Pesquisa personalizada

31 de março de 2004

AH QUANTA MELANCOLIA

Essa história do fado ser "a canção nacional" não me aquece nem arrefece. Esse tipo de reconhecimento estatal ou estatutário é o primeiro passo para o acomodamento burguês, para a artrose, para a convencionalização - e a progressiva emasculação e estereotipização que acompanhou o percurso do fado desde a sua entronização como canção nacional apenas prova os riscos inerentes.

Quando Camané canta, contudo, tudo isso voa em estilhaços. Porque a sua voz funda e majestosa transporta os ecos de uma tradição cuja verdade se recusa teimosamente a morrer e procura novos rumos para se manifestar. Porque na sua voz passa uma vibração emocional que, não sendo exclusiva do fado, nele se transmite de um modo único. Porque a sua voz é, enfim, a prova de que o espírito do fado pode resistir sem se render nem ceder a modernismos bacocos ou demonstrações de virtuosismo.

Quando Camané canta - e, por Deus!, como ele canta magnificamente! - há algo de genuinamente nosso, português, telúrico, trágico, vindo do fundo dos tempos e que a eles se dirige de novo, que cala bem cá fundo. Ontem, no São Luiz, hoje e amanhã outra vez para os sortudos que têm bilhete, repete-se esse momento de uma magia austera e enfeitiçante, depurada à essência da sobriedade. Quando Camané canta, há enfim uma razão para termos orgulho de sermos portugueses - porque mais nenhum país tem Camané. Pouco interessa se o fado é a canção nacional, mas Camané é o cantor nacional.

Sem comentários: