Há já alguns anos que não vinha fazer estes dias inquietos e preguiçosos a "torrar" ao sol do Verão encadeante da província mais a sul. Já me esquecera do cansaço de guiar em auto-estrada, mesmo que os 270km desde Lisboa se façam agora num tiro (a minha última visita ao Algarve data, ainda, de antes do completar da A2).
No percurso, vejo as tricas habituais dos condutores portugueses: três carros entram nas proverbiais picardias de ultrapassagem, forçando-se mutuamente a velocidades insanes acima dos 140 à hora (e não estamos a falar de BMWs ou Mercedes topo de gama, a não ser talvez na imaginação de quem os conduz). Mais à frente, dois carros parados na berma e um agente da BT a multar o condutor, apanhado em plena infracção por um dos carros sem marcas da brigada; mais à frente ainda, um carro caído na vala separadora central, o carro da BT num sentido, o reboque no outro, os agentes a atravessarem a auto-estrada como quem atravessa a rua.
O calor cola-se ao corpo, parece tolher os movimentos e a capacidade de pensar. Apenas apetece ficar prostrado na cama, no sofá, na areia da praia (por entre mergulhos refrescantes na água), com um livro ou uma revista nas mãos. Não há muito mais a fazer, nesta pequenina praia de pescadores, uma língua de areia encaixada entre duas falésias à frente de um pequeno largo cheio de restaurantes e bares pró turista onde desembocam duas ruas paralelas de sentidos de trânsito opostos. Em ambas a paisagem é monótona: cafés, restaurantes, artesanato, imobiliárias, papelarias, cafés, restaurantes, imobiliárias, supermercados, sempre em casas de pedra caiadas de branco, algumas com telha algarvia cor de tijolo. Tudo igual a todas as vilas e aldeias turísticas do Algarve — de que viverá esta gente na estação baixa, quando não há magotes de turistas ingleses ou alemães vermelho-lagosta das queimaduras solares, emborcando caneca de cerveja atrás de caneca de cerveja, gastando sem problemas as libras ou os euros que recebem semanalmente em economias com níveis de vida mais desafogados que os nossos? Será que estes sítios "fecham" durante o Inverno?
Blog-notas de ideias soltas; post-it público de observações casuais; fragmentos em roda livre, fixados em âmbar. Eu, sem filtro. jorge.mourinha@gmail.com
Pesquisa personalizada
31 de julho de 2004
TÔ VOLTANDO
Sal em pó, destilado da água do mar que secou na minha pele ao sol algarvio do fim de tarde.
Famílias inglesas que não procuram outra coisa que não um ersatz do seu conforto de classe média baixa com sol e mar.
Fumo de incêndios (não tão) distantes a sujar o céu azul límpido e luminoso.
Seis dias de livros ao sol e jornais & revistas à sombra em que o único "cordão umbilical" ao mundo normal foram os noticiários da SIC às oito da noite. (E como é tão melhor mergulhar em Arturo Pérez-Reverte — raios. Elvis, acertaste em cheio no livro, "O Cemitério dos Barcos sem Nome" tem os meus fétiches literários todos, e ainda por cima bem geridos.)
Mil polaroides de tudo isto e de muito mais no Moleskine do Carvoeiro... next, on Roda Livre!
(mas não já, já, já; há uma refeição opípara para degustar antes)
Famílias inglesas que não procuram outra coisa que não um ersatz do seu conforto de classe média baixa com sol e mar.
Fumo de incêndios (não tão) distantes a sujar o céu azul límpido e luminoso.
Seis dias de livros ao sol e jornais & revistas à sombra em que o único "cordão umbilical" ao mundo normal foram os noticiários da SIC às oito da noite. (E como é tão melhor mergulhar em Arturo Pérez-Reverte — raios. Elvis, acertaste em cheio no livro, "O Cemitério dos Barcos sem Nome" tem os meus fétiches literários todos, e ainda por cima bem geridos.)
Mil polaroides de tudo isto e de muito mais no Moleskine do Carvoeiro... next, on Roda Livre!
(mas não já, já, já; há uma refeição opípara para degustar antes)
24 de julho de 2004
PEDIMOS DESCULPA POR ESTA INTERRUPÇÃO
A roda livre vai a olear por uns dias. Este post é o proverbial "vou ali e já venho", recomposto, recarregado e com a máquina cheia de polaroides. Até já.
LOGBOOK #15: A LINHA CLARA FRANCO-BELGA
Sesimbra: Ponta da Passagem, sábado 24 de Julho, 11h20: 14m, 45min, 18º C
Hoje o Riva devia estar bom: com o calor abafado que está, a água ao largo de Sesimbra parecia estanho, e as vezes que eu ouço o pessoal do centro a dizer que o Riva é uma questão de sorte do tempo deram para perceber que eles hoje achariam o dia ideal para ir ao naufrágio. Mas fomos antes à Ponta da Passagem, algumas milhas atrás, de profundidade mais em conta para o grupo reunido, da qual faziam parte dois franceses — o Patrick, "estacionado" em Portugal em trabalho durante alguns meses, a fazer o circuito dos centros de mergulho de Lisboa, e o François, monitor de férias cá com a esposa portuguesa que já mal fala a língua — e um belga — o Philippe, também de férias, que estava com medo da água fria pois só estava habituado a mergulhos em água quente (Martinica, Guadalupe, etc, viva a democratização do turismo de mergulho).
Parece que é difícil encontrar quem fale francês fluentemente e como o português é uma língua bárbara, fui erguido a "guia-intérprete" dos rapazes, que tiveram sorte com a temperatura da água (relativamente pouco fria para o que é habitual na zona — pudera, com o calor que estava) e pouco mais: apenas cardumes escondidos em reentrâncias das paredes rochosas, um ou outro nudibrânquio abandonado, a certa altura um peixinho em decomposição no fundo arenoso. E algas. Muitas algas. "C'était bien", disse o Patrick no fim. "Une petite promenade", disse o François — mais habituado a mergulhos mais exigentes como bom instrutor que é — no fim. "C'était super"; disse o Philippe que não mergulhava há seis meses. É bom saber o que os outros acham dos sítios que já conhecemos de cor.
Hoje o Riva devia estar bom: com o calor abafado que está, a água ao largo de Sesimbra parecia estanho, e as vezes que eu ouço o pessoal do centro a dizer que o Riva é uma questão de sorte do tempo deram para perceber que eles hoje achariam o dia ideal para ir ao naufrágio. Mas fomos antes à Ponta da Passagem, algumas milhas atrás, de profundidade mais em conta para o grupo reunido, da qual faziam parte dois franceses — o Patrick, "estacionado" em Portugal em trabalho durante alguns meses, a fazer o circuito dos centros de mergulho de Lisboa, e o François, monitor de férias cá com a esposa portuguesa que já mal fala a língua — e um belga — o Philippe, também de férias, que estava com medo da água fria pois só estava habituado a mergulhos em água quente (Martinica, Guadalupe, etc, viva a democratização do turismo de mergulho).
Parece que é difícil encontrar quem fale francês fluentemente e como o português é uma língua bárbara, fui erguido a "guia-intérprete" dos rapazes, que tiveram sorte com a temperatura da água (relativamente pouco fria para o que é habitual na zona — pudera, com o calor que estava) e pouco mais: apenas cardumes escondidos em reentrâncias das paredes rochosas, um ou outro nudibrânquio abandonado, a certa altura um peixinho em decomposição no fundo arenoso. E algas. Muitas algas. "C'était bien", disse o Patrick no fim. "Une petite promenade", disse o François — mais habituado a mergulhos mais exigentes como bom instrutor que é — no fim. "C'était super"; disse o Philippe que não mergulhava há seis meses. É bom saber o que os outros acham dos sítios que já conhecemos de cor.
23 de julho de 2004
EARTHQUAKE WEATHER
Santana Lopes debita banalidades preparadas pelos assessores sobre Carlos Paredes na Basílica da Estrela. Vítor Baía quer que Scolari lhe explique porque é que não fez falta na selecção de futebol. Será do calor?
INSOMNIAC (escrita automática)
chamemos-lhe insónia, se quisermos; inquietação também é possível (no sentido da "restlessness" inglesa);
é típico de alguns períodos: são várias semanas em que tudo se arrasta sem adiantar nem atrasar, de repente tudo se precipita e os referentes mudam de coordenadas,
escrever o quê, então, nesses dias em que de repente corremos de um lado para o outro a tentar deixar coisas prontas porque tem de ser, porque há responsabilidades a cumprir; e basta sentarmo-nos com um amigo e conversarmos dez minutos para as coisas regressarem todas à sua prioridade natural; mas depois, afinal, olhamos e vemos que não é por isso que as coisas que têm de ser se foram embora;
esta semana jantei com um amigo que não via há mais de um ano e que, neste período em que não nos vimos, decidiu "travar"; já não faz a vida profissional louca que fazia antes, percebeu por "motivos de força maior" que se andarmos a tentar andar tão depressa como o mundo mais tarde ou mais cedo o motor gripa por excesso de esforço; está com um ar muito mais feliz e saudável;
num comentário aqui há uns posts atrás alguém definia a opção entre o dinheiro e a alma; a coisa não se coloca exactamente nessa dicotomia radical — mais na opção entre sermos quem nós queremos ser e sermos quem esperam que nós sejamos;
andamos todos à procura de algo e quando o podemos ter encontrado fugimos; porque temos medo de estarmos enganados, ou porque temos medo de estar certos?
é típico de alguns períodos: são várias semanas em que tudo se arrasta sem adiantar nem atrasar, de repente tudo se precipita e os referentes mudam de coordenadas,
escrever o quê, então, nesses dias em que de repente corremos de um lado para o outro a tentar deixar coisas prontas porque tem de ser, porque há responsabilidades a cumprir; e basta sentarmo-nos com um amigo e conversarmos dez minutos para as coisas regressarem todas à sua prioridade natural; mas depois, afinal, olhamos e vemos que não é por isso que as coisas que têm de ser se foram embora;
esta semana jantei com um amigo que não via há mais de um ano e que, neste período em que não nos vimos, decidiu "travar"; já não faz a vida profissional louca que fazia antes, percebeu por "motivos de força maior" que se andarmos a tentar andar tão depressa como o mundo mais tarde ou mais cedo o motor gripa por excesso de esforço; está com um ar muito mais feliz e saudável;
num comentário aqui há uns posts atrás alguém definia a opção entre o dinheiro e a alma; a coisa não se coloca exactamente nessa dicotomia radical — mais na opção entre sermos quem nós queremos ser e sermos quem esperam que nós sejamos;
andamos todos à procura de algo e quando o podemos ter encontrado fugimos; porque temos medo de estarmos enganados, ou porque temos medo de estar certos?
21 de julho de 2004
NÃO TENTEM ISTO EM CASA #2
Seis horas a desarrumar o escritório, desfazer embalagens, montar estantes, trocar aparelhagens, livros e discos e outras minudências de lugar, e ainda assim deixar o escritório semi-incompleto já não é frustrante como era há uns anos atrás porque já não tenho idade para me auto-flagelar. Sempre foram sete estantes, é verdade. Também, ninguém me manda querer comprar tudo de uma só vez — mas é para estas coisas que serve o "subsídio de férias" e é nestas alturas de disponibilidade mental que estas tarefas necessárias se devem fazer.
Apesar de tudo, o pior (melhor?) ainda está para vir: (re)organizar a discoteca.
Apesar de tudo, o pior (melhor?) ainda está para vir: (re)organizar a discoteca.
20 de julho de 2004
NAO TENTEM ISTO EM CASA
Pequena adivinha do dia: como encaixar sete embalagens do IKEA com um comprimento de 2 metros cada e duas pessoas de estatura normal num Honda H-RV de duas portas sem perturbar a condução?
Pista: da próxima vez que me passar pela cabeça ir ao IKEA comprar estantes vou combinar com meia-dúzia de amigos que precisem de lá ir e alugamos uma camioneta para trazer tudo. Para condução radical já basta o quotidiano das radiais da capital.
Pista: da próxima vez que me passar pela cabeça ir ao IKEA comprar estantes vou combinar com meia-dúzia de amigos que precisem de lá ir e alugamos uma camioneta para trazer tudo. Para condução radical já basta o quotidiano das radiais da capital.
18 de julho de 2004
POLAROID: PRAIA DO GUINCHO
O menino terá três, quatro anos; brinca sózinho, de sandálias calçadas e T-shirt vestida para proteger do sol, sob o olhar embevecido da mãe que está de bikini debaixo do chapéu de so, na tira da areia que o separa do declive rochoso que leva aos balneários para surfistas embutidos perto da estalagem do Muxaxo. A certa altura, trava-se de amizade com um menino mais novo que ele, o que cria uma cena digna de uma tragédia grega quando os pais do outro menino vêm buscá-lo para irem comer. Nos cinco minutos seguintes, o outro menino, chamado Guilherme, recusa-se teimosamente a ir comer para continuar a brincar com o menino, que a mãe chama Diogo, muito embora os pais insistam teimosamente que o menino não se vai embora e também vai papar. O chavascal feito pela conversa dos pais é maior do que a birra das crianças. Alguns minutos mais tarde, já com o Guilherme & cª ausentes a almoçar, chega o pai do Diogo com a prancha de surf e, depois de despir o fato de borracha, leva o Diogo e a mãe para comer num dos bares de terraço.
Não faço ideia como terá ficado a história das brincadeiras entre o Guilherme e o Diogo porque entretanto chega um grupo espanhol mais ruidoso do que seria possível imaginar, composto por dois pais de trinta e muitos e quatro filhos na casa dos dez anos (onde estariam as mães?). Em vez de se sentarem na areia dourada, preferem sentar-se no declive rochoso, e mantêm-se vestidos e calçados, à excepção de dois dos rapazes, que ficam só de calções e correm para o mar com uma prancha de bodyboard. Durante os vinte minutos seguintes os dois rapazes espanhóis que ficam conversam ruidosamente, queixam-se da areia, comem baguetes que trouxeram de uma loja de fast food, discutem os estados da matéria, enquanto o pai grita "José Maria" para aqui e "Felix" para ali, para delícia de um casal deitado ao meu lado que contempla toda a pantomima com francos sorrisos de alegria. Quando saio da praia eles ainda para ali estão a fazer um chavascal impressionante num castelhano perfeito.
Não faço ideia como terá ficado a história das brincadeiras entre o Guilherme e o Diogo porque entretanto chega um grupo espanhol mais ruidoso do que seria possível imaginar, composto por dois pais de trinta e muitos e quatro filhos na casa dos dez anos (onde estariam as mães?). Em vez de se sentarem na areia dourada, preferem sentar-se no declive rochoso, e mantêm-se vestidos e calçados, à excepção de dois dos rapazes, que ficam só de calções e correm para o mar com uma prancha de bodyboard. Durante os vinte minutos seguintes os dois rapazes espanhóis que ficam conversam ruidosamente, queixam-se da areia, comem baguetes que trouxeram de uma loja de fast food, discutem os estados da matéria, enquanto o pai grita "José Maria" para aqui e "Felix" para ali, para delícia de um casal deitado ao meu lado que contempla toda a pantomima com francos sorrisos de alegria. Quando saio da praia eles ainda para ali estão a fazer um chavascal impressionante num castelhano perfeito.
NÃO SEJAS SILLY, NÃO SEJAS SILLY, NÃO SEJAS SILICONE
Portanto:
— Pedro Santana Lopes diz que procurará baixar os impostos e pensar nas famílias mais carenciadas;
— Paulo Portas compra uma guerra com Alberto João Jardim;
— João Soares vai ao congresso da Juventude Socialista porque acha que o futuro Secretário-Geral do PS deve mostrar ao seu apoio aos jovens;
— a capa de uma das revistas "people" que por aí pululam adianta que Cinha Jardim daria uma óptima esposa para o novo Primeiro-Ministro;
— um outdoor propagandeando revistas como a "Amiga" (da qual nunca tinha ouvido falar) é encimado pela expressão "Leia com Orgulho".
É oficial: entrámos na silly season. SOCORRO!
— Pedro Santana Lopes diz que procurará baixar os impostos e pensar nas famílias mais carenciadas;
— Paulo Portas compra uma guerra com Alberto João Jardim;
— João Soares vai ao congresso da Juventude Socialista porque acha que o futuro Secretário-Geral do PS deve mostrar ao seu apoio aos jovens;
— a capa de uma das revistas "people" que por aí pululam adianta que Cinha Jardim daria uma óptima esposa para o novo Primeiro-Ministro;
— um outdoor propagandeando revistas como a "Amiga" (da qual nunca tinha ouvido falar) é encimado pela expressão "Leia com Orgulho".
É oficial: entrámos na silly season. SOCORRO!
17 de julho de 2004
POLAROID: SALÃO PAIS
(dia da visita bimestral ao barbeiro para traumatizar a mãe)
Há sempre mais alguém no barbeiro quando entro para cortar o cabelo, mas hoje o sr. Pais, a filha e o jovem empregado estão sentados no banco corrido onde os clientes costumam esperar, a ler o jornal, a olhar para ontem. Quando eu entro, pelas dez e meia, sou o único cliente. É a filha que se levanta para me cortar o cabelo. Não há muito tempo (um ano? talvez mais?) o empregado estava na tropa e ouvia-o contar histórias de caserna ao sr. Pais enquanto cortavam o cabelo aos clientes; hoje uma barriga bem à portuguesa (de cerveja ou de fast food?) começa a ver-se por baixo do pólo azul-bebé. Sai para ir tomar café, volta pouco antes de eu sair.
A filha do sr. Pais pergunta-me o proverbial "como vai ser" e puxa da máquina para cortar o cabelo. Geralmente nunca leva mais de 15 minutos a fazê-lo; hoje leva 10 minutos se tanto (será que entrei com o cabelo mais curto do que habitualmente? será que ela levou menos tempo para poder voltar ao não-fazer-nada?). Nenhum cliente entra enquanto lá estou. Nem o rádio está aceso (costuma estar no Rádio Clube Português). Sente-se o Verão bairrista lisboeta, com os regulares ausentes de férias, o ritmo geral das coisas significativamente mais lento do que é habitual.
Há sempre mais alguém no barbeiro quando entro para cortar o cabelo, mas hoje o sr. Pais, a filha e o jovem empregado estão sentados no banco corrido onde os clientes costumam esperar, a ler o jornal, a olhar para ontem. Quando eu entro, pelas dez e meia, sou o único cliente. É a filha que se levanta para me cortar o cabelo. Não há muito tempo (um ano? talvez mais?) o empregado estava na tropa e ouvia-o contar histórias de caserna ao sr. Pais enquanto cortavam o cabelo aos clientes; hoje uma barriga bem à portuguesa (de cerveja ou de fast food?) começa a ver-se por baixo do pólo azul-bebé. Sai para ir tomar café, volta pouco antes de eu sair.
