O Magnolia do cinema Londres é um café chique mas simpático, sobriedade moderna e cadeiras design, bolinhos secos assombrosos, aproveitando o espaço do antigo restaurante/snack do cinema, prolongado até à antiga bilheteira (custa-me um pouco ver estas remodelações que despersonalizam os espaços; gostava do "velho" Londres, com as portas de vidro da sala ao fundo das escadas, o quadro psicadélico junto ao bengaleiro, os tons laranja e verdes hoje substituídos por um borgonha sujo e escuro, a velha caixa da bilheteira dupla desalinhada, aquela que era a sala mais longa de Lisboa, tão longa que tinha duas filas Z depois do Z, hoje partida em duas).
São dez da manhã e um senhor idoso de cabelos brancos desce as escadas e chega-se à bilheteira do cinema ainda fechado. Olha para os preços, para as plantas da sala, em busca de algo que não encontra. Dirige-se ao balcão do café e pergunta à menina brasileira que está a atender a que horas é a primeira sessão. A empregada responde-lhe, apontando o quadro electrónico das sessões já iluminado que encima a bilheteira, com os horários das salas, sem deixar de lhe responder que a primeira sessão é às duas da tarde, depois às quatro e meia e depois às sete. O senhor mostra-se surpreendido, diz não ter reparado. Pergunta à empregada três vezes o horário da "Paixão de Cristo", murmurando qualquer coisa sobre a sobrinha também ter vindo ver os horários e não ter percebido. A empregada acaba por lhe escrever os horários num pedaço de papel.
Chega uma tia loura de ar profissional liberal, a chave do carro num porta-chaves de bola de golfe amarelo-esverdeada, que vem tomar café com um espanhol de meia-idade e fato sem gravata que transporta um dossier de folhas presas com um clip. Ambos vêm ao telemóvel, cada um a falar para seu lado. A tia despacha-se primeiro e pede; o espanhol só mais tarde, depois de desligar, pede café. Conversam, ela num portunhol de tia loura que não está para aprender a dizer o básico na língua de nuestros hermanos, eles que percebam se quiserem, ele num castelhano madrileno. Falam de crianças e escolas. Entendem-se perfeitamente.
Blog-notas de ideias soltas; post-it público de observações casuais; fragmentos em roda livre, fixados em âmbar. Eu, sem filtro. jorge.mourinha@gmail.com
Pesquisa personalizada
31 de março de 2004
AH QUANTA MELANCOLIA
Essa história do fado ser "a canção nacional" não me aquece nem arrefece. Esse tipo de reconhecimento estatal ou estatutário é o primeiro passo para o acomodamento burguês, para a artrose, para a convencionalização - e a progressiva emasculação e estereotipização que acompanhou o percurso do fado desde a sua entronização como canção nacional apenas prova os riscos inerentes.
Quando Camané canta, contudo, tudo isso voa em estilhaços. Porque a sua voz funda e majestosa transporta os ecos de uma tradição cuja verdade se recusa teimosamente a morrer e procura novos rumos para se manifestar. Porque na sua voz passa uma vibração emocional que, não sendo exclusiva do fado, nele se transmite de um modo único. Porque a sua voz é, enfim, a prova de que o espírito do fado pode resistir sem se render nem ceder a modernismos bacocos ou demonstrações de virtuosismo.
Quando Camané canta - e, por Deus!, como ele canta magnificamente! - há algo de genuinamente nosso, português, telúrico, trágico, vindo do fundo dos tempos e que a eles se dirige de novo, que cala bem cá fundo. Ontem, no São Luiz, hoje e amanhã outra vez para os sortudos que têm bilhete, repete-se esse momento de uma magia austera e enfeitiçante, depurada à essência da sobriedade. Quando Camané canta, há enfim uma razão para termos orgulho de sermos portugueses - porque mais nenhum país tem Camané. Pouco interessa se o fado é a canção nacional, mas Camané é o cantor nacional.
Quando Camané canta, contudo, tudo isso voa em estilhaços. Porque a sua voz funda e majestosa transporta os ecos de uma tradição cuja verdade se recusa teimosamente a morrer e procura novos rumos para se manifestar. Porque na sua voz passa uma vibração emocional que, não sendo exclusiva do fado, nele se transmite de um modo único. Porque a sua voz é, enfim, a prova de que o espírito do fado pode resistir sem se render nem ceder a modernismos bacocos ou demonstrações de virtuosismo.
Quando Camané canta - e, por Deus!, como ele canta magnificamente! - há algo de genuinamente nosso, português, telúrico, trágico, vindo do fundo dos tempos e que a eles se dirige de novo, que cala bem cá fundo. Ontem, no São Luiz, hoje e amanhã outra vez para os sortudos que têm bilhete, repete-se esse momento de uma magia austera e enfeitiçante, depurada à essência da sobriedade. Quando Camané canta, há enfim uma razão para termos orgulho de sermos portugueses - porque mais nenhum país tem Camané. Pouco interessa se o fado é a canção nacional, mas Camané é o cantor nacional.
29 de março de 2004
ALGUÉM
I want somebody to share
share the rest of my life
share my innermost thoughts
know my intimate details
someone who'll stand by my side
and give me support
and in return
she'll get my support
she will listen to me
when I want to speak
about the world we live in
and life in general
though my views may be wrong
they may even be perverted
she will hear me out
and won't easily be converted
to my way of thinking
in fact she'll often disagree
but at the end of it all
she will understand me
I want somebody who cares
for me passionately
with every thought and with every breath
someone who'll help me see things
in a different light
all the things I detest
I will almost like
I don't want to be tied
to anyone's strings
I'm carefully trying to steer clear
of those things
but when I'm asleep
I want somebody
who will put their arms around me
and kiss me tenderly
though things like this
make me sick
in a case like this
I'll get away with it.
- Martin Gore para os Depeche Mode, "Somebody" (1984)
Esta canção tem vinte anos. Quantos de nós querem o mesmo, e o dizem de outras maneiras?
share the rest of my life
share my innermost thoughts
know my intimate details
someone who'll stand by my side
and give me support
and in return
she'll get my support
she will listen to me
when I want to speak
about the world we live in
and life in general
though my views may be wrong
they may even be perverted
she will hear me out
and won't easily be converted
to my way of thinking
in fact she'll often disagree
but at the end of it all
she will understand me
I want somebody who cares
for me passionately
with every thought and with every breath
someone who'll help me see things
in a different light
all the things I detest
I will almost like
I don't want to be tied
to anyone's strings
I'm carefully trying to steer clear
of those things
but when I'm asleep
I want somebody
who will put their arms around me
and kiss me tenderly
though things like this
make me sick
in a case like this
I'll get away with it.
- Martin Gore para os Depeche Mode, "Somebody" (1984)
Esta canção tem vinte anos. Quantos de nós querem o mesmo, e o dizem de outras maneiras?
28 de março de 2004
A MARCA AMARELA
Ontem abriu a extensão do Metro de Lisboa até Odivelas e a reportagem do noticiário da RTP-1 sobre a ocasião foi hilariante. Escolhem-se três transeuntes ao acaso para o já célebre "inquérito de rua" - que, tradicionalmente, já de si é hilariante por tudo o que de mau revela na natureza portuguesa.
O primeiro é um jovem da geração Morangos-com-Açúcar que mal sabe articular uma frase mas, pronto, acha que a extensão a Odivelas vai dar muito jeito porque vai levar muito menos tempo a chegar a Lisboa. O segundo é uma senhora matrona que, para mal da pobre jornalista, trabalha em Loures e logo não tinha problemas de transporte.
O terceiro é um senhor que, em vez de manifestar o seu contentamento por ter metro até casa, protesta porque o metro até Odivelas é 53% mais caro e a estação nem sequer fica no centro de Odivelas. Ou seja, é a verdadeira definição de pobre - porque acha que um euro de bilhete de metro é uma roubalheira, sobretudo comparado com a gasolina que vai poupar por não ter de se meter nos engarrafamentos diários - e mal agradecido - porque queria mesmo era ter metro à porta de casa. E, pior, pobre e mal agradecido convencido que, agora, porque tem metro, Odivelas já não devia ser um subúrbio e deveria ter os mesmos direitos do centro urbano lisboeta. Que eu me recorde, nunca ouvi ninguém protestar por o passe social ter coroas de diferentes valores consoante a distância percorrida - porque é que o metro havia de ser diferente só por chegar a Odivelas?
Dito isto, adivinhem qual é a linha que me fica mais próxima de casa - exacto, é mesmo a linha amarela que foi agora prolongada para Odivelas. E, numa breve viagem de metro esta tarde, já deu para perceber a quantidade de suburbanos que veio dar uma voltinha a Lisboa esta tarde para experimentar a ligação - é vê-los a percorrer os cais lentamente, a observar os pormenores das estações, e depois, em vez de sair da estação, mudar de direcção e apanhar o comboio para casa. Acabou de se descobrir um novo passeio dos tristes - em vez de se ir ao shopping, vai-se andar de metro até Lisboa. Turismo metropolitano.
O primeiro é um jovem da geração Morangos-com-Açúcar que mal sabe articular uma frase mas, pronto, acha que a extensão a Odivelas vai dar muito jeito porque vai levar muito menos tempo a chegar a Lisboa. O segundo é uma senhora matrona que, para mal da pobre jornalista, trabalha em Loures e logo não tinha problemas de transporte.
O terceiro é um senhor que, em vez de manifestar o seu contentamento por ter metro até casa, protesta porque o metro até Odivelas é 53% mais caro e a estação nem sequer fica no centro de Odivelas. Ou seja, é a verdadeira definição de pobre - porque acha que um euro de bilhete de metro é uma roubalheira, sobretudo comparado com a gasolina que vai poupar por não ter de se meter nos engarrafamentos diários - e mal agradecido - porque queria mesmo era ter metro à porta de casa. E, pior, pobre e mal agradecido convencido que, agora, porque tem metro, Odivelas já não devia ser um subúrbio e deveria ter os mesmos direitos do centro urbano lisboeta. Que eu me recorde, nunca ouvi ninguém protestar por o passe social ter coroas de diferentes valores consoante a distância percorrida - porque é que o metro havia de ser diferente só por chegar a Odivelas?
Dito isto, adivinhem qual é a linha que me fica mais próxima de casa - exacto, é mesmo a linha amarela que foi agora prolongada para Odivelas. E, numa breve viagem de metro esta tarde, já deu para perceber a quantidade de suburbanos que veio dar uma voltinha a Lisboa esta tarde para experimentar a ligação - é vê-los a percorrer os cais lentamente, a observar os pormenores das estações, e depois, em vez de sair da estação, mudar de direcção e apanhar o comboio para casa. Acabou de se descobrir um novo passeio dos tristes - em vez de se ir ao shopping, vai-se andar de metro até Lisboa. Turismo metropolitano.
27 de março de 2004
THE (REAL) BEAUTIFUL GAME
É uma das melhores definições que já ouvi, só que não me recordo quem é o autor e desculpar-me-ão por não me apetecer ir procurar: o rugby é um jogo de hooligans jogado por cavalheiros, numa alusão ao estatuto puramente amador que o desporto durante muitos anos teve (recordo-me de tempos em que os jogadores da selecção inglesa, idolatrados pelos meus irmãos, eram advogados, militares e outras profissões "nobres" do género).
Hoje Portugal ganhou a Taça Europeia das Nações de rugby (desculpem o estrangeirismo, não gosto da grafia portuguesa "râguebi" - 18-19 face à Rússia). Hoje o meu irmão João Paulo esteve em Paris a assistir ao França-Inglaterra do Torneio das Seis Nações (24-21, ganharam os franceses).
O rugby tem tradição lá em casa: o meu outro irmão, o António, chegou a jogar nos seniores do Benfica antes da sua carreira ser cortada pelo serviço militar (a minha mãe ainda tem os recortes lá por casa). O João Paulo também jogou, embora menos, e anos mais tarde foi seccionista do Benfica na área (uma experiência que lhe desagradou positivamente). E o meu sobrinho João, filho do João Paulo, também jogou no Benfica e ainda hoje é árbitro.
Só eu, que teimosamente desprezei o desporto até tarde, nunca liguei muito à coisa - mas lembro-me das transmissões da RTP nas tardes de sábado, com comentários de Cordeiro do Vale, que levaram a que eu sempre desse preferência ao rugby sobre o futebol. E os meus fins-de-semana e grande parte das minhas horas de ginásio são sempre passados em camisolas de rugby, que são estupidamente resistentes e estupidamente confortáveis (pena é a gola branca ter-se de repente tornado moda junto dos betos e dos clientes da Sacoor Brothers - lá se foi a discrição de que eu tanto gostava nelas).
Dito isto, continuo a gostar mais de rugby que de futebol, da sua beleza telúrica e nobre mascarada por trás do que parece apenas ser uma demonstração de força bruta viril. Mas, como em qualquer desporto de equipa, há também astúcia e estratégia por trás dele. Como raio os meus irmãos lhe tomaram o gosto, sobretudo em família tão pouco dada ao desporto, é que eu nunca hei-de perceber...
Hoje Portugal ganhou a Taça Europeia das Nações de rugby (desculpem o estrangeirismo, não gosto da grafia portuguesa "râguebi" - 18-19 face à Rússia). Hoje o meu irmão João Paulo esteve em Paris a assistir ao França-Inglaterra do Torneio das Seis Nações (24-21, ganharam os franceses).
O rugby tem tradição lá em casa: o meu outro irmão, o António, chegou a jogar nos seniores do Benfica antes da sua carreira ser cortada pelo serviço militar (a minha mãe ainda tem os recortes lá por casa). O João Paulo também jogou, embora menos, e anos mais tarde foi seccionista do Benfica na área (uma experiência que lhe desagradou positivamente). E o meu sobrinho João, filho do João Paulo, também jogou no Benfica e ainda hoje é árbitro.
Só eu, que teimosamente desprezei o desporto até tarde, nunca liguei muito à coisa - mas lembro-me das transmissões da RTP nas tardes de sábado, com comentários de Cordeiro do Vale, que levaram a que eu sempre desse preferência ao rugby sobre o futebol. E os meus fins-de-semana e grande parte das minhas horas de ginásio são sempre passados em camisolas de rugby, que são estupidamente resistentes e estupidamente confortáveis (pena é a gola branca ter-se de repente tornado moda junto dos betos e dos clientes da Sacoor Brothers - lá se foi a discrição de que eu tanto gostava nelas).
Dito isto, continuo a gostar mais de rugby que de futebol, da sua beleza telúrica e nobre mascarada por trás do que parece apenas ser uma demonstração de força bruta viril. Mas, como em qualquer desporto de equipa, há também astúcia e estratégia por trás dele. Como raio os meus irmãos lhe tomaram o gosto, sobretudo em família tão pouco dada ao desporto, é que eu nunca hei-de perceber...
POLAROID DÉMÉNAGEMENT
A minha vizinha mudou-se hoje. Pelo que, a partir das oito da manhã, o elevador não parou de subir e descer, enquanto os homens das mudanças removiam tudo o que era necessário remover do apartamento - plantas, frigoríficos, armários, mesas, caixotes e tudo aquilo que não vi porque, quando saí de casa para ir comprar os jornais às dez e meia, o grosso das coisas estava já devidamente acondicionado no camião.
Acho muito feliz a palavra francesa que descreve o acto de sair de uma casa: déménagement. Parece tão certinha, tão desembaraçada, tão elegante - como é aliás apanágio da delicadeza extrema da língua francesa, onde um tour de phrase serve muitas vezes uma forma tanto como uma função. Mas, claro, quem já mudou de casa sabe bem que certinho, desembaraçado e elegante é exactamente o que a acção não é. Bem pelo contrário.
Só posso, por isso, louvar a vizinha que nunca conheci para lá do cumprimento ocasional no elevador pelo desembaraço com que retirou tudo, hoje de manhã, em apenas duas-três horas, incomodando ao mínimo a vizinhança. É obra.
Acho muito feliz a palavra francesa que descreve o acto de sair de uma casa: déménagement. Parece tão certinha, tão desembaraçada, tão elegante - como é aliás apanágio da delicadeza extrema da língua francesa, onde um tour de phrase serve muitas vezes uma forma tanto como uma função. Mas, claro, quem já mudou de casa sabe bem que certinho, desembaraçado e elegante é exactamente o que a acção não é. Bem pelo contrário.
Só posso, por isso, louvar a vizinha que nunca conheci para lá do cumprimento ocasional no elevador pelo desembaraço com que retirou tudo, hoje de manhã, em apenas duas-três horas, incomodando ao mínimo a vizinhança. É obra.
26 de março de 2004
OS PUBLICITÁRIOS SÃO UNS EXAGERADOS
Gosto de saborear ironias como a que se apresenta na actual campanha de imprensa da Vodafone para vender o seu cartão de banda larga remota (creio eu).
Reza uma das páginas inteiras: Vale a pena esperar por um dia de sol, por uma noite de amor, por uma boa causa, por uma boa ideia, por um filho. Agora, para abrir um e-mail?
E a ironia, evidentemente, é que esta frase, que resume muito bem a frustração que todos nós sentimos quando a tecnologia desacelera por razões às quais somos alheios, está a ser usada para vender mais tecnologia mas não para libertar o tempo do consumidor para coisas verdadeiramente mais importantes. Porque a maior rapidez do correio, da mensagem, da consulta, a maior facilidade de comunicação apenas à superfície nos libertam para termos mais tempo para nós - na realidade, apenas nos torna mais dependentes do sistema, mais curiosos em explorá-lo até aos limites.
Todos vivíamos muito bem sem telemóveis nem sms há uma década atrás. Hoje não podemos sequer imaginar como era a nossa vida sem eles e entramos em parafuso quando estamos longe de um. E por muito que valha a pena esperar por tudo menos por um e-mail, iremos continuar pacientemente à espera do e-mail, que, naquele momento, é a coisa mais importante pela qual vale a pena esperar.
Não estou, evidentemente, isento de culpas no cartório. E, para que fique registado, sou cliente TMN.
Reza uma das páginas inteiras: Vale a pena esperar por um dia de sol, por uma noite de amor, por uma boa causa, por uma boa ideia, por um filho. Agora, para abrir um e-mail?
E a ironia, evidentemente, é que esta frase, que resume muito bem a frustração que todos nós sentimos quando a tecnologia desacelera por razões às quais somos alheios, está a ser usada para vender mais tecnologia mas não para libertar o tempo do consumidor para coisas verdadeiramente mais importantes. Porque a maior rapidez do correio, da mensagem, da consulta, a maior facilidade de comunicação apenas à superfície nos libertam para termos mais tempo para nós - na realidade, apenas nos torna mais dependentes do sistema, mais curiosos em explorá-lo até aos limites.
Todos vivíamos muito bem sem telemóveis nem sms há uma década atrás. Hoje não podemos sequer imaginar como era a nossa vida sem eles e entramos em parafuso quando estamos longe de um. E por muito que valha a pena esperar por tudo menos por um e-mail, iremos continuar pacientemente à espera do e-mail, que, naquele momento, é a coisa mais importante pela qual vale a pena esperar.
Não estou, evidentemente, isento de culpas no cartório. E, para que fique registado, sou cliente TMN.
25 de março de 2004
AS DELÍCIAS DO EXERCÍCIO FÍSICO #4
Descobri hoje que tenho um nivel de stress superior a 8 na escala de Borg (não, não é uma referência ao "Star Trek"). Isto habilita-me automaticamente a ser massajado regularmente pela Teresa ou pelo Miguel como mecanismo redutor do stress, o que, posso garantir-vos, compensa substancialmente os lombares na prancha, abdominais em dip e outros laterais oblíquos, e ajuda substancialmente a desfazer a tensão e a ansiedade que se acumula nos músculos do pescoço e das costas.
A parte divertida é imaginar: se eu hoje, que tenho qualidade de vida, tenho um nível de stress alto, que raio de nível teria eu há dez anos quando vivia para um trabalho que me consumia diariamente e me impunha um nível de exigência e concentração absurdamente alto?
A parte divertida é imaginar: se eu hoje, que tenho qualidade de vida, tenho um nível de stress alto, que raio de nível teria eu há dez anos quando vivia para um trabalho que me consumia diariamente e me impunha um nível de exigência e concentração absurdamente alto?
AS DELÍCIAS DO EXERCÍCIO FÍSICO #3
Os lombares na prancha e os abdominais em dip são exponencialmente mais fodidos que os lombares E que os laterais oblíquos. Ai.
A DEMOCRACIA (AFORISMOS)
Para citar o poeta Godinho, a democracia é o pior de todos os sistemas com excepção de todos os outros - só assim se explica que a democrática decisão espanhola de correr com o PP seja hoje vista por muitos observadores, daqueles que procuram encontrar no momento o seu significado último e definitivo para registar na história, como uma vitória do terrorismo e do medo.
É uma opinião que se tem vindo a cimentar e que as revistas internacionais desta semana não desmentem, embora procurem de algum modo contrabalançar a definição redutora. Mas o facto é que as lições do 11 de Março e das eleições espanholas ainda estão longe de estarem aprendidas ou sequer apreendidas: só o tempo (aquela coisa que cada vez menos se tem) permitirá compreender o seu verdadeiro significado, para Espanha primeiro, para a Europa em seguida, para o mundo em geral.
A verdadeira pergunta é: teria o PP espanhol ganho as eleições se não tivesse insistido em inculpar a ETA? Ou: os atentados do 11 de Março, sem as acusações à ETA, teriam bastado (horrível palavra usada neste contexto, eu sei) por si só para eleger o PSOE? Ou, no fundo: se a democracia é a expressão do povo, e o povo se exprimiu democraticamente, será que o povo está do lado dos terroristas por ter votado contra o PP?
Ou, mais fundo ainda: a democracia acabou apenas de confirmar, do modo mais transparente possível, que não passa de um sistema falsamente democrático, porque sujeito à pressão de um número infinito de factores que influenciam o resultado. A democracia é, em suma, humana e, por isso, falível. Talvez por isso mesmo ainda não se tenha arranjado melhor.
É uma opinião que se tem vindo a cimentar e que as revistas internacionais desta semana não desmentem, embora procurem de algum modo contrabalançar a definição redutora. Mas o facto é que as lições do 11 de Março e das eleições espanholas ainda estão longe de estarem aprendidas ou sequer apreendidas: só o tempo (aquela coisa que cada vez menos se tem) permitirá compreender o seu verdadeiro significado, para Espanha primeiro, para a Europa em seguida, para o mundo em geral.
A verdadeira pergunta é: teria o PP espanhol ganho as eleições se não tivesse insistido em inculpar a ETA? Ou: os atentados do 11 de Março, sem as acusações à ETA, teriam bastado (horrível palavra usada neste contexto, eu sei) por si só para eleger o PSOE? Ou, no fundo: se a democracia é a expressão do povo, e o povo se exprimiu democraticamente, será que o povo está do lado dos terroristas por ter votado contra o PP?
Ou, mais fundo ainda: a democracia acabou apenas de confirmar, do modo mais transparente possível, que não passa de um sistema falsamente democrático, porque sujeito à pressão de um número infinito de factores que influenciam o resultado. A democracia é, em suma, humana e, por isso, falível. Talvez por isso mesmo ainda não se tenha arranjado melhor.
DIGA LÁ ISSO OUTRA VEZ? #2
Só tenho pena que [Maria Filomena Mónica] pertença a este grupo de pessoas que, por vezes, pensam que são mais do que os outros. A vida é assim (...) A prosápia e a arrogância são feias. (...) E como Eça de Queirós desprezava os vaidosos!
- Pedro Santana Lopes, na sua coluna no Diário de Notícias de hoje. I rest my case.
- Pedro Santana Lopes, na sua coluna no Diário de Notícias de hoje. I rest my case.
24 de março de 2004
DIGA LÁ ISSO OUTRA VEZ?
I believe most great novels are for one reason or another better left unfilmed.
- Robert Benton, cineasta americano, autor de "Culpa Humana", baseado no romance de Philip Roth, à Première americana de Fevereiro
- Robert Benton, cineasta americano, autor de "Culpa Humana", baseado no romance de Philip Roth, à Première americana de Fevereiro
A RESSACA NACIONAL
Não, a ressaca não é do álcool ingerido - é da chegada madrugadora da empregada de serviço doméstico, que hoje bem deu jeito (mesmo tendo chegado mais cedo). (E esta avalanche de posts nada tem a ver com a ressaca - apenas com o slow-motion da internet que os servidores acusaram durante praticamente todo o dia.)
Mas não é só. Ao longo das últimas semanas, quase todos os amigos com quem almoço/janto/converso desabafam o cansaço, a neura, a vontade de mudar de vida que Portugal hoje lhes inspira, a pescadinha de rabo na boca em que se encontram prisioneiros: querem mudar porque as coisas não estão bem, mas como as coisas não estão bem não podem mudar apesar de quererem. Mudar de emprego, mudar de vida, até mudar de país.
Recordo-me de uma cena bastante divertida, mas profundamente séria, de "A Melhor Juventude", quando Nicola, um dos dois irmãos centrais ao filme, faz o seu primeiro exame de medicina, nos idos dos anos 60, e o professor que o examina lhe dá nota máxima e lhe pergunta o que quer ele fazer do canudo que está a tirar. Nicola responde-lhe que não sabe ainda a especialidade que pensa seguir, e o professor apenas lhe diz que, seja o que for que ele escolha, o melhor que tem a fazer é fugir de Itália, sob pena de ficar prisioneiro de um país sem futuro condenado à inacção e ao compadrio - um país de dinossáurios à espera da extinção. Então porque não vai o professor embora?, pergunta-lhe Nicola; "porque sou um dos dinossáurios", responde-lhe o professor.
Portugal está um bocado assim: um país paralisado pela tarefa hercúlea de ter que dar a volta por cima, quando a única coisa que sabemos fazer é rastejar muito quietinhos por baixo a ver se ninguém dá por nós. Um país em loop de feedback à espera que alguém se lembre de desligar o amplificador ou fazer reboot ao sistema operativo - porque nós não sabemos (não queremos saber?) fazê-lo.
Mas não é só. Ao longo das últimas semanas, quase todos os amigos com quem almoço/janto/converso desabafam o cansaço, a neura, a vontade de mudar de vida que Portugal hoje lhes inspira, a pescadinha de rabo na boca em que se encontram prisioneiros: querem mudar porque as coisas não estão bem, mas como as coisas não estão bem não podem mudar apesar de quererem. Mudar de emprego, mudar de vida, até mudar de país.
Recordo-me de uma cena bastante divertida, mas profundamente séria, de "A Melhor Juventude", quando Nicola, um dos dois irmãos centrais ao filme, faz o seu primeiro exame de medicina, nos idos dos anos 60, e o professor que o examina lhe dá nota máxima e lhe pergunta o que quer ele fazer do canudo que está a tirar. Nicola responde-lhe que não sabe ainda a especialidade que pensa seguir, e o professor apenas lhe diz que, seja o que for que ele escolha, o melhor que tem a fazer é fugir de Itália, sob pena de ficar prisioneiro de um país sem futuro condenado à inacção e ao compadrio - um país de dinossáurios à espera da extinção. Então porque não vai o professor embora?, pergunta-lhe Nicola; "porque sou um dos dinossáurios", responde-lhe o professor.
Portugal está um bocado assim: um país paralisado pela tarefa hercúlea de ter que dar a volta por cima, quando a única coisa que sabemos fazer é rastejar muito quietinhos por baixo a ver se ninguém dá por nós. Um país em loop de feedback à espera que alguém se lembre de desligar o amplificador ou fazer reboot ao sistema operativo - porque nós não sabemos (não queremos saber?) fazê-lo.
REMOTE HOST SAID: 550 THAT ADDRESS DOES NOT EXIST
Tenho que ficar à espera que os engenheiros da Telepac me consertem directamente no servidor a personalização desaparecida. Ao fim de oito dias sem o endereço personalizado de e-mail que há doze anos me servia fielmente, soube hoje finalmente que a Telepac tentou por três vezes desinstalar e reinstalar a caixa de correio antes de admitir derrota de software e passar à resolução directamente no servidor - o que, infelizmente, não tem data certa para acontecer, visto que sou um de 400 casos que a Telepac tem de resolver; e tudo pode ficar resolvido esta noite como daqui a duas semanas.
É daquelas alturas em que, francamente, não sei se não preferiria ter sido mantido na ignorância sobre o assunto.
É daquelas alturas em que, francamente, não sei se não preferiria ter sido mantido na ignorância sobre o assunto.
A MANIF AO PÉ DE CASA
As políticas educacionais do(s) governo(s) são uma treta? São. É indecente obrigar alunos que não têm posses a pagar propinas que não podem pagar? É. No que me diz respeito, a minha simpatia com as reivindicações estudantis que hoje pararam o trânsito alguns minutos no Largo do Rato a caminho da Assembleia da República ficam por aí: muito sinceramente, a maior parte das manifestações estudantis já são uma espécie de "ritual" da vida académica - embora lá contestar o ministro, baldarmo-nos a umas aulas e curtir com os amigos. Cada geração faz as suas (eu próprio também lá andei) e depois olha para as dos sucessores com desprezo, "as minhas é que eram fixes...".
Estou a ser redutor? Possivelmente. Não se deve tomar a parte pelo todo. Mas quando olho para os manifestantes que contestam as propinas elevadíssimas que têm de pagar, vestidos com roupas de marca ou com traje académico completo, com aspecto de quem come três refeições por dia, a mandar sms para os amigos todos, confesso que acho todas estas manifestações birras mimadas de fedelhos burgueses a quem aparece tudo feito. Conheço até quem tenha tirado o curso superior numa universidade privada por não ter conseguido entrada para uma pública - e, como todos sabemos, numa privada paga-se a sério.
Ou seja, o problema não é o princípio - é o abuso do princípio. E em Portugal assim que se dá uma mão agarra-se logo o braço. (Sim, eu sou um conservador de esquerda. Sou a favor do princípio mas não do abuso.)
De qualquer maneira, divertido mesmo foi ver os três polícias motorizados a conterem o trânsito para a manifestação passar. Cinco minutos antes de eles chegarem à entrada do Rato vindos da Alexandre Herculano, os três instalam-se na esquina da Álvares Cabral com a Rua de S. Bento e vá de, em cinco minutos, abrirem ali uma clareira para a multidão passar enquanto gesticulam freneticamente, apitam e gritam uns para os outros. "Oh Costa, pára-os aí!". Meia-hora depois a manif tinha passado e o trânsito fluia normal. Até pareceu a visita fantasma do sr. Blair, que só aconteceu nos telejornais do jantar (apesar de ter ouvido ao longe as sirenes das escoltas policiais), porque Lisboa não deu por nada.
Estou a ser redutor? Possivelmente. Não se deve tomar a parte pelo todo. Mas quando olho para os manifestantes que contestam as propinas elevadíssimas que têm de pagar, vestidos com roupas de marca ou com traje académico completo, com aspecto de quem come três refeições por dia, a mandar sms para os amigos todos, confesso que acho todas estas manifestações birras mimadas de fedelhos burgueses a quem aparece tudo feito. Conheço até quem tenha tirado o curso superior numa universidade privada por não ter conseguido entrada para uma pública - e, como todos sabemos, numa privada paga-se a sério.
Ou seja, o problema não é o princípio - é o abuso do princípio. E em Portugal assim que se dá uma mão agarra-se logo o braço. (Sim, eu sou um conservador de esquerda. Sou a favor do princípio mas não do abuso.)
