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1 de janeiro de 2004

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA

Algures, já depois da meia-noite, alguém leu Artaud, e Artaud falava da Angústia. E isso acordou-me para a imensa solidão do "odd man out", do número ímpar sem parceiro. Entre o calor da Helena e do Carlos, da Catarina e do Eduardo, senti-me de fora. Frio. Ausente. Invisível. Sozinho no meio dos outros que tinham alguém para lhes devolver o calor. Tudo amplificado pela carga com que investimos a mudança de ano -- como se dele precisássemos como "motivador" para ganharmos a coragem de sermos diferentes.

O ano novo é uma data apenas. Nada muda realmente entre as 23h59 e as 00h01. Apenas uma volta do calendário, uma hora que termina e outra que começa, um novo dia que nasce e se sucede a outro. Naquele instante apenas a convenção do tempo que passa avança. A vontade de mudar não precisa do 31 de Dezembro para se manifestar; se o Natal é quando um homem quiser, então as resoluções de ano novo não precisam de estar presas a uma data. Apenas à nossa vontade. O único motivador que funciona somos nós próprios, é dentro de nós que temos de encontrar a força para avançarmos.

Talvez apenas o complexo de culpa judaico-cristão da civilização ocidental nos impeça de reconhecermos que a mudança de ano é algo meramente simbólico ao qual não deveríamos emprestar a importância que tantos lhe dão. Mas talvez apenas o nosso excessivo apego a essas mesmas convenções nos deixe escorregar para o agradável conforto burguês de entrar nos esquemas do sistema e achar que sim, que tudo vai ser diferente no ano que começa sem que precisemos de mexer uma palha para isso. A essa doce ilusão prefiro a lucidez de saber que tudo só mudará se a isso eu me dispor; e a angústia metódica de não saber se me quero realmente dispor a isso ou se apenas estou a fingir para mim mesmo.

Que 2004 vos traga tudo aquilo que dele quiserem fazer; e que dele queiram fazer, como eu, um ano melhor do que o que passou. Bom ano.

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