A filha do sr. Pais pergunta-me o proverbial "como vai ser" e puxa da máquina para cortar o cabelo. Geralmente nunca leva mais de 15 minutos a fazê-lo; hoje leva 10 minutos se tanto (será que entrei com o cabelo mais curto do que habitualmente? será que ela levou menos tempo para poder voltar ao não-fazer-nada?). Nenhum cliente entra enquanto lá estou. Nem o rádio está aceso (costuma estar no Rádio Clube Português). Sente-se o Verão bairrista lisboeta, com os regulares ausentes de férias, o ritmo geral das coisas significativamente mais lento do que é habitual.
16 de julho de 2004
PENSAR O CINEMA
Numa dicotomia básica e evidentemente redutora, costumo diferenciar o raciocínio anglo-americano do raciocínio francês ou francófono pela construção linguística. À imagem da língua, a expressão do pensamento teórico inglês (ou americano) é de uma simplicidade flexível e pragmática, directa ao assunto, de estilo que expressa facilmente a substância, enquanto que a expressão do pensamento teórico francês se perde nos rococós rebuscados e elegantes de uma língua onde a função é tão importante quanto a forma. Basta, aliás, ver como a noção de "crítica cinematográfica" difere de um universo para o outro; ou como a ideia de "cinema de autor" parece quase ser um exclusivo francês.
Isto tudo a propósito de uma simpática e, por uma vez, particularmente pragmática antologia publicada há uns anos pelos Cahiers du Cinéma, intitulada "La Politique des Auteurs — Les Textes". Como toda a gente sabe, o principal contributo francês para a crítica cinematográfica foi a "política dos autores" lançada naquela revista em finais dos anos 50 por uma geração de críticos que ergueram a apreciação cinematográfica ao nível do ensaísmo universitário: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer. Essa mesma geração (a par de contemporâneos como Alain Resnais ou Claude Chabrol) viria a distinguir-se no cinema sob o genérico Nouvelle Vague — praticantes de um "cinema novo" que, paradoxalmente, nada ou muito pouco tinha a ver na prática com os autores e com o cinema americano que os inspirara, e que procurava trilhar novos caminhos.
A frescura da Nouvelle Vague acabaria por contagiar grande parte do cinema mundial não-americano e a política dos autores, estabelecendo o realizador como autor principal do filme, onde se reconheceriam marcas e sinais de um universo próprio que se sobrepunha a quaisquer condicionantes de produção, tornar-se-ia numa espécie de dogma crítico, levando à criação da expressão "cinema de autor" para designar a produção cinematográfica não-"mainstream" ou com pretensões a arte mais elevada e nobre.
O interessante do pequeno volume de bolso onde se reunem alguns dos textos teóricos mais estimulantes publicados nos Cahiers du Cinéma entre 1953 e 1997 e assinados pelos críticos que se foram revezando na veneranda revista é verificar como a própria teoria da política dos autores sofreu alterações com o correr do tempo; depois da sua formulação nos anos 50 assistimos à sua dogmatização, à sua transformação em instituição de referência (e ao nascimento de uma oposição interna nos anos 60 onde a "política dos autores" é renegada pela nova geração de críticos como tendo-se tornado no sistema contra a qual foi criada), e finalmente à sua entronização como modo de linguagem crítica e ao debate sobre a sua relevância contemporânea.
Particularmente notável a esse nível é um ensaio de Olivier Assayas (mais tarde também ele realizador e, actualmente, ex-marido de Maggie Cheung), publicado em 1983 sob o título "Que d'Auteurs, Que d'Auteurs! Sur une Politique" ("Tantos Autores, Tantos Autores! Sobre uma Política" em tradução livre minha), onde Assayas explora elegantemente as contradições que o tempo foi revelando na teoria dos autores, nomeadamente o efeito perverso de circuito fechado que ela veio criar nos cineastas.
De facto, aquilo que nasceu como necessidade de emprestar estatuto a uma arte menor erguendo-a ao nível das artes clássicas como a literatura ou a pintura e como reconhecimento da existência de sensibilidades e qualidades peculiares e específicas dentro de um sistema de produção estandardizado, acabou por criar uma lógica perversa na qual o cineasta se reivindica automaticamente autor e lançar um sistema de produção alternativa em circuito fechado, definindo o célebre "cinema de autor" como um objecto incapaz de comunicar com um público que não aquele que se revê nele.
De uma presciência rara (sobretudo quando se repara que foi escrito há 20 anos), o ensaio de Assayas põe o dedo na ferida de muita da produção cinematográfica europeia contemporânea e revela as limitações de uma política originalmente bem-intencionada que o tempo se encarregou de cristalizar num conjunto de regras de seguimento obrigatório para quem quer ser reconhecido como cineasta. O cinema português quase todo, e não só, continua a segui-las fielmente, incapaz de perceber que novos tempos exigem novos modos de ver e pensar o cinema.
O que este volumezinho prova é que é sensato rever as nossas posições ao longo dos tempos, para garantir que não ficamos presos em passados poeirentos nem fechamos os olhos a futuros intrigantes.
Isto tudo a propósito de uma simpática e, por uma vez, particularmente pragmática antologia publicada há uns anos pelos Cahiers du Cinéma, intitulada "La Politique des Auteurs — Les Textes". Como toda a gente sabe, o principal contributo francês para a crítica cinematográfica foi a "política dos autores" lançada naquela revista em finais dos anos 50 por uma geração de críticos que ergueram a apreciação cinematográfica ao nível do ensaísmo universitário: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer. Essa mesma geração (a par de contemporâneos como Alain Resnais ou Claude Chabrol) viria a distinguir-se no cinema sob o genérico Nouvelle Vague — praticantes de um "cinema novo" que, paradoxalmente, nada ou muito pouco tinha a ver na prática com os autores e com o cinema americano que os inspirara, e que procurava trilhar novos caminhos.
A frescura da Nouvelle Vague acabaria por contagiar grande parte do cinema mundial não-americano e a política dos autores, estabelecendo o realizador como autor principal do filme, onde se reconheceriam marcas e sinais de um universo próprio que se sobrepunha a quaisquer condicionantes de produção, tornar-se-ia numa espécie de dogma crítico, levando à criação da expressão "cinema de autor" para designar a produção cinematográfica não-"mainstream" ou com pretensões a arte mais elevada e nobre.
O interessante do pequeno volume de bolso onde se reunem alguns dos textos teóricos mais estimulantes publicados nos Cahiers du Cinéma entre 1953 e 1997 e assinados pelos críticos que se foram revezando na veneranda revista é verificar como a própria teoria da política dos autores sofreu alterações com o correr do tempo; depois da sua formulação nos anos 50 assistimos à sua dogmatização, à sua transformação em instituição de referência (e ao nascimento de uma oposição interna nos anos 60 onde a "política dos autores" é renegada pela nova geração de críticos como tendo-se tornado no sistema contra a qual foi criada), e finalmente à sua entronização como modo de linguagem crítica e ao debate sobre a sua relevância contemporânea.
Particularmente notável a esse nível é um ensaio de Olivier Assayas (mais tarde também ele realizador e, actualmente, ex-marido de Maggie Cheung), publicado em 1983 sob o título "Que d'Auteurs, Que d'Auteurs! Sur une Politique" ("Tantos Autores, Tantos Autores! Sobre uma Política" em tradução livre minha), onde Assayas explora elegantemente as contradições que o tempo foi revelando na teoria dos autores, nomeadamente o efeito perverso de circuito fechado que ela veio criar nos cineastas.
De facto, aquilo que nasceu como necessidade de emprestar estatuto a uma arte menor erguendo-a ao nível das artes clássicas como a literatura ou a pintura e como reconhecimento da existência de sensibilidades e qualidades peculiares e específicas dentro de um sistema de produção estandardizado, acabou por criar uma lógica perversa na qual o cineasta se reivindica automaticamente autor e lançar um sistema de produção alternativa em circuito fechado, definindo o célebre "cinema de autor" como um objecto incapaz de comunicar com um público que não aquele que se revê nele.
De uma presciência rara (sobretudo quando se repara que foi escrito há 20 anos), o ensaio de Assayas põe o dedo na ferida de muita da produção cinematográfica europeia contemporânea e revela as limitações de uma política originalmente bem-intencionada que o tempo se encarregou de cristalizar num conjunto de regras de seguimento obrigatório para quem quer ser reconhecido como cineasta. O cinema português quase todo, e não só, continua a segui-las fielmente, incapaz de perceber que novos tempos exigem novos modos de ver e pensar o cinema.
O que este volumezinho prova é que é sensato rever as nossas posições ao longo dos tempos, para garantir que não ficamos presos em passados poeirentos nem fechamos os olhos a futuros intrigantes.
15 de julho de 2004
POLAROID: REMEMBER MUSIC FOREVER
A jovem está sentada à minha frente na carruagem de metro em direcção ao Marquês de Pombal. Loura, cabelos compridos, com o rosto luzidio e circular que caracteriza um tipo eslavo ou então suburbano de origem rural. Tem um saco de papel suspenso da mão, entre as pernas. Calça sandálias e veste uma T-shirt branca com a frase "Remember Music Forever" escrita à mão; por cima de algumas letras estão cosidos quadrados de pano que têm retratos de artistas do momento, a preto e branco e cinzento, com um tratamento tipo lápis de cera claramente feito em computador; reconheço Eminem e Britney Spears (ou será Celine Dion? O efeito não permite distinguir).