De qualquer maneira, divertido mesmo foi ver os três polícias motorizados a conterem o trânsito para a manifestação passar. Cinco minutos antes de eles chegarem à entrada do Rato vindos da Alexandre Herculano, os três instalam-se na esquina da Álvares Cabral com a Rua de S. Bento e vá de, em cinco minutos, abrirem ali uma clareira para a multidão passar enquanto gesticulam freneticamente, apitam e gritam uns para os outros. "Oh Costa, pára-os aí!". Meia-hora depois a manif tinha passado e o trânsito fluia normal. Até pareceu a visita fantasma do sr. Blair, que só aconteceu nos telejornais do jantar (apesar de ter ouvido ao longe as sirenes das escoltas policiais), porque Lisboa não deu por nada.
23 de março de 2004
PONTO DA SITUAÇÃO
Chamo-me Jorge Mourinha. Tenho 1m90, 85kg, olhos castanhos, 7,5/6 de miopia, cabelo curto, bigode e pêra, dois irmãos mais velhos. Sou solteiro e vivo sozinho em Lisboa. Faço mergulho e ginásio. Gosto de chocolates. Gosto de tomar banho de água quente e não sou capaz de tomar duches frios. Tenho dois romances inéditos na gaveta. Não fiz a tropa; sou teimoso, dou-me mal com o "porque sim" e teria dado um péssimo soldado, mas sou mandão, gosto de o aplicar aos outros e talvez tivesse dado um bom sargento. Fiz psicologia clínica durante vários anos. Formei-me em Letras. Escrevo em jornais. Preparo compilações e reedições para editoras. Sou Carneiro de signo e, segundo algumas vozes mais maldizentes, também de feitio.
Gosto (muito) de escrever. Gosto de desenhar com as canções que vou acumulando mapas do que sou e do que sinto. Gosto dos meus amigos. Gosto que gostem de mim, mas nunca farei nada para que os outros tenham de gostar de mim. Sou triste por natureza lusa, céptico por experiência própria, secretamente optimista mas lucidamente realista. Os amigos dizem-me que sou boa pessoa, quem não gosta de mim acha-me insuportável. A verdade haverá de estar algures no meio; a Maria sempre me diz que tudo correrá muito melhor quando aceitar que tenho um lado escuro em vez de o querer esconder.
Vivo dentro do universo restrito que delimitei para me proteger daquilo de que não posso ser protegido. Vivo para o trabalho porque dele fiz a única vida que quis ter, demasiado assustado com os compromissos que nunca quis assumir. Passei a maior parte dos meus 36 anos a fugir à vida real, convicto que o que fazia me daria tudo aquilo que sentia que faltava à minha vida. Depois, comecei a aprender a viver e percebi que não era bem assim; para citar os outros, true life is elsewhere.
Procuro erguer-me a observador frio e imparcial da natureza humana, mas nesse processo apenas afino a parcialidade com que olho para mim mesmo. Vivo na corda bamba entre aproveitar o que tenho e desejar o que não tenho.
Faço hoje 36 anos e ainda estou longe de perceber quem sou; por vezes isso desespera-me, por vezes sinto que quanto mais perto mais longe, mas depois olho para o caminho que já percorri e admiro-me com os progressos que já fiz. Faz parte da minha natureza bipolar.
Gosto (muito) de escrever. Gosto de desenhar com as canções que vou acumulando mapas do que sou e do que sinto. Gosto dos meus amigos. Gosto que gostem de mim, mas nunca farei nada para que os outros tenham de gostar de mim. Sou triste por natureza lusa, céptico por experiência própria, secretamente optimista mas lucidamente realista. Os amigos dizem-me que sou boa pessoa, quem não gosta de mim acha-me insuportável. A verdade haverá de estar algures no meio; a Maria sempre me diz que tudo correrá muito melhor quando aceitar que tenho um lado escuro em vez de o querer esconder.
Vivo dentro do universo restrito que delimitei para me proteger daquilo de que não posso ser protegido. Vivo para o trabalho porque dele fiz a única vida que quis ter, demasiado assustado com os compromissos que nunca quis assumir. Passei a maior parte dos meus 36 anos a fugir à vida real, convicto que o que fazia me daria tudo aquilo que sentia que faltava à minha vida. Depois, comecei a aprender a viver e percebi que não era bem assim; para citar os outros, true life is elsewhere.
Procuro erguer-me a observador frio e imparcial da natureza humana, mas nesse processo apenas afino a parcialidade com que olho para mim mesmo. Vivo na corda bamba entre aproveitar o que tenho e desejar o que não tenho.
Faço hoje 36 anos e ainda estou longe de perceber quem sou; por vezes isso desespera-me, por vezes sinto que quanto mais perto mais longe, mas depois olho para o caminho que já percorri e admiro-me com os progressos que já fiz. Faz parte da minha natureza bipolar.
22 de março de 2004
POLAROID BALNEÁRIO
Os miúdos que vão para ou vêm do ténis ou da ginástica deixam as mochilas ao deus-dará no primeiro banco que encontram enquanto brincam com os amigos pelo balneário fora. Ou então deixam a porta aberta, o vento a fazer corrente de ar junto de quem acabou de sair do duche quente, como se mais ninguém ali estivesse a não ser eles.
Há um velhote à antiga portuguesa incapaz de falar sem ser aos gritos, com aquela voz tonitruante de quem gosta de se mostrar valentão das dúzias, e uma barriga protuberante que chega a qualquer sítio dez minutos antes dele. O som da voz ressoa na acústica dura do balneário.
Um rapaz novo, com pinta de actor de teatro independente ou bailarino contemporâneo, está sempre a fazer trejeitos com o rosto, como tiques nervosos que é incapaz de controlar.
Uma das cabines de água quente está avariada. Um papel escrito à mão a dizer "avariado" está colado com fita adesiva à parede porosa, já dentro da cabine.
As equipas de futebol de fim da tarde equipam-se e desequipam-se, combinam jantares, encontros, boleias, reuniões, discutem os pormenores do jogo do dia, quem é o árbitro, quem vem, quem está atrasado. Telemóveis tocam.
Há um velhote à antiga portuguesa incapaz de falar sem ser aos gritos, com aquela voz tonitruante de quem gosta de se mostrar valentão das dúzias, e uma barriga protuberante que chega a qualquer sítio dez minutos antes dele. O som da voz ressoa na acústica dura do balneário.
Um rapaz novo, com pinta de actor de teatro independente ou bailarino contemporâneo, está sempre a fazer trejeitos com o rosto, como tiques nervosos que é incapaz de controlar.
Uma das cabines de água quente está avariada. Um papel escrito à mão a dizer "avariado" está colado com fita adesiva à parede porosa, já dentro da cabine.
As equipas de futebol de fim da tarde equipam-se e desequipam-se, combinam jantares, encontros, boleias, reuniões, discutem os pormenores do jogo do dia, quem é o árbitro, quem vem, quem está atrasado. Telemóveis tocam.
EM QUE POSSO AJUDAR?
Chego à conclusão de que as linhas de apoio ao cliente não cumprem nenhuma função efectivamente recompensadora para os clientes que as utilizam: vide o facto de há uma semana o meu endereço personalizado ter "desaparecido" dos servidores da Telepac e ninguém parecer conseguir encontrá-lo. Já enviei e-mails, já telefonei, já esbracejei, já insultei, já falei com funcionários simpáticos e prestáveis, já falei com funcionários enjoados que estão ali a fazer frete. E, apesar de eles terem um sistema informático que é suposto registar os dados do cliente, já repeti mais vezes do que estou interessado em recordar-me o meu nome, telefone e username, bem como a situação que me levava a contactá-los, ao ponto de já ter um discurso preparado para os reduzir à sua verdadeira insignificância na primeira ocasião.
Os serviços de apoio ao cliente são apenas mais uma camada de burocracia para juntar a todas as outras que já existem e, pelas experiências que tive nas últimas semanas, são ineficazes, ineficientes e com uma assustadora percentagem de funcionários incompetentes no atendimento. Acredito perfeitamente que existam excepções, mas confesso que ainda não tive a felicidade de as encontrar.
Os serviços de apoio ao cliente são apenas mais uma camada de burocracia para juntar a todas as outras que já existem e, pelas experiências que tive nas últimas semanas, são ineficazes, ineficientes e com uma assustadora percentagem de funcionários incompetentes no atendimento. Acredito perfeitamente que existam excepções, mas confesso que ainda não tive a felicidade de as encontrar.
21 de março de 2004
POLAROID COLOMBO
Um casal com uma filha gordinha e rechonchuda a sairem saciados de uma casa de fast-food.
Famílias inteiras que passeiam pelos corredores - pais, filhos, namoradas, netos - mas, curiosamente, afastados. Cada um na sua. Nada de mãos nas mãos, nada de um grupo que passeia acompanhado; antes indivíduos que estão juntos porque calha, porque sim.
Gente que quer estar vestida "fashion" mas que, no acto de se vestirem àquilo que julgam ser "moda", apenas traem como estão distantes dela, como não têm consciência de que aquilo que fica bem no corpo meticulosamente trabalhado que vêem na televisão lhes fica mal a eles; suburbanos com aspirações que julgam transcender-se e apenas sublinham a sua condição auto-infligida. E, nas caixas das boutiques da moda (a preço em conta, mesmo assim), filas de gente que, apesar de tudo, insiste em comprar roupa que não lhes cai bem.
Um bando de adolescentes que sobe a escada rolante com ar enjoado. Um deles carrega no botão de stop e pára a escada rolante.
Polícia municipal à porta do shopping a bloquear os carros dos consumidores que evitaram pagar dinheiro ao parque e arrumaram à má-fila nas cercanias.
Para alguns (para muitos?), a tarde de domingo é isto.
Famílias inteiras que passeiam pelos corredores - pais, filhos, namoradas, netos - mas, curiosamente, afastados. Cada um na sua. Nada de mãos nas mãos, nada de um grupo que passeia acompanhado; antes indivíduos que estão juntos porque calha, porque sim.
Gente que quer estar vestida "fashion" mas que, no acto de se vestirem àquilo que julgam ser "moda", apenas traem como estão distantes dela, como não têm consciência de que aquilo que fica bem no corpo meticulosamente trabalhado que vêem na televisão lhes fica mal a eles; suburbanos com aspirações que julgam transcender-se e apenas sublinham a sua condição auto-infligida. E, nas caixas das boutiques da moda (a preço em conta, mesmo assim), filas de gente que, apesar de tudo, insiste em comprar roupa que não lhes cai bem.
Um bando de adolescentes que sobe a escada rolante com ar enjoado. Um deles carrega no botão de stop e pára a escada rolante.
Polícia municipal à porta do shopping a bloquear os carros dos consumidores que evitaram pagar dinheiro ao parque e arrumaram à má-fila nas cercanias.
Para alguns (para muitos?), a tarde de domingo é isto.
TÁXI!
Sim, é verdade: ainda há taxistas simpáticos em Lisboa. Podem não ser muitos, mas existem. Eu já fui transportado por uns quantos.
O que não me impede de cair para o chão a rir quando ouço dizer que há taxistas que não estão interessados em receber formação. Muito embora eu sempre tenha achado que a formação essencial de um taxista deve ser a cortesia e a boa educação - e, como todos sabemos, isso ou se aprende de origem ou então não há muito a fazer.
O que não me impede de cair para o chão a rir quando ouço dizer que há taxistas que não estão interessados em receber formação. Muito embora eu sempre tenha achado que a formação essencial de um taxista deve ser a cortesia e a boa educação - e, como todos sabemos, isso ou se aprende de origem ou então não há muito a fazer.
O MEU ABRIGO
Sei o bem que me fazes; sei porque preciso de ti. Mas tenho medo de não saber, de não compreender porque precisas de mim. De não corresponder. E que, um momento, decidas que já nada tens para me ensinar.
20 de março de 2004
PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #9
Ter que sintonizar paciente e manualmente os televisores e os videos: perde-se meia-hora só para encontrar os canais.
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #6: A ÚLTIMA SESSÃO DO MUNDIAL
Fechou o cinema Mundial. A notícia veio no Diário de Notícias de quinta-feira - os proprietários da sala decidiram que a sua rentabilidade já não justificava mantê-la em actividade.
Lembro-me do Mundial quando ainda era uma sala única (teria para aí 700, 800 lugares?), com plateia e balcão e estreias chiques à quinta-feira. Foi um dos cinemas que marcou a minha infância e adolescência - não ficava longe de minha casa e tinha aquele aspecto de cinema de bairro da Lisboa perdida dos anos 60, embutido num edifício de escritórios, sossegado e confortável (e, contudo, apesar da lotação e do écrã grandote, era acanhado, com pouco espaço para as pernas entre as filas, os foyers escondidos na cave, junto à plateia, e a casa de banho numa subcave à qual se acedia por um íngreme lanço de escadas). Foi lá que vi "Os Salteadores da Arca Perdida", em 1981, no fim-de-semana da estreia, numa sessão das sete que estaria quase vazia e em nada faria prever o ano de cartaz que o filme teve só em Lisboa... Mas foi lá também que vi grandes enchentes, nos anos 70, como com "O Abismo" (Jacqueline Bisset, volta, tudo te perdoamos).
Quando o Mundial foi retalhado em três salas, nos anos 80, para garantir a sobrevivência, tornou-se então em mais uma sala de bairro que subsistia a custo, ligada ao ventilador, sem rei nem roque, até que o sucesso do "Carteiro de Pablo Neruda" a veio fugazmente ressuscitar. O Mundial de hoje - que até tinha levado obras há pouco tempo! - era um cinema parado no tempo, com as duas salinhas cá de baixo com um som inaceitável (apesar de terem as velhas cadeiras do Star) e só a sala 1, equivalente ao antigo balcão, ao nível do que devia ser um cinema moderno.
Ninguém vai chorar pelo Mundial como se chorou pelo velho Monumental quando o camartelo tomou conta dele. Ninguém se vai indignar como se indignaram quando se anunciou o fecho do São Jorge. O Mundial já morreu há muito tempo; e, como o Avis, ou o Roma, ou o Roxy, ou o Pathé, ou as inúmeras salas de bairro que nunca fizeram parte do circuito de prestígio dos cinemas de Lisboa, ninguém lhe vai sentir a falta.
Mas eu vou.
Lembro-me do Mundial quando ainda era uma sala única (teria para aí 700, 800 lugares?), com plateia e balcão e estreias chiques à quinta-feira. Foi um dos cinemas que marcou a minha infância e adolescência - não ficava longe de minha casa e tinha aquele aspecto de cinema de bairro da Lisboa perdida dos anos 60, embutido num edifício de escritórios, sossegado e confortável (e, contudo, apesar da lotação e do écrã grandote, era acanhado, com pouco espaço para as pernas entre as filas, os foyers escondidos na cave, junto à plateia, e a casa de banho numa subcave à qual se acedia por um íngreme lanço de escadas). Foi lá que vi "Os Salteadores da Arca Perdida", em 1981, no fim-de-semana da estreia, numa sessão das sete que estaria quase vazia e em nada faria prever o ano de cartaz que o filme teve só em Lisboa... Mas foi lá também que vi grandes enchentes, nos anos 70, como com "O Abismo" (Jacqueline Bisset, volta, tudo te perdoamos).
Quando o Mundial foi retalhado em três salas, nos anos 80, para garantir a sobrevivência, tornou-se então em mais uma sala de bairro que subsistia a custo, ligada ao ventilador, sem rei nem roque, até que o sucesso do "Carteiro de Pablo Neruda" a veio fugazmente ressuscitar. O Mundial de hoje - que até tinha levado obras há pouco tempo! - era um cinema parado no tempo, com as duas salinhas cá de baixo com um som inaceitável (apesar de terem as velhas cadeiras do Star) e só a sala 1, equivalente ao antigo balcão, ao nível do que devia ser um cinema moderno.
Ninguém vai chorar pelo Mundial como se chorou pelo velho Monumental quando o camartelo tomou conta dele. Ninguém se vai indignar como se indignaram quando se anunciou o fecho do São Jorge. O Mundial já morreu há muito tempo; e, como o Avis, ou o Roma, ou o Roxy, ou o Pathé, ou as inúmeras salas de bairro que nunca fizeram parte do circuito de prestígio dos cinemas de Lisboa, ninguém lhe vai sentir a falta.
Mas eu vou.
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #5: É PRECISO ACREDITAR
Ver "A Melhor Juventude", do italiano Marco Tullio Giordana, é muito mais do que ver apenas um filme: é deixarmo-nos levar pelo fluir majestoso de uma daquelas sagas familiares como, literalmente, já não se fazem hoje em dia, a não ser para a televisão. Não por acaso, "A Melhor Juventude" foi de facto pensado como série televisiva, mas acabou por ir parar às telas de cinema depois da aclamação com que o Festival de Cannes de 2003 o recebeu. São seis horas de filme, divididas em duas partes de três horas, onde se desenha a pequena história de uma família italiana, dos anos 60 aos nossos dias, cruzada com a História que vai passando e afectando as vidas de dois irmãos que trocam de destino entre si: Matteo, o bom aluno, reservado e romântico, com o futuro aparentemente traçado, e Nicola, o estudante esforçado, alegre e extrovertido, indeciso sobre o que o futuro lhe trará.
São 40 anos de vidas normais contadas através de momentos do quotidiano, com uma sensibilidade, uma elegância, uma delicadeza que nos obriga a remexer nas nossas próprias memórias, que nos recorda momentos idênticos do nosso passado. Os actores são fenomenais, de uma entrega generosa e convicta que rapidamente faz esquecer os problemas de maquilhagem que traem a idade (demasiado jovem ou demasiado envelhecida) em alguns dos momentos. E a fórmula romanesca surge aqui depurada, tempos mortos e lamechices sumariamente eliminadas para apenas deixar aquilo que realmente interessa: vidas normais erguidas a heroísmos quotidianos, nascidos da crença naquilo que se faz e naquilo que se vive - algo de tão antiquado que parece quase antediluviano mas que faz uma falta tremenda nos nossos dias. Porque é preciso acreditar; e, mesmo nos momentos mais escuros, os Carati nunca deixam de acreditar que a felicidade é possível, mesmo que por escassos momentos.
"A Melhor Juventude" é uma lição de como bem contar uma história de família e está no King, em Lisboa.
São 40 anos de vidas normais contadas através de momentos do quotidiano, com uma sensibilidade, uma elegância, uma delicadeza que nos obriga a remexer nas nossas próprias memórias, que nos recorda momentos idênticos do nosso passado. Os actores são fenomenais, de uma entrega generosa e convicta que rapidamente faz esquecer os problemas de maquilhagem que traem a idade (demasiado jovem ou demasiado envelhecida) em alguns dos momentos. E a fórmula romanesca surge aqui depurada, tempos mortos e lamechices sumariamente eliminadas para apenas deixar aquilo que realmente interessa: vidas normais erguidas a heroísmos quotidianos, nascidos da crença naquilo que se faz e naquilo que se vive - algo de tão antiquado que parece quase antediluviano mas que faz uma falta tremenda nos nossos dias. Porque é preciso acreditar; e, mesmo nos momentos mais escuros, os Carati nunca deixam de acreditar que a felicidade é possível, mesmo que por escassos momentos.
"A Melhor Juventude" é uma lição de como bem contar uma história de família e está no King, em Lisboa.
18 de março de 2004
FAMÍLIA
Do lado do meu pai, oriundo de Estremoz mas radicado em Lisboa, eram cinco irmãos: José, Bernardo, Carlos, Fernando e Gabriela. Nunca conheci Bernardo, que morreu adolescente, creio que de tuberculose. O meu pai sempre teve relações complicadas com os outros irmãos, mas mantiveram-se em contacto. Fernando e Carlos já morreram. Apenas o meu pai (o mais velho, ao que julgo) e Gabriela, a mais nova, ainda são vivos. Não sei o que é feito dos meus primos, filhos dos irmãos do meu pai. Existe ainda Fernanda, uma meia-irmã de uma relação do meu avô paterno.
Do lado da minha mãe, natural da Arrentela, no Seixal, mas radicado em Lisboa, eram seis irmãos: Belmira, Carolina, Herculano, Paulo, Joaquim e Amélia. Ainda hoje somos mais chegados ao lado materno da família. Os meus irmãos praticamente cresceram em Loures, onde a minha tia Carolina - afectuosamente conhecida pela "madrinha" - vive desde que se casou, e muitas vezes passávamos férias juntos com os vários irmãos em Tavira.
Nunca conheci Amélia (a mais velha), que morreu jovem com um tumor nos anos 50. Herculano, assim chamado pelo pai, fez vida pela Guiné-Bissau, e depois da descolonização não voltou para Portugal, preferindo ficar por lá, com cada vez mais dificuldades para viver. Embora tivesse mulher e filhos em Portugal, por lá arranjou uma segunda família. Voltou a Portugal em finais dos anos 80; veio morrer de cancro à pátria. Foi, de certa maneira, o aventureiro da família. Paulo morreu, inesperadamente, no início dos anos 80, de hemorragia cerebral. Joaquim também já faleceu há anos. Apenas a minha mãe e Carolina são vivos. Hoje revi, no funeral do marido de Carolina, os primos que há muitos anos não via, todos casados e com filhos.
Hoje percebi que esta também é a minha família, e que tenho nela um lugar do qual nunca havia suspeitado.
Do lado da minha mãe, natural da Arrentela, no Seixal, mas radicado em Lisboa, eram seis irmãos: Belmira, Carolina, Herculano, Paulo, Joaquim e Amélia. Ainda hoje somos mais chegados ao lado materno da família. Os meus irmãos praticamente cresceram em Loures, onde a minha tia Carolina - afectuosamente conhecida pela "madrinha" - vive desde que se casou, e muitas vezes passávamos férias juntos com os vários irmãos em Tavira.
Nunca conheci Amélia (a mais velha), que morreu jovem com um tumor nos anos 50. Herculano, assim chamado pelo pai, fez vida pela Guiné-Bissau, e depois da descolonização não voltou para Portugal, preferindo ficar por lá, com cada vez mais dificuldades para viver. Embora tivesse mulher e filhos em Portugal, por lá arranjou uma segunda família. Voltou a Portugal em finais dos anos 80; veio morrer de cancro à pátria. Foi, de certa maneira, o aventureiro da família. Paulo morreu, inesperadamente, no início dos anos 80, de hemorragia cerebral. Joaquim também já faleceu há anos. Apenas a minha mãe e Carolina são vivos. Hoje revi, no funeral do marido de Carolina, os primos que há muitos anos não via, todos casados e com filhos.
Hoje percebi que esta também é a minha família, e que tenho nela um lugar do qual nunca havia suspeitado.
O FRIO
Há uma frase numa canção da divina Annie Lennox que sempre me arrepiou desde a primeira vez que a ouvi. Está em "Cold" (no álbum "Diva", RCA/BMG, 1992) e reza assim:
dying is easy, it's living that scares me to death
Lembrei-me dela hoje à tarde, no funeral do meu tio por afinidade, marido da minha tia, irmã da minha mãe, quando vi a dor sem palavras da minha tia e da minha prima. Os mortos já nada têm a dizer nem a sentir; a morte só existe para os vivos.
dying is easy, it's living that scares me to death
Lembrei-me dela hoje à tarde, no funeral do meu tio por afinidade, marido da minha tia, irmã da minha mãe, quando vi a dor sem palavras da minha tia e da minha prima. Os mortos já nada têm a dizer nem a sentir; a morte só existe para os vivos.
BIBLIOTECAS DA MEMÓRIA
Ninguém usa as palavras como Laurie Anderson.
you know that little clock?
the one on your vcr?
the one that's always blinking twelve noon
because you never figured out how to get in there and change it
so it's always the same time
just the way it came from the factory
good morning.
good night.
same time tomorrow.
we're in record.
so here are the questions:
is time long
or is it wide?
and the answers
sometimes the answers just come in the mail
and one day you get that letter
you've been waiting for forever
and everything it says
is true.
and then in the last line it says:
burn this.
and what you really want to know is this:
are things getting better
or are they getting worse?
stop.
pause.
we're in record.
because history are stories
that we have remembered
and most of them never even get written down.
and so when they say things like:
we're gonna do this by the book
you have to ask:
what book?
because it would make a big difference
if it was Dostoievsky
or just, you know,
Ivanhoe.
I remember where I came from
there were burning buildings
and a fiery red sea
I remember all my lovers
I remember how they held me
east.
the edge of the world.
west.
those who came before me.
we're in record.
come here little girl
get into the car
it's a brand new Cadillac
bright red.
come here little girl.
when my father died
we put him in the ground.
when my father died
it was like a whole library
had burned down.
stop.
pause.
same time tomorrow.
and wild beasts shall rest there.
and owls shall answer one another there.
and the hairy ones shall dance there.
and sirens in the temples of pleasure.
speak my language.
you know that little clock?
the one on your vcr?
the one that's always blinking twelve noon
because you never figured out how to get in there and change it
so it's always the same time
just the way it came from the factory
good morning.
good night.
same time tomorrow.
we're in record.
so here are the questions:
is time long
or is it wide?
and the answers
sometimes the answers just come in the mail
and one day you get that letter
you've been waiting for forever
and everything it says
is true.
and then in the last line it says:
burn this.
and what you really want to know is this:
are things getting better
or are they getting worse?
stop.
pause.
we're in record.
because history are stories
that we have remembered
and most of them never even get written down.
and so when they say things like:
we're gonna do this by the book
you have to ask:
what book?
because it would make a big difference
if it was Dostoievsky
or just, you know,
Ivanhoe.
I remember where I came from
there were burning buildings
and a fiery red sea
I remember all my lovers
I remember how they held me
east.
the edge of the world.
west.
those who came before me.
we're in record.
come here little girl
get into the car
it's a brand new Cadillac
bright red.
come here little girl.
when my father died
we put him in the ground.
when my father died
it was like a whole library
had burned down.
stop.
pause.
same time tomorrow.
and wild beasts shall rest there.
and owls shall answer one another there.
and the hairy ones shall dance there.
and sirens in the temples of pleasure.
speak my language.
17 de março de 2004
RESPOSTA (para J.)
É aquilo a que costuma chamar-se, com desculpas pelo vernáculo, uma puta de uma canção. No álbum - "Afterglow" (Nettwerk/Arista, 2003) - não há mais nada a este nível, mas é provavelmente a melhor coisa que Sarah McLachlan alguma vez escreveu na vida. Hoje, neste momento, faz todo o sentido.
I will be the answer at the end of the line
I will be there for you while you take the time
in the burning of uncertainty I will be your solid ground
I will hold the balance if you can't look down
if it takes my whole life I won't break I won't bend
it'll all be worth it worth it in the end
'cause I can only tell you what I know
that I need you in my life
when the stars have all gone out
you'll still be burning so bright
cast me gently into morning
for the night has been unkind
take me to a place so holy
that I can wash this from my mind
the memory of choosing not to fight
if it takes a whole life I won't break I won't bend
it'll all be worth it worth it in the end
'cause I can only tell you what I know
that I need you in my life
and when the stars have all burned out
you'll still be burning so bright
cast me gently into morning for the night has been unkind.
I will be the answer at the end of the line
I will be there for you while you take the time
in the burning of uncertainty I will be your solid ground
I will hold the balance if you can't look down
if it takes my whole life I won't break I won't bend
it'll all be worth it worth it in the end
'cause I can only tell you what I know
that I need you in my life
when the stars have all gone out
you'll still be burning so bright
cast me gently into morning
for the night has been unkind
take me to a place so holy
that I can wash this from my mind
the memory of choosing not to fight
if it takes a whole life I won't break I won't bend
it'll all be worth it worth it in the end
'cause I can only tell you what I know
that I need you in my life
and when the stars have all burned out
you'll still be burning so bright
cast me gently into morning for the night has been unkind.
A VINGANÇA DA BANDA LARGA
Que os servidores da Telepac não andavam famosos já eu tinha percebido há uns diazinhos, quando comecei a ter dificuldades em abrir algumas páginas ou a carregar imagens. De repente, ontem à tarde, sem aviso prévio nem explicação plausível, pura e simplesmente parei de receber correio. Envio correio sem problemas, mas o servidor deixou de reconhecer o meu endereço personalizado - segundo o prestável funcionário do apoio técnico que me respondeu, é um problema do servidor ao qual eu, como utilizador, ou o meu sistema informático é completamente alheio. E é a primeira vez que ele tinha registo de um problema semelhante, em que a mensagem chega se for enviada para o endereço atribuído pela Telepac mas não pelo endereço personalizado. (Porque carga d'água é que até nos problemas tenho de ser original?)
Na simpática e civilizada conversa que mantive com o referido funcionário, acabei por perceber também que, ontem à noite, o servidor de entrada de correio da Telepac estava em baixo. E os servidores da Telepac no geral estão com uma carrada de problemas. E eles não me podiam dar uma previsão de quando o meu endereço personalizado voltaria ao activo, apenas que iriam tratar do assunto o mais depressa possível assim que os servidores estivessem outra vez a funcionar a cem por cento - mas, se até ao final do dia, nada acontecer, para eu voltar a insistir. Gosto desta estética: nós vamos tratar, mas pelo sim pelo não...
Na simpática e civilizada conversa que mantive com o referido funcionário, acabei por perceber também que, ontem à noite, o servidor de entrada de correio da Telepac estava em baixo. E os servidores da Telepac no geral estão com uma carrada de problemas. E eles não me podiam dar uma previsão de quando o meu endereço personalizado voltaria ao activo, apenas que iriam tratar do assunto o mais depressa possível assim que os servidores estivessem outra vez a funcionar a cem por cento - mas, se até ao final do dia, nada acontecer, para eu voltar a insistir. Gosto desta estética: nós vamos tratar, mas pelo sim pelo não...
CARNE VIVA
sei que não fui (sou)
(apenas?)
brinquedo
para satisfazer fugaz desejo
nem eu príncipe encantado
nem tu branca de neve
fadados a vivermos felizes para sempre
não criámos ilusões
fantasias
enganos:
cartas na mesa,
jogo franco.
mas há leis que ultrapassam isso
(como Almodóvar naquele filme de que tanto gostas)
e face à torrente nada resiste;
há sempre um pote de ouro no fim do arco-íris.
contigo quis
(quero)
aprender
a encontrar o outro lado de mim -
talvez só assim o saibas ensinar.
(apenas?)
brinquedo
para satisfazer fugaz desejo
nem eu príncipe encantado
nem tu branca de neve
fadados a vivermos felizes para sempre
não criámos ilusões
fantasias
enganos:
cartas na mesa,
jogo franco.
mas há leis que ultrapassam isso
(como Almodóvar naquele filme de que tanto gostas)
e face à torrente nada resiste;
há sempre um pote de ouro no fim do arco-íris.
contigo quis
(quero)
aprender
a encontrar o outro lado de mim -
talvez só assim o saibas ensinar.
16 de março de 2004
NUNCA OLHES PARA TRÁS
Às vezes penso que poderia fazer uma autobiografia emocional recorrendo exclusivamente a letras de canções. A maior parte delas, estou certo, seriam de Lloyd Cole. Como esta: uma melodia luminosamente solar, perfeita para um dia como o de hoje, contrastando com uma letra depuradamente desencantada e lúcida. Apropriada para o dia de hoje, creio-o também. Em tempos disse a um amigo que Cole escrevia a história da minha vida sem o saber (há aí mais alguém que partilhe da minha opinião?).
E, nos momentos difíceis ou felizes, são sempre as canções dele no horizonte.
when you're nothing to no one
and you're less than your kin
and you're looking for someone
who won't cling to anything
so you're stuck in some motel
with the sound of her sleeping
don't you feel kind of old now?
well, ain't that a funny thing
I used to wake up early
I used to try to believe
but life seems never ending
when you're young
so you're back on the highway
and there's wind in her hair
and you know that it's no time for thinking
about somebody up there
because you'll turn her to drinking
and you'll lead her to hell
with her bible beside her
she surely looks like an angel
I used to wake up early
I used to try to believe
but faith is never easy
when you're young
I used to wake up early
now it's hard, hard enough to sleep
but life seems neverending
when you're young
E, nos momentos difíceis ou felizes, são sempre as canções dele no horizonte.
when you're nothing to no one
and you're less than your kin
and you're looking for someone
who won't cling to anything
so you're stuck in some motel
with the sound of her sleeping
don't you feel kind of old now?
well, ain't that a funny thing
I used to wake up early
I used to try to believe
but life seems never ending
when you're young
so you're back on the highway
and there's wind in her hair
and you know that it's no time for thinking
about somebody up there
because you'll turn her to drinking
and you'll lead her to hell
with her bible beside her
she surely looks like an angel
I used to wake up early
I used to try to believe
but faith is never easy
when you're young
I used to wake up early
now it's hard, hard enough to sleep
but life seems neverending
when you're young
BLOGO, LOGO EXISTO #5: PORQUE É UM DESERTO
Alguém perguntava, no outro dia (talvez no arame? talvez na forma do jazz?), porquê insistir em escrever num blog quando não se sabe que mais dizer.
Creio que tenho, hoje, uma resposta: para encher o silêncio da noite. Para acreditar que não estou aqui sozinho em frente a um écrã frio, a um teclado de computador; para construir uma ligação, nem que fictícia, a alguém, quem quer que seja, algures naquilo a que Antonioni (ou, mais precisamente, o tradutor português de "Zabriskie Point"...) chamou "deserto de almas".
Rickie sabia o que dizia, em "Flying Cowboys":
down there by the river is a man
whose horn is twisted into shapes
unknown to the wicked and the wise
and he bears the look of an animal
who's seen things no animal should ever see
he has been driven beyond all towns
and all systems until now, though it is
long past too far he keeps going
because it's a desert
because it's a desert
(...)
long coats on the prairie
lying in the dust
who can I turn to?
who can I trust?
were you walking on the water?
playing in the sun?
but the world is turning faster
than it did when I was young.
Creio que tenho, hoje, uma resposta: para encher o silêncio da noite. Para acreditar que não estou aqui sozinho em frente a um écrã frio, a um teclado de computador; para construir uma ligação, nem que fictícia, a alguém, quem quer que seja, algures naquilo a que Antonioni (ou, mais precisamente, o tradutor português de "Zabriskie Point"...) chamou "deserto de almas".
Rickie sabia o que dizia, em "Flying Cowboys":
down there by the river is a man
whose horn is twisted into shapes
unknown to the wicked and the wise
and he bears the look of an animal
who's seen things no animal should ever see
he has been driven beyond all towns
and all systems until now, though it is
long past too far he keeps going
because it's a desert
because it's a desert
(...)
long coats on the prairie
lying in the dust
who can I turn to?
who can I trust?
were you walking on the water?
playing in the sun?
but the world is turning faster
than it did when I was young.
UM VERÃO HÁ MUITO PASSADO
Não sei porquê (ou talvez saiba e o queira contornar), mas parece-me uma boa altura para ouvir as aguarelas pré-rafaelitas de Virginia Astley: retratos de um jardim inglês saído direitinho das páginas de um livro vitoriano ou eduardiano, memórias nostálgicas de um bucolismo que talvez nunca tenha existido na vida real mas que se consubstanciou num qualquer ideal arcadiano.
A meio caminho entre a ingenuidade dos esboços de uma menina a aprender a desenhar e a simplicidade depurada da new music ou de um qualquer ambientalismo avant la lettre, o seminal "From Gardens Where We Feel Secure" (Happy Valley/Rough Trade, 1983) continua a ser um disco sem igual nem paralelo na história da música moderna: um refúgio que queremos reencontrar quando a tempestade se anuncia à distância.
Talvez estes jardins nunca tenham existido; mas basta-nos querer acreditar que sim. A música faz o resto.
A meio caminho entre a ingenuidade dos esboços de uma menina a aprender a desenhar e a simplicidade depurada da new music ou de um qualquer ambientalismo avant la lettre, o seminal "From Gardens Where We Feel Secure" (Happy Valley/Rough Trade, 1983) continua a ser um disco sem igual nem paralelo na história da música moderna: um refúgio que queremos reencontrar quando a tempestade se anuncia à distância.
Talvez estes jardins nunca tenham existido; mas basta-nos querer acreditar que sim. A música faz o resto.
15 de março de 2004
LITHIUM
Faz, agora, dois anos e meio, passei um mês a ansiolíticos. Na ressaca do 11 de Setembro, atirado sem eu saber bem como para o meio de um turbilhão de evoluções políticas que me ultrapassavam e onde eu tinha forçosamente de tomar uma posição política (e quem me conhece sabe como me é difícil fazer jogos políticos) no jornal onde ainda hoje escrevo, procurando estar de bem com Deus e com o Diabo (é uma metáfora onde não deve ser lido nenhum subtexto), dei por mim com dores que mimetizavam maleitas piores, com dificuldade em dormir.
Sou, por natureza, ansioso, reflexo de uma existência que durante grande parte da minha adolescência foi por demais protegida dos fluxos do mundo real. Nesse mês de Outubro de 2001, comecei a visitar aquele que ainda hoje é meu médico de família, que me pediu para fazer os proverbiais exames. Mostrados os exames, diagnosticou-me ansiedade e receitou-me ansiolíticos.
Ao segundo-terceiro dia senti-me pior do que quando comecei a tomá-los e foi aí que a habituação entrou. Durante um mês tomei religiosamente a dose mais baixa que a medicação permitia (meio comprimido de Pazolam antes de dormir). Nos primeiros dias senti-me aliviado, até reconfortado: afinal era possível alhear-me do mundo. Mas esse distanciamento artificial começou a preocupar-me e a confundir-me, criou-me um outro jogo de ansiedades - como se estivesse deliberadamente a adiar as decisões que tinha de tomar. E isso é algo que eu já sou perfeitamente capaz de fazer sem precisar de estimulantes externos.
Parei, sozinho, de tomar os ansiolíticos. Cold turkey. Ao segundo-terceiro dia senti-me pior do que quando parei de os tomar e foi aí que a desabituação entrou. Continuei a sentir-me ansioso, mas procurei começar a controlar essa ansiedade de outra forma. Em casos mais complicados uso o Valdispert que o cardiologista do meu pai me receitou, como relaxante ligeiro sem efeitos. Mas nunca mais toquei na embalagem de Pazolam. Está ali na gaveta dos remédios, como recordação do momento em que cedi ao paraíso artificial, para garantir que nunca mais tenho o desejo de lá voltar.
Sou, por natureza, ansioso, reflexo de uma existência que durante grande parte da minha adolescência foi por demais protegida dos fluxos do mundo real. Nesse mês de Outubro de 2001, comecei a visitar aquele que ainda hoje é meu médico de família, que me pediu para fazer os proverbiais exames. Mostrados os exames, diagnosticou-me ansiedade e receitou-me ansiolíticos.
Ao segundo-terceiro dia senti-me pior do que quando comecei a tomá-los e foi aí que a habituação entrou. Durante um mês tomei religiosamente a dose mais baixa que a medicação permitia (meio comprimido de Pazolam antes de dormir). Nos primeiros dias senti-me aliviado, até reconfortado: afinal era possível alhear-me do mundo. Mas esse distanciamento artificial começou a preocupar-me e a confundir-me, criou-me um outro jogo de ansiedades - como se estivesse deliberadamente a adiar as decisões que tinha de tomar. E isso é algo que eu já sou perfeitamente capaz de fazer sem precisar de estimulantes externos.
Parei, sozinho, de tomar os ansiolíticos. Cold turkey. Ao segundo-terceiro dia senti-me pior do que quando parei de os tomar e foi aí que a desabituação entrou. Continuei a sentir-me ansioso, mas procurei começar a controlar essa ansiedade de outra forma. Em casos mais complicados uso o Valdispert que o cardiologista do meu pai me receitou, como relaxante ligeiro sem efeitos. Mas nunca mais toquei na embalagem de Pazolam. Está ali na gaveta dos remédios, como recordação do momento em que cedi ao paraíso artificial, para garantir que nunca mais tenho o desejo de lá voltar.
14 de março de 2004
A VIDA SENTIMENTAL DE CESÁRIO BORGA
Sempre que a minha mãe vê Cesário Borga em directo no telejornal da RTP-1, não resiste a comentar que parece impossível que alguém tão feio possa alguma vez ter arranjado mulher. A minha mãe - como eu próprio, aliás - não faz ideia se Cesário Borga é casado. O que não a impede de me responder que é casado sim senhor, então não havia de ser, se toda a gente da geração dele arranjou mulher, ninguém ficava por casar por mais feio que fosse.
Contra a minha reiteração de que o homem até pode nem ser casado, pode ter ficado solteiro ou ser divorciado, a minha mãe responde que com certeza que tem de ser divorciado, nenhuma mulher aguentava casada muito tempo com um homem horrível daqueles.
Enquanto isto o meu pai brada aos céus porque ninguém o deixa ouvir o telejornal. E ficamos todos sem saber se Cesário Borga é casado, solteiro, divorciado ou o que quer que seja. Não que isso tenha o que quer que seja a ver com a sua competência profissional.
Contra a minha reiteração de que o homem até pode nem ser casado, pode ter ficado solteiro ou ser divorciado, a minha mãe responde que com certeza que tem de ser divorciado, nenhuma mulher aguentava casada muito tempo com um homem horrível daqueles.
Enquanto isto o meu pai brada aos céus porque ninguém o deixa ouvir o telejornal. E ficamos todos sem saber se Cesário Borga é casado, solteiro, divorciado ou o que quer que seja. Não que isso tenha o que quer que seja a ver com a sua competência profissional.
"One of the people who died in the train bombings in Madrid on Thursday was a 37-year-old woman, Pilar Cabreza Buria.
Her husband, Jesus Antonio Munoz, buried her on Saturday after sitting by her coffin in vigil over Friday night.
He told BBC Today reporter John Manell about the excruciating discovery of her death:
Early Thursday morning, my sister called me and I put on the television.
I suspected straight away that something could have happened to my wife because the time of her train coincided with what happened.
You can never be completely sure because there is always some hope left. But I knew the probability would be high. I can't describe it but I had a dreadful feeling.
I started watching television at 0800 in the morning. By 0930 I was completely consumed by the fear that my wife had died.
But you don't lose hope. You keep struggling to find out.
We were looking in all the hospitals during all that day and all the night. Myself and the people who were with me - I was accompanied by three people from the Spanish television channel where I work and Telefonica, the company where my wife worked - we set ourselves the task of trying to find her by phone, trying to find out where she was.
We couldn't find her anywhere.
In all this it's a terrible feeling - not to know anything, not to know whether or not you might have to go and identify or collect the corpse of your wife.
During the night in the room where we were waiting there was a certain protocol. I didn't realise what was going on at first, but little by little it dawned on me.
Each time they were about to tell a family bad news, a counsellor came alongside them to help. They were giving out tranquillisers. And that was how I was to find out my wife was dead.
At a little past 0800, I called emergency services and gave her name. The person who answered the phone was very nervous. She directed me to the place where the doctors would have more information.
Minutes later, they offered me a pill. And then, although I didn't say anything to any of my family, I was absolutely convinced that my wife was dead. That was it. The end.
(...)
It's absurd. I don't feel any repulsion. I don't know - indifference. The only thing I know is that they've torn out my heart. And now I'm like a child of five years old. Now I've got to start everything again - becoming an adult all over again.
I've got to say that it's all the same to me - whether it's Eta, or al-Qaeda, or any other group of terrorists. To me it's the same feeling. The only thing I know is that they've snatched away a part of my life and nobody can bring it back."
(texto completo in BBC News)
Her husband, Jesus Antonio Munoz, buried her on Saturday after sitting by her coffin in vigil over Friday night.
He told BBC Today reporter John Manell about the excruciating discovery of her death:
Early Thursday morning, my sister called me and I put on the television.
I suspected straight away that something could have happened to my wife because the time of her train coincided with what happened.
You can never be completely sure because there is always some hope left. But I knew the probability would be high. I can't describe it but I had a dreadful feeling.
I started watching television at 0800 in the morning. By 0930 I was completely consumed by the fear that my wife had died.
But you don't lose hope. You keep struggling to find out.
We were looking in all the hospitals during all that day and all the night. Myself and the people who were with me - I was accompanied by three people from the Spanish television channel where I work and Telefonica, the company where my wife worked - we set ourselves the task of trying to find her by phone, trying to find out where she was.
We couldn't find her anywhere.
In all this it's a terrible feeling - not to know anything, not to know whether or not you might have to go and identify or collect the corpse of your wife.
During the night in the room where we were waiting there was a certain protocol. I didn't realise what was going on at first, but little by little it dawned on me.
Each time they were about to tell a family bad news, a counsellor came alongside them to help. They were giving out tranquillisers. And that was how I was to find out my wife was dead.
At a little past 0800, I called emergency services and gave her name. The person who answered the phone was very nervous. She directed me to the place where the doctors would have more information.
Minutes later, they offered me a pill. And then, although I didn't say anything to any of my family, I was absolutely convinced that my wife was dead. That was it. The end.
(...)
It's absurd. I don't feel any repulsion. I don't know - indifference. The only thing I know is that they've torn out my heart. And now I'm like a child of five years old. Now I've got to start everything again - becoming an adult all over again.
I've got to say that it's all the same to me - whether it's Eta, or al-Qaeda, or any other group of terrorists. To me it's the same feeling. The only thing I know is that they've snatched away a part of my life and nobody can bring it back."
(texto completo in BBC News)
13 de março de 2004
POLAROID RESTAURANTE
Sempre me irritaram um pouco os empregados de mesa demasiado prestáveis e obsequiosos, sempre a perguntar se está tudo bem, com um sorriso de simpatia que sempre me pareceu falso e atado com cordel. Pela mesma bitola, irritam-me os empregados que estão ali com ar de frete, que nos ignoram ostensivamente quando os chamamos, infelizes com a sua própria vida e decididos a fazerem o pobre do freguês pagar por isso.
Ainda pela mesma bitola, irritam-me os jovens adultos (porque já não são teenagers nem são ainda adultos) que aceitam part-times a servir à mesa nos mcdonalds e outras pizza huts para meterem mais algum ao bolso, porque lhes falta a educação cívica e o respeito pelo cliente que uma posição tão delicada como servir à mesa implica: não se trata de ser subserviente nem altaneiro, há que encontrar uma medida exacta entre o profissionalismo e a cordialidade que, certamente, é das coisas mais difíceis de obter em tal mester.
O segredo talvez esteja em encarar cada tarefa, mesmo a mais básica e humilde, como se fosse a coisa mais importante do mundo - e acreditar convictamente nisso. Há empregados que eu não vejo acreditar convictamente em nada, a não ser talvez em que ainda faltam x horas para acabar o turno. (Verdade seja dita que não é um exclusivo dos part-times.)
E porque é que nos restaurantes leva sempre tanto tempo a trazer a conta?
