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24 de janeiro de 2004

POLAROID CULTURGEST: 23/1/2004

nos dez minutos antes do início do concerto de Jane Birkin

Um senhor vem à boca de palco falar ao telemóvel, escondido na palma da mão, com um daqueles auriculares com microfone, enquanto as arrumadoras se afadigam a sentar os espectadores nos lugares certos e a corrigir os que se sentaram, de livre e espontânea vontade, nos lugares errados.

À minha frente instala-se um grupo de quatro trintonas acompanhadas por um miúdo dos seus dez anos. Três delas têm um ar de trintonas normais, a quarta (presumo que seja a mãe do miúdo) tem um ar de quem tentou não destoar do ambiente discreto da Culturgest e falhou rotundamente. É a que mais fala de todas: espanta-se por a sala estar quase esgotada e por haver tanta gente que ainda gosta da cultura francesa; pergunta se Vanessa Paradis ainda é casada com Johnny Deep (sic) e se casou com ele depois de ter vivido com Roman Polanski, não, a Sophie Marceau é que é casada com o Polanski (não é; está separada de Andrzej Zulawski, não faz mal, penso eu, afinal são os dois polacos e ela apanhou a terminação, enquanto luto para não a mandar calar); pergunta o que é feito de Johnny Hallyday, diz que alugou o "Chocolate" no video-clube e adorou (como é possível, um filme tão insosso), e que alugou a "Amélie" e gostou imenso mas que a irmã achou uma seca; pergunta às outras, que conversam entre si discretamente e sem chamar a atenção, se viram o "Gosto dos Outros"; ignora o rapazinho, que está sentado, afundado, na cadeira.

Ao meu lado senta-se um casal com ar de jovem intelectual bloco de esquerda.

Do meu outro lado, na coxia, chega um casal de meia-idade. Ela é uma ruiva de vestido frique, muito maquilhada, que cheira a incenso enjoativo. Ele tem aspecto de bon-vivant a fingir, pele tisnada, casaco de cabedal castanho gasto, e um aroma a álcool que chega à minha cadeira; parece ressonar durante as primeiras duas canções, mas está de olhos bem abertos, e quando sussurra à mulher fá-lo numa voz de baixo-barítono tudo menos discreta, com a rouquidão arrastada de quem bebe muito e fuma ainda mais.

a sala está cheia de fatos e gravatas e vestidos de noite para ouvir Jane Birkin cantar Serge Gainsbourg em toada árabe. O concerto é muito bonito, muito emocional. A audiência desfaz-se em bravos, ensaia timidamente palmas. Há uma ironia qualquer nesta institucionalização da alternativa; o que há vinte e cinco anos era radical chique e provocante hoje é mainstream. Mas é assim que as coisas são.

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