Passa um vendedor da Cais, vestido com a tradicional T-shirt e boné amarelo. Não fala, mostra a revista aos passageiros a ver se eles querem. Faço sinal que não, a senhora que viaja ao lado da jovem também, mas a jovem acena com a cabeça, pega na revista que ele estende, pergunta quanto é (o vendedor diz-lhe o preço com os dedos da mão) e folheia-a com alguma atenção. No fim devolve-a ao vendedor, dizendo "não, obrigado". O vendedor estende-lha de novo e a jovem, levantando-se enquanto o comboio abranda e entra na próxima estação, diz-lhe: "não, obrigado. Não traz nada de jeito."
Na mesma estação em que a jovem sai, entra uma senhora que folheia uma revista feminina, de pequeno formato e cores garridas, devorando avidamente um artigo do qual apenas leio os títulos: "Marlon Brando - Sex-Symbol Morreu na Miséria".
Passa um vendedor da Cais, vestido com a tradicional T-shirt e boné amarelo. Não fala, mostra a revista aos passageiros a ver se eles querem. Faço sinal que não, a senhora que viaja ao lado da jovem também, mas a jovem acena com a cabeça, pega na revista que ele estende, pergunta quanto é (o vendedor diz-lhe o preço com os dedos da mão) e folheia-a com alguma atenção. No fim devolve-a ao vendedor, dizendo "não, obrigado". O vendedor estende-lha de novo e a jovem, levantando-se enquanto o comboio abranda e entra na próxima estação, diz-lhe: "não, obrigado. Não traz nada de jeito."
Na mesma estação em que a jovem sai, entra uma senhora que folheia uma revista feminina, de pequeno formato e cores garridas, devorando avidamente um artigo do qual apenas leio os títulos: "Marlon Brando - Sex-Symbol Morreu na Miséria".
14 de julho de 2004
I DON'T LIKE WEDNESDAYS
(é mentira, a quarta-feira sempre foi o meu dia preferido da semana por estar no meio)
Detesto os dias em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária ou da minha educação pessoal enquanto ser humano.
Os únicos dias que detesto mais do que esses são aqueles em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária ou da minha educação pessoal enquanto ser humano, quando tinha para fazer coisas que contribuiam para um desses dois objectivos.
Contudo, quem me garante que os dias em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária não contribuiram para a evolução da minha educação pessoal enquanto ser humano?
Detesto os dias em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária ou da minha educação pessoal enquanto ser humano.
Os únicos dias que detesto mais do que esses são aqueles em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária ou da minha educação pessoal enquanto ser humano, quando tinha para fazer coisas que contribuiam para um desses dois objectivos.
Contudo, quem me garante que os dias em que sinto que perdi tempo a fazer coisas que não contribuem em nada para a evolução da minha conta bancária não contribuiram para a evolução da minha educação pessoal enquanto ser humano?
13 de julho de 2004
DO THE SASHIMI
O meu amigo António, que foi quem primeiro me quis converter às delícias da comida japonesa, gosta de contar a história daquela vez em que, num restaurante japonês em Paris, pediu sushi e a empregada achou por bem avisá-lo do conteúdo do prato: "poisson clu! poisson clu!". A parte mais divertida para o leigo como eu foi perceber que o "peixe cru" não é tanto o sushi — que ainda assim é um prato preparado, já que o "peixe cru" vem envolvido num rolo de arroz fechado com uma fina fatia de alga — mas sim o sashimi, que é um pequeno filete do peixe cru propriamente dito, cortado com infinita delicadeza para se poder levar um pedaço inteiro à boca sem alarvar, sem nenhuma fuga possível à estranheza do objecto: é mesmo peixe, é mesmo cru, e não há nada que o esconda.
A minha primeira experiência mais séria, num restaurante japonês digno, foi-me proporcionada pelo meu estimado amigo e vizinho Paulo, e embora o sushi não me tenha convencido grandemente e os pauzinhos levem uma certa habituação a usar, logo à primeira fiquei rendido ao paladar delicadíssimo do sashimi. Hoje, repetindo o manjar com a minha querida amiga Helena, voltei a salivar com o tenríssimo filete de peixe (não exactamente) cru (porque marinado previamente), que depois de devidamente passado pelo salgado molho de soja onde se diluiu previamente um pouco de wasabi (a pirómana mostarda verde pouco recomendada a paladares sensíveis), quase se derrete na boca.
É um prazer gustativo como há poucos, misto de simplicidade zen em levitação e requinte gastronómico de luxo. Pena que os restaurantes japoneses sejam estupidamente caros.
A minha primeira experiência mais séria, num restaurante japonês digno, foi-me proporcionada pelo meu estimado amigo e vizinho Paulo, e embora o sushi não me tenha convencido grandemente e os pauzinhos levem uma certa habituação a usar, logo à primeira fiquei rendido ao paladar delicadíssimo do sashimi. Hoje, repetindo o manjar com a minha querida amiga Helena, voltei a salivar com o tenríssimo filete de peixe (não exactamente) cru (porque marinado previamente), que depois de devidamente passado pelo salgado molho de soja onde se diluiu previamente um pouco de wasabi (a pirómana mostarda verde pouco recomendada a paladares sensíveis), quase se derrete na boca.
