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22 de janeiro de 2004

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #4: A HISTÓRIA OFICIAL

Acabo de ler "Cantores de Abril", um livro onde o alentejano Eduardo Raposo colige uma série de entrevistas com cantores e não só que estiveram activos no chamado "canto de intervenção", antes e depois do 25 de Abril - José Mário Branco, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Sérgio Godinho, José Barata Moura, Manuel Alegre, entre muitos outros, e recordações de Adriano e Zeca.

Nascidas da investigação para uma tese de mestrado em história, estas entrevistas foram sendo publicadas em jornais e revistas locais e foram reunidas em livro em 2000 - comprei-o há uns meses na Buchholz, onde estava na prateleira sobre música, porque é um período sobre o qual não há, nunca há informação suficiente.

Mas é uma desilusão perceber que Eduardo Raposo não soube aproveitar o material bruto que tinha em mãos nem a pesquisa aturada que fez. Passando por cima de muitos dos textos estarem confrangedoramente mal escritos, o livro trai o bem-intencionado mas irritante maniqueísmo da defesa ardente dos combatentes da liberdade, do heroísmo quotidiano dos homens justos e íntegros que se sacrificaram para um futuro Portugal melhor, apresentado com uma convicção digna de outros Verões quentes.

E, nesse processo, Raposo esquece-se de organizar com um mínimo de critério as suas entrevistas, concentrando-se muitas vezes mais no lado político da sua luta do que no lado musical ou cultural, e tombando muitas vezes numa deslumbrada apologia dos nomes que entrevista, repleta de adjectivos desmesurados. Neste livro não há rapazes maus: são todos reduzidos à dimensão uniforme de grandes anti-fascistas. Que o foram, mas não apenas, não em exclusivo.

Que não haja confusões: não se trata aqui de minimizar a importância histórica, política e social destes nomes (nem tal seria possível num livro sobre cantores de intervenção). Apenas evitar cair num discurso maniqueísta que tende a reduzir ao arquétipo a dimensão humana verdadeiramente heróica desta gente. Porque eles foram acima de tudo seres humanos que duvidaram e fraquejaram a espaços, mesmo que em privado, mas que encontraram uma maneira de continuar o seu combate através da música ou das palavras, sem se esgotar nele nem se limitar a ele.

Reduzir essa dimensão humana a meia-dúzia de lugares comuns gastos acaba por ser, também, não fazer justiça à sua grandeza.

Em tempos escrevi no Blitz a propósito de uma reedição de José Afonso que a "história oficial" adoptada pela generalidade dos media do Zeca maldito, perseguido, autor dos hinos da resistência ao regime, era verdade. Mas era apenas uma das muitas facetas do José Afonso artista e homem.

E por trás dessa fachada que se convencionou adoptar havia uma obra musical de uma riqueza e de uma importância inigualadas por descobrir; mas é preciso furar para lá de "Grândola Vila Morena" e de "Venham Mais Cinco", em busca do "Avô Cavernoso" ou de "Nefertite Não Tinha Papeira" ou de todos os discos de que nunca ninguém se lembra.

Porque recordar não é apenas perpetuar o que já se sabe; é também descobrir, sem ficar apenas pela superfície.

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