
MEEGA, NA LA KWEESTA!
A delícia de reencontrar Stitch, a criação mais destravada e anarquista dos estúdios Disney em anos, numa revisão de "Lilo & Stitch" para apresentar o filme de culto à família ajuda, em muito, a ultrapassar a proverbial neura das festas. O filme de Chris Sanders e Dean de Blois é mais uma fábula animada Disney sobre o órfão que procura e encontra uma família; só que o órfão é uma criatura extra-terrestre destrutiva, mutante e hiperactiva que vive para criar confusão e cai numa família havaiana em riscos de desintegração. Ou como refazer a harmonia a partir do caos, sem dele abdicar como motor dessa recriação, com um humor que deve muito mais aos Looney Tunes dos bons velhos tempos do que à tradição Disney. Passou demasiado despercebido em 2002. Nunca é tarde para o descobrir.
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA
Algures, já depois da meia-noite, alguém leu Artaud, e Artaud falava da Angústia. E isso acordou-me para a imensa solidão do "odd man out", do número ímpar sem parceiro. Entre o calor da Helena e do Carlos, da Catarina e do Eduardo, senti-me de fora. Frio. Ausente. Invisível. Sozinho no meio dos outros que tinham alguém para lhes devolver o calor. Tudo amplificado pela carga com que investimos a mudança de ano -- como se dele precisássemos como "motivador" para ganharmos a coragem de sermos diferentes.
O ano novo é uma data apenas. Nada muda realmente entre as 23h59 e as 00h01. Apenas uma volta do calendário, uma hora que termina e outra que começa, um novo dia que nasce e se sucede a outro. Naquele instante apenas a convenção do tempo que passa avança. A vontade de mudar não precisa do 31 de Dezembro para se manifestar; se o Natal é quando um homem quiser, então as resoluções de ano novo não precisam de estar presas a uma data. Apenas à nossa vontade. O único motivador que funciona somos nós próprios, é dentro de nós que temos de encontrar a força para avançarmos.
Talvez apenas o complexo de culpa judaico-cristão da civilização ocidental nos impeça de reconhecermos que a mudança de ano é algo meramente simbólico ao qual não deveríamos emprestar a importância que tantos lhe dão. Mas talvez apenas o nosso excessivo apego a essas mesmas convenções nos deixe escorregar para o agradável conforto burguês de entrar nos esquemas do sistema e achar que sim, que tudo vai ser diferente no ano que começa sem que precisemos de mexer uma palha para isso. A essa doce ilusão prefiro a lucidez de saber que tudo só mudará se a isso eu me dispor; e a angústia metódica de não saber se me quero realmente dispor a isso ou se apenas estou a fingir para mim mesmo.
Que 2004 vos traga tudo aquilo que dele quiserem fazer; e que dele queiram fazer, como eu, um ano melhor do que o que passou. Bom ano.
O ano novo é uma data apenas. Nada muda realmente entre as 23h59 e as 00h01. Apenas uma volta do calendário, uma hora que termina e outra que começa, um novo dia que nasce e se sucede a outro. Naquele instante apenas a convenção do tempo que passa avança. A vontade de mudar não precisa do 31 de Dezembro para se manifestar; se o Natal é quando um homem quiser, então as resoluções de ano novo não precisam de estar presas a uma data. Apenas à nossa vontade. O único motivador que funciona somos nós próprios, é dentro de nós que temos de encontrar a força para avançarmos.
Talvez apenas o complexo de culpa judaico-cristão da civilização ocidental nos impeça de reconhecermos que a mudança de ano é algo meramente simbólico ao qual não deveríamos emprestar a importância que tantos lhe dão. Mas talvez apenas o nosso excessivo apego a essas mesmas convenções nos deixe escorregar para o agradável conforto burguês de entrar nos esquemas do sistema e achar que sim, que tudo vai ser diferente no ano que começa sem que precisemos de mexer uma palha para isso. A essa doce ilusão prefiro a lucidez de saber que tudo só mudará se a isso eu me dispor; e a angústia metódica de não saber se me quero realmente dispor a isso ou se apenas estou a fingir para mim mesmo.
Que 2004 vos traga tudo aquilo que dele quiserem fazer; e que dele queiram fazer, como eu, um ano melhor do que o que passou. Bom ano.
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