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31 de dezembro de 2003

PEQUENO MOMENTO DE INTELECTUALIDADE CARTESIANA CINÉFILA

O mal de muito do cinema português - e, também, de uma geração de cinéfilos e de críticos - parece-me bem ser a sua excessiva colagem a um modelo de cinema de autor europeu tal como fixado nas palavras da "bíblia" cinéfila dos Cahiers du Cinéma. Não haveria nada de mal nisso se houvesse o outro peso da balança - uma produção corrente mais acessível, mais virada para o público - que, como sabemos, continua a ser francamente minoritária (quando não de fraca qualidade) face à avalanche de "autores" que o cinema português insiste em querer atirar para a frente.

Uma das razões pelas quais leio os Cahiers du Cinéma é precisamente porque é uma revista consciente de que está presa na armadilha que ela própria criou de servir de "bíblia" de uma certa concepção do cinema, mas que não deixa que isso se transforme num dogma paralisante, nem deixa por isso de relançar a discussão sobre o que é ou pode ser o cinema. Exemplo disso tem sido a atenção que a revista tem dado, em números recentes, à redescoberta de clássicos perdidos possibilitada pelo DVD, ou às séries televisivas como laboratórios de experimentação de novas formas de contar histórias.

Melhor exemplo ainda é, na edição de Novembro, um excelente artigo de Thierry Jousse onde ele desmonta um ensaio de Jean-Louis Comolli publicado no número anterior. Nesse ensaio, defendia-se um "cinema pobre" (entendido como "de autor", feito à margem dos sistemas estabelecidos) como via única para a salvação do cinema face à proliferação de "inimigos" massificadores como o dinheiro, a televisão e o espectáculo (entendido como "entretenimento").

Com apreciável (e muito pouco francófona...) lucidez, Jousse delicia-se (e delicia-nos) a provar que o cinema feito com grandes orçamentos pode (também) ser estimulante e que o cinema feito por tuta e meia pode (também) ser medíocre; que a relação entre o cinema e a televisão se tem feito, desde os anos 50, de um diálogo constante e de um jogo de influências mútuas; que o cinema é uma arte aberta ao mundo e, como tal, não pode recusar nenhum dos supostos "inimigos" sob pena de cair numa intolerância muito pouco propensa à evolução. Ou seja: o cinema de autor não é, nem tem de ser, o único cinema do mundo, nem deve recusar aquilo que o pode enriquecer e tornar mais acessível. Seria tão bom que tantos cineastas portugueses já o tivessem compreendido.

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