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1 de março de 2004

FOTOS DO FOGO

Não te cheguei a dizer porque é que me lembrei de ti no concerto do Sérgio Godinho, este sábado. Ouvi esta canção e nela tudo o que transportas, e percebi que há coisas que nunca se poderão partilhar, que só no silêncio se podem exprimir.

chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

a guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p'ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
e assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato

nesta outro foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom", proclamas

eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
é dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias

nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila

o meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?

álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas

chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nesta morada.

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