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12 de março de 2004

NOVOS PARADIGMAS

Há algo de selvaticamente irónico no debate sobre o fundamentalismo que "A Paixão de Cristo" tem andado a provocar. Uns acusam o filme de anti-semitismo primário, outros criticam a sua violência insensível, outros chamam-lhe dogmático radical, outros ainda apelidam-no de pornográfico. Qualquer objecto que incomode tanta gente tão diferente em tão pouco tempo tem de certeza de ter alguma coisa que o recomende: no caso, o facto de ele nos confrontar com a nossa própria relação com toda uma série de princípios básicos, de valores morais e éticos que de repente se vêem transtornados. Jesus Cristo, diz-se, morreu pelos pecados da humanidade - Mel Gibson, literalmente, dá-nos a ver as chagas que esses pecados criam no seu corpo.

Aquilo que me parece mais genuinamente interessante no filme é, mais do que qualquer dogma fundamentalista religioso ou acusação a um ou outro grupo social, a dimensão política que o realizador empresta subterraneamente à Paixão: para Gibson, Jesus Cristo é um perigoso subversivo que ameaça o status quo, e a sua crucificação deve-se ao perigo que representa para aqueles cuja autoridade desafia ou põe em causa. Isto vai entroncar com o papel fundador que a mitologia narrativa bíblica representa em quase toda a literatura ocidental, pois os Evangelhos foram desde sempre uma matriz arquetípica sobre a qual se construiram todo o tipo de narrativas. Gibson não resiste, por isso, a apresentar o seu Cristo - na sequência da própria mitologia do cinema de aventuras - como um herói nobre que se sacrifica pelo bem maior.

Se a Paixão de Cristo é uma narrativa verídica ou ficcionada também não é indiferente ao caso - os crentes tenderão a aceitá-la como verdade histórica sem grandes contestações, os não-crentes condená-la-ão como metáfora ou símbolo de postura limitada e parcial. Em ambos os casos, o debate instala-se a partir do momento em que qualquer posição já não transporta uma opinião exclusivamente pessoal mas se faz eco e porta-voz de um campo, como se qualquer observador tivesse forçosamente que escolher estar de um dos lados da "barricada".

A seu modo, o filme de Mel Gibson é um espelho da determinação americana de devolver o mundo à dicotomia básica de tempos menos complexos: "ou estás comigo ou estás contra mim". A questão é que já não é possível reencontrar essa simplicidade branco-no-preto: o mundo mudou e os cambiantes multiplicaram-se. E todo o debate acaba por ser apenas a expressão da impotência de todos aqueles que começam a perceber que o mundo lhes escapa ao controle e se recusam a aceitar um futuro onde o seu lugar será forçosamente diferente e menor.

Está aí a ironia: objectos como "A Paixão de Cristo" são mudanças de paradigma das quais só muito mais tarde nos aperceberemos. E, no caso específico, uma seta incendiária que veio reacender a chama da religião e da sua real importância emocional no século XXI.

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