Ainda pela mesma bitola, irritam-me os jovens adultos (porque já não são teenagers nem são ainda adultos) que aceitam part-times a servir à mesa nos mcdonalds e outras pizza huts para meterem mais algum ao bolso, porque lhes falta a educação cívica e o respeito pelo cliente que uma posição tão delicada como servir à mesa implica: não se trata de ser subserviente nem altaneiro, há que encontrar uma medida exacta entre o profissionalismo e a cordialidade que, certamente, é das coisas mais difíceis de obter em tal mester.
O segredo talvez esteja em encarar cada tarefa, mesmo a mais básica e humilde, como se fosse a coisa mais importante do mundo - e acreditar convictamente nisso. Há empregados que eu não vejo acreditar convictamente em nada, a não ser talvez em que ainda faltam x horas para acabar o turno. (Verdade seja dita que não é um exclusivo dos part-times.)
E porque é que nos restaurantes leva sempre tanto tempo a trazer a conta?
13 DE MARÇO DE 1929
O meu pai faz hoje, 13 de Março, 75 anos de idade. O meu pai é um homem de outros tempos, de uma outra Lisboa que já não existe. O meu pai é um falso alentejano; nasceu em Estremoz mas veio para Lisboa ainda criança, nada tem que o ligue à terra natal. O meu pai é uma pessoa reservada e introspectiva, de uma sensibilidade que sempre escondeu porque nos tempos dele os homens não podiam ser sensíveis. O meu pai legou-me a teimosia, a maneira de ser calada e introspectiva, a ética do trabalho até ao ponto da nossa vida pessoal deixar de existir. O meu pai legou-me o sentido de humor, a paixão pelo mar, o mau feitio, a capacidade de fazermos o nosso próprio mundo sozinhos. O meu pai ensinou-me a ler com os romances policiais da colecção Vampiro, a ouvir música com os discos de Frank Sinatra e os álbuns de música clássica que ouvia com a luz apagada no gira-discos Philips que tínhamos na sala de estar, a gostar de cinema, a ver os filmes antigos na televisão...
O meu pai abriu-me portas para eu não ser como ele foi. Faz hoje 75 anos e é um homem bom e frágil. E, embora ele não seja capaz de mo dizer, nem eu de lho dizer a ele, gostamos muito um do outro.
O meu pai abriu-me portas para eu não ser como ele foi. Faz hoje 75 anos e é um homem bom e frágil. E, embora ele não seja capaz de mo dizer, nem eu de lho dizer a ele, gostamos muito um do outro.
12 de março de 2004
BLOGO, LOGO EXISTO #4: PODE ALGUÉM SER QUEM NÃO É?
Algumas pessoas, em comentários ou e-mails, têm manifestado a sua admiração, a sua incredulidade ou o seu espanto pela coragem de que fiz prova em alguns posts que fui deixando.
E, contudo, muitas vezes não tenho a noção, quando aqui escrevo, de me estar a expôr. Talvez porque a escrita começa sempre por ser um acto solitário: eu, sozinho, frente ao écrã do computador e ao teclado. Palavras que parecem, a partir de certa altura, organizar-se sozinhas sem eu poder influir no sentido em que elas se dirigem. E só essa organização me permite por vezes fazer luz das minhas contradições e dos meus mal-estares.
Escrever é, por natureza, um acto solitário; por vezes, tem também sido para mim uma espécie de terapia inconsciente, um modo de dar sentido ao que me rodeia, de o compreender. Ou talvez apenas de me compreender. Porque, em rigor, quando escrevo não escrevo para alguém, ou com o intuito de dizer qualquer coisa. Por vezes, escrevo apenas porque tenho de escrever, porque tenho coisas para dizer nem que seja apenas a mim próprio, e sinto a necessidade de lhes dar uma forma e um sentido. E, muitas vezes, nesse processo surpreendo-me a mim próprio com aquilo que faço.
A questão não é, creio, que eu me exponha demasiado ou de modo demasiado aberto. A questão é que não estou aqui a erigir uma fachada pública para projectar uma imagem junto de quem lê. Sou assim: contraditório, bipolar, procurando descobrir aquele equilíbrio difícil que nos permite atravessar a corda bamba sem correr riscos desnecessários. Já o perguntava o poeta Godinho: pode alguém ser quem não é?. Há muito tempo já que descobri que eu, pelo menos, não consigo ser aquilo que os outros querem à viva força que eu seja; e estas palavras são parte do processo de descobrir quem eu quero realmente ser.
E, contudo, muitas vezes não tenho a noção, quando aqui escrevo, de me estar a expôr. Talvez porque a escrita começa sempre por ser um acto solitário: eu, sozinho, frente ao écrã do computador e ao teclado. Palavras que parecem, a partir de certa altura, organizar-se sozinhas sem eu poder influir no sentido em que elas se dirigem. E só essa organização me permite por vezes fazer luz das minhas contradições e dos meus mal-estares.
Escrever é, por natureza, um acto solitário; por vezes, tem também sido para mim uma espécie de terapia inconsciente, um modo de dar sentido ao que me rodeia, de o compreender. Ou talvez apenas de me compreender. Porque, em rigor, quando escrevo não escrevo para alguém, ou com o intuito de dizer qualquer coisa. Por vezes, escrevo apenas porque tenho de escrever, porque tenho coisas para dizer nem que seja apenas a mim próprio, e sinto a necessidade de lhes dar uma forma e um sentido. E, muitas vezes, nesse processo surpreendo-me a mim próprio com aquilo que faço.
A questão não é, creio, que eu me exponha demasiado ou de modo demasiado aberto. A questão é que não estou aqui a erigir uma fachada pública para projectar uma imagem junto de quem lê. Sou assim: contraditório, bipolar, procurando descobrir aquele equilíbrio difícil que nos permite atravessar a corda bamba sem correr riscos desnecessários. Já o perguntava o poeta Godinho: pode alguém ser quem não é?. Há muito tempo já que descobri que eu, pelo menos, não consigo ser aquilo que os outros querem à viva força que eu seja; e estas palavras são parte do processo de descobrir quem eu quero realmente ser.
OBRIGADO, MARIA
Não é quem se foi, quem se é, quem se será; não é o que se diz, o que se faz, o que se pensa. É como se vive, hoje. Porque só hoje existe agora.
E estou cansado de me esconder de mim mesmo; e sei que, contigo, terei a coragem de ter medo e, apesar disso, ir em frente.
E estou cansado de me esconder de mim mesmo; e sei que, contigo, terei a coragem de ter medo e, apesar disso, ir em frente.
NOVE EM CADA DEZ ESTRELAS DE CINEMA USAM O SABONETE LUX
Nove em cada dez e-mails que recebi nos últimos cinco dias são junk mail, trazem anexo um qualquer ficheiro contaminado por um vírus ou são avisos de servidores informando que uma mensagem que eu (na realidade não) enviei não chegou ao seu destinatário por estar contaminada.
NOVOS PARADIGMAS
Há algo de selvaticamente irónico no debate sobre o fundamentalismo que "A Paixão de Cristo" tem andado a provocar. Uns acusam o filme de anti-semitismo primário, outros criticam a sua violência insensível, outros chamam-lhe dogmático radical, outros ainda apelidam-no de pornográfico. Qualquer objecto que incomode tanta gente tão diferente em tão pouco tempo tem de certeza de ter alguma coisa que o recomende: no caso, o facto de ele nos confrontar com a nossa própria relação com toda uma série de princípios básicos, de valores morais e éticos que de repente se vêem transtornados. Jesus Cristo, diz-se, morreu pelos pecados da humanidade - Mel Gibson, literalmente, dá-nos a ver as chagas que esses pecados criam no seu corpo.
Aquilo que me parece mais genuinamente interessante no filme é, mais do que qualquer dogma fundamentalista religioso ou acusação a um ou outro grupo social, a dimensão política que o realizador empresta subterraneamente à Paixão: para Gibson, Jesus Cristo é um perigoso subversivo que ameaça o status quo, e a sua crucificação deve-se ao perigo que representa para aqueles cuja autoridade desafia ou põe em causa. Isto vai entroncar com o papel fundador que a mitologia narrativa bíblica representa em quase toda a literatura ocidental, pois os Evangelhos foram desde sempre uma matriz arquetípica sobre a qual se construiram todo o tipo de narrativas. Gibson não resiste, por isso, a apresentar o seu Cristo - na sequência da própria mitologia do cinema de aventuras - como um herói nobre que se sacrifica pelo bem maior.
Se a Paixão de Cristo é uma narrativa verídica ou ficcionada também não é indiferente ao caso - os crentes tenderão a aceitá-la como verdade histórica sem grandes contestações, os não-crentes condená-la-ão como metáfora ou símbolo de postura limitada e parcial. Em ambos os casos, o debate instala-se a partir do momento em que qualquer posição já não transporta uma opinião exclusivamente pessoal mas se faz eco e porta-voz de um campo, como se qualquer observador tivesse forçosamente que escolher estar de um dos lados da "barricada".
A seu modo, o filme de Mel Gibson é um espelho da determinação americana de devolver o mundo à dicotomia básica de tempos menos complexos: "ou estás comigo ou estás contra mim". A questão é que já não é possível reencontrar essa simplicidade branco-no-preto: o mundo mudou e os cambiantes multiplicaram-se. E todo o debate acaba por ser apenas a expressão da impotência de todos aqueles que começam a perceber que o mundo lhes escapa ao controle e se recusam a aceitar um futuro onde o seu lugar será forçosamente diferente e menor.
Está aí a ironia: objectos como "A Paixão de Cristo" são mudanças de paradigma das quais só muito mais tarde nos aperceberemos. E, no caso específico, uma seta incendiária que veio reacender a chama da religião e da sua real importância emocional no século XXI.
Aquilo que me parece mais genuinamente interessante no filme é, mais do que qualquer dogma fundamentalista religioso ou acusação a um ou outro grupo social, a dimensão política que o realizador empresta subterraneamente à Paixão: para Gibson, Jesus Cristo é um perigoso subversivo que ameaça o status quo, e a sua crucificação deve-se ao perigo que representa para aqueles cuja autoridade desafia ou põe em causa. Isto vai entroncar com o papel fundador que a mitologia narrativa bíblica representa em quase toda a literatura ocidental, pois os Evangelhos foram desde sempre uma matriz arquetípica sobre a qual se construiram todo o tipo de narrativas. Gibson não resiste, por isso, a apresentar o seu Cristo - na sequência da própria mitologia do cinema de aventuras - como um herói nobre que se sacrifica pelo bem maior.
Se a Paixão de Cristo é uma narrativa verídica ou ficcionada também não é indiferente ao caso - os crentes tenderão a aceitá-la como verdade histórica sem grandes contestações, os não-crentes condená-la-ão como metáfora ou símbolo de postura limitada e parcial. Em ambos os casos, o debate instala-se a partir do momento em que qualquer posição já não transporta uma opinião exclusivamente pessoal mas se faz eco e porta-voz de um campo, como se qualquer observador tivesse forçosamente que escolher estar de um dos lados da "barricada".
A seu modo, o filme de Mel Gibson é um espelho da determinação americana de devolver o mundo à dicotomia básica de tempos menos complexos: "ou estás comigo ou estás contra mim". A questão é que já não é possível reencontrar essa simplicidade branco-no-preto: o mundo mudou e os cambiantes multiplicaram-se. E todo o debate acaba por ser apenas a expressão da impotência de todos aqueles que começam a perceber que o mundo lhes escapa ao controle e se recusam a aceitar um futuro onde o seu lugar será forçosamente diferente e menor.
Está aí a ironia: objectos como "A Paixão de Cristo" são mudanças de paradigma das quais só muito mais tarde nos aperceberemos. E, no caso específico, uma seta incendiária que veio reacender a chama da religião e da sua real importância emocional no século XXI.
11 de março de 2004
MAIS TINAIGERES INCONSCIENTES E UMA REFLEXÃO SOBRE A INTOLERÂNCIA
As tias onde costumo almoçar ficam ao pé do Liceu Pedro Nunes. Não é invulgar que bandos de tinaigeres frequentadores de tal estabelecimento invadam a esplanada coberta para tomarem café, almoçarem qualquer coisa pouco saudável e matarem tempo entre aulas. Enquanto tentava ler hoje os jornais do dia frente a um belo arroz de pato, tive de suportar a ideia de humor de um tinaiger inconsciente com ar de beto, misto de surfista anos 80 facção admirador do Bryan Adams e streetwear contemporâneo facção admirador burguês do Eminem: atirar o isqueiro ao chão e pedir aos colegas que iam passando ou aos colegas sentados da mesa do outro lado da coxia para o apanharem, fingindo sempre que o tinha deixado cair, por entre risinhos palermas seus e do colega sentado à sua frente, cúmplice da brincadeira. Evidentemente só eles é que estavam a achar graça.
Apeteceu-me levantar-me calmamente e dar um pontapé no isqueiro para o mandar para longe e acabar com a brincadeira. Entretanto eles cansaram-se. Mas serviu-me para reflectir na minha absoluta intolerância para com qualquer pessoa normal abaixo dos 20 anos de idade convencida de ser a melhor coisa à face da Terra, o que, freudianamente, poderia ser explicado pela minha infância. Até ao 10º ano, passei as passinhas do Algarve às mãos de gente estúpida que se achava superior a mim só por ser mais alta, mais bonita ou mais in, apesar de (ou talvez por?) eu ser bem mais inteligente do que eles.
Mas há sinais exteriores que servem como barreiras: ser gordinho e usar óculos grossos sempre me tornaram num alvo preferencial. Até encontrar um sítio onde se possa pertencer, custa muito ser rejeitado apenas porque - e não há ninguém mais cruel ou mais insensível que uma criança ou um adolescente. Custa ainda mais saber-se que se é apenas tolerado, mas fingir que não se percebe porque não se quer ficar sozinho - e, na adolescência, a importância de pertencer a um grupo é fortíssima. Anos depois, percebem-se as asneiras que se fizeram em nome desse desejo.
Gosto de pensar que hoje não as repetiria; mas nem sempre tenho essa certeza.
Apeteceu-me levantar-me calmamente e dar um pontapé no isqueiro para o mandar para longe e acabar com a brincadeira. Entretanto eles cansaram-se. Mas serviu-me para reflectir na minha absoluta intolerância para com qualquer pessoa normal abaixo dos 20 anos de idade convencida de ser a melhor coisa à face da Terra, o que, freudianamente, poderia ser explicado pela minha infância. Até ao 10º ano, passei as passinhas do Algarve às mãos de gente estúpida que se achava superior a mim só por ser mais alta, mais bonita ou mais in, apesar de (ou talvez por?) eu ser bem mais inteligente do que eles.
Mas há sinais exteriores que servem como barreiras: ser gordinho e usar óculos grossos sempre me tornaram num alvo preferencial. Até encontrar um sítio onde se possa pertencer, custa muito ser rejeitado apenas porque - e não há ninguém mais cruel ou mais insensível que uma criança ou um adolescente. Custa ainda mais saber-se que se é apenas tolerado, mas fingir que não se percebe porque não se quer ficar sozinho - e, na adolescência, a importância de pertencer a um grupo é fortíssima. Anos depois, percebem-se as asneiras que se fizeram em nome desse desejo.
Gosto de pensar que hoje não as repetiria; mas nem sempre tenho essa certeza.
10 de março de 2004
FOGO QUE ARDE SEM SE VER
Há umas semanas vi o disco na Fnac e perguntei-me porque é que um "best of" com dez anos voltava aos escaparates das novidades. Deixei-o na memória e no outro dia fui buscá-lo para reouvir duas ou três canções que considero obras maiores do storytelling rock norte-americano. Hoje vi a campanha de televisão e percebi porque é que o disco estava em destaque.
Bob Seger nunca foi tão extraordinário como Bruce Springsteen, mas quando acertou - e acertou sempre pelo menos uma ou duas vezes por disco - conseguia convocar a energia mitológica e inteira do sonho americano, o heroísmo quotidiano de viver no dia-a-dia e transcender-se nos sonhos nocturnos. Em 1991 escreveu uma canção que é uma daquelas pedras-de-toque que definem, mais do que um compositor, um letrista de fulgurante poesia cinemática como só nas "streets of fire" americanas é possível existir. Gostava de escrever algo assim tão magnífico.
there's a hard moon risin' on the streets tonight
there's a reckless feeling in your heart as you head out tonight
through the concrete canyons to the midtown lights
where the latest neon promises are burning bright
past the open windows on the darker streets
where unseen angry voices flash and children cry
past the phony posers with their worn out lines
the tired new money dressed to the nines
the low life dealers with their bad designs
and the dilettantes with their open minds
you're out on the town
safe in the crowd
ready to go for the ride
searching the eyes
looking for clues
there's no way you can hide
the fire inside
well you've been to the clubs and the discothèques
where they deal one another from the bottom of a deck of promises
where the cautious loners and emotional wrecks
do an acting stretch as a way to hide the obvious
and the lights go down and they dance real close
and for one brief instant they pretend they're safe and warm
then the beat gets louder and the mood is gone
the darkness scatters as the lights flash on
they hold one another just a little too long
and they move apart and then move on
on to the street
on to the next
safe in the knowledge that they tried
faking the smile
hiding the pain
never satisfied
the fire inside
now the hour is late and he thinks you're asleep
you listen to him dress and you listen to him leave like you knew he would
you hear his car pull away in the street
then you move to the door and you lock it when he's gone for good
then you walk to the window and stare at the moon
riding high and lonesome through a starlit sky
and it comes to you how it all slips away
youth and beauty are gone one day
no matter what you dream or feel or say
it ends in dust and disarray
like wind on the plains
sand through the glass
waves rolling in with the tide
dreams die hard
and we watch them erode
but we cannot be denied
the fire inside.
Bob Seger nunca foi tão extraordinário como Bruce Springsteen, mas quando acertou - e acertou sempre pelo menos uma ou duas vezes por disco - conseguia convocar a energia mitológica e inteira do sonho americano, o heroísmo quotidiano de viver no dia-a-dia e transcender-se nos sonhos nocturnos. Em 1991 escreveu uma canção que é uma daquelas pedras-de-toque que definem, mais do que um compositor, um letrista de fulgurante poesia cinemática como só nas "streets of fire" americanas é possível existir. Gostava de escrever algo assim tão magnífico.
there's a hard moon risin' on the streets tonight
there's a reckless feeling in your heart as you head out tonight
through the concrete canyons to the midtown lights
where the latest neon promises are burning bright
past the open windows on the darker streets
where unseen angry voices flash and children cry
past the phony posers with their worn out lines
the tired new money dressed to the nines
the low life dealers with their bad designs
and the dilettantes with their open minds
you're out on the town
safe in the crowd
ready to go for the ride
searching the eyes
looking for clues
there's no way you can hide
the fire inside
well you've been to the clubs and the discothèques
where they deal one another from the bottom of a deck of promises
where the cautious loners and emotional wrecks
do an acting stretch as a way to hide the obvious
and the lights go down and they dance real close
and for one brief instant they pretend they're safe and warm
then the beat gets louder and the mood is gone
the darkness scatters as the lights flash on
they hold one another just a little too long
and they move apart and then move on
on to the street
on to the next
safe in the knowledge that they tried
faking the smile
hiding the pain
never satisfied
the fire inside
now the hour is late and he thinks you're asleep
you listen to him dress and you listen to him leave like you knew he would
you hear his car pull away in the street
then you move to the door and you lock it when he's gone for good
then you walk to the window and stare at the moon
riding high and lonesome through a starlit sky
and it comes to you how it all slips away
youth and beauty are gone one day
no matter what you dream or feel or say
it ends in dust and disarray
like wind on the plains
sand through the glass
waves rolling in with the tide
dreams die hard
and we watch them erode
but we cannot be denied
the fire inside.
SIM, EU JÁ VI A PAIXÃO
E se aquilo é violento então só posso partir do princípio que ninguém viu "Bad Boys II" ou vai regularmente ao Fantasporto, ao pé dos quais o mui polémico filme de Mel Gibson é tão violento como o "Zé Gato" o foi no seu tempo. Não é bonito de se ver, em termos de sangue e etc. (há uns quantos requintes de malvadez que eu acho desnecessários, mas nada de extraordinário), mas não é mais violento que a fita média corrente de Hollywood.
PARA CITAR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Todos os homens são maricas quando estão com gripe, ou, no meu caso, quando deram um jeito aos músculos do pescoço que impossibilita a existência de qualquer posição confortável a não ser a estática deitada de costas. É só inquietação inquietação.
9 de março de 2004
INQUIETAÇÃO
São quadras simples. Mas definem na perfeição o remoinho que me consome diariamente por dentro.
cá dentro inquietação, inquietação
é só inquietação, inquietação
porquê, não sei
porquê, não sei
porquê, não sei - ainda
há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
qualquer coisa que eu devia perceber
porquê, não sei
porquê, não sei
porquê, não sei - ainda
cá dentro inquietação, inquietação
é só inquietação, inquietação
porquê, não sei
mas sei
é que não sei ainda
há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
qualquer coisa que eu devia perceber
porquê, não sei
mas sei
é que não sei ainda
há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
qualquer coisa que eu devia resolver
porquê, não sei
mas sei
que essa coisa é que é linda.
- José Mário Branco, 1982
cá dentro inquietação, inquietação
é só inquietação, inquietação
porquê, não sei
porquê, não sei
porquê, não sei - ainda
há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
qualquer coisa que eu devia perceber
porquê, não sei
porquê, não sei
porquê, não sei - ainda
cá dentro inquietação, inquietação
é só inquietação, inquietação
porquê, não sei
mas sei
é que não sei ainda
há sempre qualquer coisa que está p'ra acontecer
qualquer coisa que eu devia perceber
porquê, não sei
mas sei
é que não sei ainda
há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
qualquer coisa que eu devia resolver
porquê, não sei
mas sei
que essa coisa é que é linda.
- José Mário Branco, 1982
TORTELLINI AL PESTO
Gosto de cozinhar. Mas só sei fazer massas. As minhas tentativas de sopa estão ainda longe do sucesso científico, embora já faça um creme de legumes aceitável. Grelhar um bife tem segredos que me escapam. Safo-me bem nas omeletes. Faço excelentes sanduíches (pão integral, salmão fumado ou atum de lata, fio de azeite para temperar, cebola picada ou cenoura ralada), mas isso não é exactamente digno de um mestre-cuca, antes de um improvisador preguiçoso.
Nas massas é que, pelos vistos, até já a improvisação resulta, a julgar pelos elogios da noite aos meus tortellini com um improvisado pesto caseiro de orégãos (o manjericão acabou e o azeite aromatizado também não era muito). (Receita: azeite, pinhões, alho e orégãos/manjericão para dentro do robot de cozinha; bater até se ter uma pasta; juntar queijo parmesão e misturar.) Estou orgulhoso do meu pesto de orégãos, muito embora seja de importância infinitesimal no grande quadro cósmico.
Nas massas é que, pelos vistos, até já a improvisação resulta, a julgar pelos elogios da noite aos meus tortellini com um improvisado pesto caseiro de orégãos (o manjericão acabou e o azeite aromatizado também não era muito). (Receita: azeite, pinhões, alho e orégãos/manjericão para dentro do robot de cozinha; bater até se ter uma pasta; juntar queijo parmesão e misturar.) Estou orgulhoso do meu pesto de orégãos, muito embora seja de importância infinitesimal no grande quadro cósmico.
7 de março de 2004
LOGBOOK EM MODO ADVANCED: VORSPRUNG DURCH TECHNIK
Advanced Open Water é o nome oficial do curso; cinco mergulhos num fim-de-semana para dar o "salto" que, na certificação internacional do grupo PADI, permite passar a mergulhar abaixo dos 18 metros e adquirir técnicas específicas para mergulhos de dificuldade ou exigência um pouco maiores que o trivial Open Water.
Na prática, é um curso de técnicas; técnicas específicas, de um nível mais exigente que o básico, que só a experiência - e, sobretudo, a calma e a descontracção - permitirá fixar e automatizar na cabeça do mergulhador. Orientação, busca e recuperação, flutuablidade, mergulho fundo (até aos 30m), mergulho em naufrágio: as técnicas foram afloradas ao longo do fim de semana, primeiro teoricamente e depois na prática, dentro de água - uma água muito fria, 13 graus lia o meu computador mas eu não acredito, tal o frio que rapei durante sábado e domingo.
Frio que me faz perguntar mais uma vez - porque carga d'água alguém há de querer atirar-se com uma garrafa de ar às costas para dentro do mar em dias de algum vento ou de balanço oceânico pacatamente insistente? Depois de vomitar o almoço de ontem para alimentar a (pouca) fauna ao largo da baía de Sesimbra, e de ter hoje alguns arranques de estômago vazio à saída do Riva Gurara, enquanto tremo por baixo do fato de duas peças de 7mm mais colete térmico de 3mm por baixo (raios! porque não optei eu pelo fato semi-seco?), é mesmo essa a pergunta: que raio estou eu aqui a fazer?
Não lhe tenho resposta, a não ser que estar debaixo de água pode ser mágico e que, naquela contínua procura do prazer que dê sentido à nossa vida, é uma experiência que gosto de ir repetindo regularmente. E estes cursos "duros" acabam por ser o mal menor que nos permite repeti-la a contento de todos.
Ansiedade, nervosismo, medo? Claro que sim; a minha natureza temerosa e abrigada do mundo não ajuda para a minha descontracção quando me é pedido que mergulhe a 27 metros num mar espesso de verde, visibilidade menor de um metro. Acima de tudo, é precisa a humildade de compreender que, apesar de ter feito francos progressos desde que retomei a actividade há alguns meses, ainda me falta aprender muito, ainda me falta controlar alguns reflexos de pânico quando dou com uma garrafa de patamar que não debita ar pelo regulador onde sou suposto estar a respirar (e que não era o meu); a humildade de perceber que há profundidades que não estão lá para brincadeira ou apenas para experiência (os 27 metros foram assustadores, pelo frio, pelo escuro, pelo nada arenoso que se vai infiltrando); a humildade de ter respeito ao mar e de perceber que somos simples visitantes que nos aventuramos onde não é o nosso lugar.
Medo? Sim, tive medo. E voltei a mergulhar, depois do susto, para provar - nem que fosse a mim próprio - que o posso dominar, se quiser, e para perceber que é um factor que tenho de afastar. Do mergulho - que pode ser uma metáfora de muitas outras coisas na minha vida.
Momentos bons? Sim, claro, evidentemente. Muitos. Pela primeira vez percebi o apelo que o naufrágio do Riva, à beira do Cabo Espichel, tem para os mergulhadores da zona - pelo meio das chapas, tubagens, rodas de leme, uma profusão de vida, um encontro novo a cada passo. De certa maneira, esse mergulho foi uma pequena vitória para mim, um trauma ultrapassado - mesmo que a ondulação à superfície e a profundidade mais exigente não me atraiam mesmo nada. A certeza de que, tecnicamente, já desço e subo na velocidade lenta exigida, controlando cada vez melhor a compensação - do colete e dos ouvidos. As lições que ficaram aprendidas - sobre os meus próprios limites, sobre aquilo que preciso de rever e trabalhar, sobre aquilo que, sem dar por isso, já consigo fazer intuitivamente. (Pôr o relógio a contar no princípio do mergulho é que ainda não é uma delas, raios!)
A trabalhar? Ficou um mergulho por fazer ao grupo (primeiro pelo vómito, depois pelo cansaço): a flutuabilidade, o mais "fácil" ou menos "exigente" dos cinco em termos de profundidade. Ficou a necessidade de trabalhar técnicas de emergência para situações de aperto, de interiorizar as técnicas de orientação para lá da teoria de livro, de me situar fisicamente no espaço agora tridimensional em que me movo sem gravidade. Ficou desfeito o mito das pulseirinhas homeopáticas que, ao fim de seis meses, não funcionaram no exacto momento em que eram mais precisas (talvez que o misto de cansaço físico e frio tenha anulado o seu efeito, talvez apenas a própria ondulação da água seja mais forte que o equilíbrio interno do meu corpo).
Ficou a certeza de que foi importante para mim ter passado por esta experiência, certamente a mais dura e exigente da minha carreira ainda neófita de mergulhador de água doce que nunca fez a tropa nem passou por grandes provas físicas.
A fauna não me parece ter ficado grandemente agradecida pela "refeição", mas aprendi a lição: hoje já fui de estômago vazio.
Na prática, é um curso de técnicas; técnicas específicas, de um nível mais exigente que o básico, que só a experiência - e, sobretudo, a calma e a descontracção - permitirá fixar e automatizar na cabeça do mergulhador. Orientação, busca e recuperação, flutuablidade, mergulho fundo (até aos 30m), mergulho em naufrágio: as técnicas foram afloradas ao longo do fim de semana, primeiro teoricamente e depois na prática, dentro de água - uma água muito fria, 13 graus lia o meu computador mas eu não acredito, tal o frio que rapei durante sábado e domingo.
Frio que me faz perguntar mais uma vez - porque carga d'água alguém há de querer atirar-se com uma garrafa de ar às costas para dentro do mar em dias de algum vento ou de balanço oceânico pacatamente insistente? Depois de vomitar o almoço de ontem para alimentar a (pouca) fauna ao largo da baía de Sesimbra, e de ter hoje alguns arranques de estômago vazio à saída do Riva Gurara, enquanto tremo por baixo do fato de duas peças de 7mm mais colete térmico de 3mm por baixo (raios! porque não optei eu pelo fato semi-seco?), é mesmo essa a pergunta: que raio estou eu aqui a fazer?
Não lhe tenho resposta, a não ser que estar debaixo de água pode ser mágico e que, naquela contínua procura do prazer que dê sentido à nossa vida, é uma experiência que gosto de ir repetindo regularmente. E estes cursos "duros" acabam por ser o mal menor que nos permite repeti-la a contento de todos.
Ansiedade, nervosismo, medo? Claro que sim; a minha natureza temerosa e abrigada do mundo não ajuda para a minha descontracção quando me é pedido que mergulhe a 27 metros num mar espesso de verde, visibilidade menor de um metro. Acima de tudo, é precisa a humildade de compreender que, apesar de ter feito francos progressos desde que retomei a actividade há alguns meses, ainda me falta aprender muito, ainda me falta controlar alguns reflexos de pânico quando dou com uma garrafa de patamar que não debita ar pelo regulador onde sou suposto estar a respirar (e que não era o meu); a humildade de perceber que há profundidades que não estão lá para brincadeira ou apenas para experiência (os 27 metros foram assustadores, pelo frio, pelo escuro, pelo nada arenoso que se vai infiltrando); a humildade de ter respeito ao mar e de perceber que somos simples visitantes que nos aventuramos onde não é o nosso lugar.
Medo? Sim, tive medo. E voltei a mergulhar, depois do susto, para provar - nem que fosse a mim próprio - que o posso dominar, se quiser, e para perceber que é um factor que tenho de afastar. Do mergulho - que pode ser uma metáfora de muitas outras coisas na minha vida.
Momentos bons? Sim, claro, evidentemente. Muitos. Pela primeira vez percebi o apelo que o naufrágio do Riva, à beira do Cabo Espichel, tem para os mergulhadores da zona - pelo meio das chapas, tubagens, rodas de leme, uma profusão de vida, um encontro novo a cada passo. De certa maneira, esse mergulho foi uma pequena vitória para mim, um trauma ultrapassado - mesmo que a ondulação à superfície e a profundidade mais exigente não me atraiam mesmo nada. A certeza de que, tecnicamente, já desço e subo na velocidade lenta exigida, controlando cada vez melhor a compensação - do colete e dos ouvidos. As lições que ficaram aprendidas - sobre os meus próprios limites, sobre aquilo que preciso de rever e trabalhar, sobre aquilo que, sem dar por isso, já consigo fazer intuitivamente. (Pôr o relógio a contar no princípio do mergulho é que ainda não é uma delas, raios!)
A trabalhar? Ficou um mergulho por fazer ao grupo (primeiro pelo vómito, depois pelo cansaço): a flutuabilidade, o mais "fácil" ou menos "exigente" dos cinco em termos de profundidade. Ficou a necessidade de trabalhar técnicas de emergência para situações de aperto, de interiorizar as técnicas de orientação para lá da teoria de livro, de me situar fisicamente no espaço agora tridimensional em que me movo sem gravidade. Ficou desfeito o mito das pulseirinhas homeopáticas que, ao fim de seis meses, não funcionaram no exacto momento em que eram mais precisas (talvez que o misto de cansaço físico e frio tenha anulado o seu efeito, talvez apenas a própria ondulação da água seja mais forte que o equilíbrio interno do meu corpo).
Ficou a certeza de que foi importante para mim ter passado por esta experiência, certamente a mais dura e exigente da minha carreira ainda neófita de mergulhador de água doce que nunca fez a tropa nem passou por grandes provas físicas.
A fauna não me parece ter ficado grandemente agradecida pela "refeição", mas aprendi a lição: hoje já fui de estômago vazio.
6 de março de 2004
PEQUENO TRAILER PARA O LOGBOOK EM MODO ADVANCED À LAIA DE TÍTULO DO 24 HORAS
Catástrofe ecológica ao largo de Sesimbra
Blogador enjoa de barco e vomita o almoço
Habitat natural irremediavelmente poluído
"A culpa foi da ondulação", defende-se o acusado
Habitantes aquáticos e associações ambientalistas ponderam possibilidade de processar o indivíduo
Blogador enjoa de barco e vomita o almoço
Habitat natural irremediavelmente poluído
"A culpa foi da ondulação", defende-se o acusado
Habitantes aquáticos e associações ambientalistas ponderam possibilidade de processar o indivíduo
5 de março de 2004
AINDA A PROPÓSITO DO STATUS QUO
Pedro Rolo Duarte gostava de ver um Santana Lopes da esquerda na corrida para Belém.
Meu Deus, se um Santana Lopes de direita já é o que é, como seria um de esquerda?!!!
Meu Deus, se um Santana Lopes de direita já é o que é, como seria um de esquerda?!!!
UMA QUESTÃO DE STATUS QUO
Pedro Rolo Duarte proclama hoje, na sua coluna do DNa, que uma candidatura presidencial de Pedro Santana Lopes seria uma aproximação da política portuguesa à realidade contemporânea de um Portugal mediatizado onde "quem não aparece esquece", e um abanão no estatuto do Presidente como uma figura distante, venerável, tutelar e incontornável.
Parece-me uma afirmação sensata - é verdade que qualquer português que se preze considera que um político novo não tem ainda "experiência" ou "peso" para ser um político "de confiança", muito embora a definição seja uma contradição nos termos - que só peca por uma questão: Santana Lopes gostaria de ser presidente para finalmente poder ser uma figura venerável, tutelar e incontornável, para que de uma vez por todas ninguém o pudesse ignorar. Ou seja, pelo exacto estatuto que Pedro Rolo Duarte acha que a sua candidatura iria quebrar ou pôr em causa.
No fundo, a ambição de qualquer revolucionário é tornar-se no novo status quo.
Parece-me uma afirmação sensata - é verdade que qualquer português que se preze considera que um político novo não tem ainda "experiência" ou "peso" para ser um político "de confiança", muito embora a definição seja uma contradição nos termos - que só peca por uma questão: Santana Lopes gostaria de ser presidente para finalmente poder ser uma figura venerável, tutelar e incontornável, para que de uma vez por todas ninguém o pudesse ignorar. Ou seja, pelo exacto estatuto que Pedro Rolo Duarte acha que a sua candidatura iria quebrar ou pôr em causa.
No fundo, a ambição de qualquer revolucionário é tornar-se no novo status quo.
PEQUENO ESCLARECIMENTO RELATIVO AO POST ANTERIOR
A razão pela qual não compreendo porque é que um festival chamado "Rock in Rio" tem no cartaz o Luís Represas nada tem a ver com eu achar que o artista em questão anda desde que saiu dos Trovante a fazer o mesmo disco com cada vez menos inspiração e está um chato de primeira.
Tem apenas a ver com o facto do Luís Represas, tal como a Ivete Sangalo ou o Alejandro Sanz, não ser um artista rock, e me parecer abusivo colocar um tal cartaz num festival que se define como "Rock in Rio".
Tem apenas a ver com o facto do Luís Represas, tal como a Ivete Sangalo ou o Alejandro Sanz, não ser um artista rock, e me parecer abusivo colocar um tal cartaz num festival que se define como "Rock in Rio".
4 de março de 2004
A PROPÓSITO DO ROCK IN RIO
Vi hoje, finalmente, naquele anúncio de página inteira do DN, o programa do Rock in Rio. A única coisa que se me apraz dizer é perguntar porque carga d'água os artistas portugueses continuam a aceitar serem tratados abaixo de cão pelos organizadores de festivais e aceitarem os slots mais inglórios. E isto nada tem a ver com a qualidade da música, apenas com o estatuto. Porque é que os Xutos & Pontapés "aceitam" serem os primeiros a tocar no dia 30, antes dos brasileiros Charlie Brown Jr., que nada dizem ao público português, e desse escarro chamado Evanescence, de que daqui a uns anos ninguém se lembrará? Porque é que Rui Veloso, que fez apenas um dos discos mais vendidos de sempre em Portugal e ainda hoje vende três platinas, toca antes de Ben Harper? Onde é que a Britney Spears ou o Alejandro Sanz são mais importantes e dizem mais ao público português que Veloso e os Xutos? Quando é que estes gajos começam a fazer valer o seu nome e dizem: "queremos ser nós os cabeças de cartaz e se não quiserem paciência"?
OK, agora outra: porque carga d'água é que um festival chamado "Rock in Rio" tem Luís Represas no cartaz?
Mas pronto, também é verdade que eles são brasileiros.
OK, agora outra: porque carga d'água é que um festival chamado "Rock in Rio" tem Luís Represas no cartaz?
Mas pronto, também é verdade que eles são brasileiros.
TINAIGERES INCONSCIENTES
A loja de conveniência onde me costumo abastecer de jornais (lamento, não fumo) tem um pequeno problema. Fica ao pé do liceu Pedro Nunes e, naqueles momentos mágicos conhecidos como "intervalo", enche de adolescentes pseudo-betos, imberbes tanto fisica como mentalmente e completamente inconscientes, que se vai empanturrar de gorduras poli-insaturadas e açúcares. Hoje, à hora de almoço, assisti aos responsáveis da loja pura e simplesmente expulsarem das instalações um grupinho particularmente ruidoso e obnóxio que estava a fazer um inexplicável escarcéu enquanto comiam um cachorro-quente (que passa por almoço nestes nossos dias McMenuizados). Convencidos de que tinham muita graça, e com aquela pose de futuro barão da economia que julga tudo ser-lhe desculpado.
Compreendo que a adolescência seja um estádio inescapável no crescimento do ser humano, mas nunca encontrei um adolescente cuja ideia de "comportamento social" não fosse conduciva à vontade de fazer uma manifestação frente à Assembleia (que, aliás, nem fica longe) para se promulgar uma qualquer lei limitando os adolescentes a uma medida de coacção que os obrigue a ficarem a) longe uns dos outros e b) longe dos adultos. Sim, eu sei, sou misantropo. Já me tinham dito.
Compreendo que a adolescência seja um estádio inescapável no crescimento do ser humano, mas nunca encontrei um adolescente cuja ideia de "comportamento social" não fosse conduciva à vontade de fazer uma manifestação frente à Assembleia (que, aliás, nem fica longe) para se promulgar uma qualquer lei limitando os adolescentes a uma medida de coacção que os obrigue a ficarem a) longe uns dos outros e b) longe dos adultos. Sim, eu sei, sou misantropo. Já me tinham dito.
3 de março de 2004
A FUNÇÃO GENÉTICA DO COMPLEXO DE CULPA JUDAICO-CRISTÃO
O complexo de culpa judaico-cristão está-nos na massa do sangue como um travão ético e moral para não escorregarmos para os caminhos do mal.
O problema é o mesmo de qualquer outro mecanismo embutido: se avaria, começa a funcionar a torto e a direito e, por causa disso, o travão também não nos deixa escorregar para os caminhos do bem, criando uma espécie de "feedback loop", prisioneiros da dúvida metódica e da indecisão recorrente.
O problema é o mesmo de qualquer outro mecanismo embutido: se avaria, começa a funcionar a torto e a direito e, por causa disso, o travão também não nos deixa escorregar para os caminhos do bem, criando uma espécie de "feedback loop", prisioneiros da dúvida metódica e da indecisão recorrente.
DESATENÇÕES DO SISTEMA DE TRANSPORTES DE LISBOA
Quero comprar um bilhete no Metro de Lisboa. Só tenho uma nota de vinte euros. A máquina não aceita notas tão altas. O guichet dos bilhetes está fechado. O cafézinho da estação não troca. Em pressa para chegar ao compromisso marcado, sem tempo para tentar fazer ao Metro o jeitinho de pagar com trocado, desafiei a sorte e entrei sem bilhete. (Uau! Um momento de loucura!) Como eu, quase toda a gente que entrou por aquele átrio ontem à tarde. Como querem eles convencer as pessoas que o sistema é imbatível e vai reduzir as "viagens gratuitas"?
BAILE DE MÁSCARAS
O que mais me incomoda no governo que temos neste momento não são as evidentes patadas que os seus ministros vão dando (comuns a qualquer ministro de qualquer governo), nem a sensação inescapável de que eles não sabem o que estão a fazer e estão a "navegar à vista" sem saberem muito bem para onde (o que também é verdade de qualquer governo, visto que, para além das célebres duas instruções seladas que qualquer responsável deixa para o seu sucessor, não existe nenhum Manual de Instruções para Governante Moderno).
O que mais me incomoda é a pose de barão que eles têm, como se tivessem nascido para serem ministros, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Um exemplo: ontem à noite, num dos noticiários, Figueiredo Lopes, numa cerimónia militar qualquer, falava como se tudo estivesse bem e vivêssemos no melhor dos mundos, como se não tivesse metido argoladas de espécie nenhuma, como se se sentisse confortável na sua pele. Como se estar ali fosse um direito seu de nascença que ninguém lhe pode retirar.
Sinto que a maior parte dos nossos governantes sentem-se confortáveis, talvez até demais, nos cargos que ocupam. E esse à-vontade projecta também uma outra imagem: a de que nós não percebemos nada disto e "eles é que sabem". (O que, aliás, se tem visto abundantemente.) E que é por isso que quem ali está são eles e não nós. (Pois, pois.)
É evidente que, na vida privada, podem ser excelentes pessoas, óptimos pais, maridos, esposas, filhos, mães, e que até no campo profissional que escolheram possam ser altas inteligências. É evidente que aceitar dirigir um país não é exactamente a mesma coisa que gerir um orçamento doméstico. É ainda mais evidente que todos nós erguemos fachadas sociais por uma questão de protecção, sobrevivência, desafio, o que se quiser - ou, como diz um amigo meu, estamos sempre a fazer bluff e a tentar que ninguém perceba que não somos assim tão bons.
O que me preocupa é que essa fechada de segurança, nos nossos governantes, não seja uma fachada. Eu acho que eles acreditam mesmo nisso - e, quando perdemos a capacidade de nos pôr em causa a nós próprios, de nos olharmos com o distanciamento necessário para perceber que também cometemos erros, e (como alguém em tempos disse) nunca nos enganamos e raramente temos dúvidas, está o caldo completamente entornado. Ainda por cima, não há nada de que Portugal mais goste do que de uma boa velha queda em desgraça. E este governo está a habilitar-se violentamente a uma dessas.
O que mais me incomoda é a pose de barão que eles têm, como se tivessem nascido para serem ministros, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Um exemplo: ontem à noite, num dos noticiários, Figueiredo Lopes, numa cerimónia militar qualquer, falava como se tudo estivesse bem e vivêssemos no melhor dos mundos, como se não tivesse metido argoladas de espécie nenhuma, como se se sentisse confortável na sua pele. Como se estar ali fosse um direito seu de nascença que ninguém lhe pode retirar.
Sinto que a maior parte dos nossos governantes sentem-se confortáveis, talvez até demais, nos cargos que ocupam. E esse à-vontade projecta também uma outra imagem: a de que nós não percebemos nada disto e "eles é que sabem". (O que, aliás, se tem visto abundantemente.) E que é por isso que quem ali está são eles e não nós. (Pois, pois.)
É evidente que, na vida privada, podem ser excelentes pessoas, óptimos pais, maridos, esposas, filhos, mães, e que até no campo profissional que escolheram possam ser altas inteligências. É evidente que aceitar dirigir um país não é exactamente a mesma coisa que gerir um orçamento doméstico. É ainda mais evidente que todos nós erguemos fachadas sociais por uma questão de protecção, sobrevivência, desafio, o que se quiser - ou, como diz um amigo meu, estamos sempre a fazer bluff e a tentar que ninguém perceba que não somos assim tão bons.
O que me preocupa é que essa fechada de segurança, nos nossos governantes, não seja uma fachada. Eu acho que eles acreditam mesmo nisso - e, quando perdemos a capacidade de nos pôr em causa a nós próprios, de nos olharmos com o distanciamento necessário para perceber que também cometemos erros, e (como alguém em tempos disse) nunca nos enganamos e raramente temos dúvidas, está o caldo completamente entornado. Ainda por cima, não há nada de que Portugal mais goste do que de uma boa velha queda em desgraça. E este governo está a habilitar-se violentamente a uma dessas.
À NOITE
À noite estou sozinho comigo mesmo; em busca daquilo que não sei onde vou encontrar nem sequer se vou encontrar, mas que sei que preciso de encontrar.
1 de março de 2004
SIM, É VERDADE
Há quem leve o telemóvel para o WC e o atenda durante as suas abluções em horário laboral.
FOTOS DO FOGO
Não te cheguei a dizer porque é que me lembrei de ti no concerto do Sérgio Godinho, este sábado. Ouvi esta canção e nela tudo o que transportas, e percebi que há coisas que nunca se poderão partilhar, que só no silêncio se podem exprimir.
chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
a guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p'ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso
olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
e assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
nesta outro foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom", proclamas
eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
é dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias
nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila
o meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas
chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nesta morada.
chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
a guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p'ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso
olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
e assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
nesta outro foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom", proclamas
eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
é dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias
nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila
o meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas
chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nesta morada.
FOI NOITE DE OSCARES. E DAÍ?
E pronto. Houve Oscares, mais uma vez. Mais uma vez houve os Oscares que se esperavam, com uma previsibilidade arrepiante. Tão arrepiante que parecia já estarem decididos desde as nomeações, até quando premeiam os "rebeldes" como Sean Penn ou Tim Robbins, só para provar que são capazes. Sofia ficou-se pelo prémio de consolação - toma lá miúda para te entreteres, volta daqui a uns anos quando estiveres mais crescidita. Mas nenhuma cerimónia que ignore desta maneira "Lost in Translation" e "O Grande Peixe" - criminosamente desprezado nas nomeações - e depois premeie Renée Zellweger (que, é verdade, vai bem em "Cold Mountain" - mas não tão bem assim) merece ser levada a sério. (E eu até gosto do "Senhor dos Anéis".)
O que vale é que we'll always have Tokyo.
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