É um prazer gustativo como há poucos, misto de simplicidade zen em levitação e requinte gastronómico de luxo. Pena que os restaurantes japoneses sejam estupidamente caros.
BROKEN ENGLISH
A expressão não foi inventada por Marianne Faithfull que dela fez o título de um álbum em 1979 e define, latamente, o inglês "desastrado" ou incorrecto falado por um não-nativo que domina a língua com falhas. É uma expressão feliz, porque define sem preconceitos o caminho a percorrer entre compreender e comunicar — o "broken" está lá a sugerir que algo se perdeu ou se quebrou durante o processo de comunicação, sem que isso a interrompa necessariamente. Quando ouço, por exemplo, Mariza a falar inglês no DVD da Union Chapel agora editado, a construção de algumas frases denuncia que a cantora não domina o inglês na perfeição, mas a correcção global da gramática e o contexto compensam as dificuldades de comunicação que uma ou outra palavra usada incorrectamente possam ter, explicando na perfeição o conceito de "broken English".
Alguns bons exemplos de "broken English" podem ser tirados do japonês (cf "Lost in Translation" e o delicioso momento "lip my stocking! lip my stocking!"), ou, por exemplo, do letreiro luminoso de um dos clubes nocturnos da avenida Duque de Loulé, em Lisboa, que anuncia em néon "Super Maybe Club" — definição que me parece superiormente nipónica de tão incompreensivelmente luminosa e perfeita que é.
Estejam à vontade para sugerir mais.
Alguns bons exemplos de "broken English" podem ser tirados do japonês (cf "Lost in Translation" e o delicioso momento "lip my stocking! lip my stocking!"), ou, por exemplo, do letreiro luminoso de um dos clubes nocturnos da avenida Duque de Loulé, em Lisboa, que anuncia em néon "Super Maybe Club" — definição que me parece superiormente nipónica de tão incompreensivelmente luminosa e perfeita que é.
Estejam à vontade para sugerir mais.
12 de julho de 2004
INCONTINÊNCIAS E MARCAÇÕES CERRADAS
Nunca pensei dizer isto, mas Francisco Louçã esteve bem ao dizer que o Bloco de Esquerda vai apresentar uma moção de censura ao governo que aí vem. E esteve bem porque relembrou publicamente que o importante agora, para os partidos de esquerda, é deixar de diabolizar Jorge Sampaio, como aconteceu durante o fim-de-semana, e começar a fazer oposição ao governo que defendem ser ilegítimo; é fazer "marcação cerrada", como se Santana Lopes fosse Wayne Rooney ou Nuno Gomes em perigosa oportunidade de marcar golo no meio-campo adversário.
Confesso que a parte que mais me incomodou nas últimas 72 horas políticas foi precisamente essa estupefacção perante a decisão de Sampaio, essa sensação de que Sampaio teria traído o clube de esquerda a que era suposto pertencer (mesmo sendo o mais alto magistrado da nação e, por inerência do cargo, alheio a posições de simpatia ou polarizações políticas), cristalizada nos comentários despropositados de Ana Gomes (pode-se louvar a frontalidade sincera da opinião, mas a gaffe é preocupante pela atitude "ela-não-se-enxerga" que dá a entender; é o tipo de coisa que se esperaria de um político populista, não de uma diplomata com a experiência e o crédito de Ana Gomes).
A esquerda ocupou o essencial do fim-de-semana a renegar Sampaio, em vez de começar desde logo a posicionar-se para garantir que, quando as eleições chegarem (daqui a dois anos, ou antes), estará em condições de disputar uma maioria eleitoral legislativa (que, no fundo, é o seu objectivo desde que o PSD subiu ao poder). Em vez disso, o PS acaba de se estilhaçar numa busca de candidatos à sucessão de Ferro Rodrigues; quando o importante seria ter um PS forte e unido para se credibilizar como oposição ao governo, o partido acaba de desviar as suas atenções para a escolha de um novo líder. Custa até a acreditar que Ferro Rodrigues, que a tanto resistiu estoicamente, escolhesse logo a altura em que o partido precisaria de ter uma fachada unida para abandonar o barco (e, numa opinião estritamente pessoal, perdesse toda a moralidade para criticar o que foi definido como a "fuga" de Durão Barroso), considerando que a opção pela continuidade de Sampaio era uma derrota sua pessoal — o que implica que Ferro estaria, assim, a assumir-se como líder (que não era) de uma esquerda unida pelas antecipadas. (E não me estou a esquecer que a esquerda entendida num sentido lato e global não se reduz ao PS, mas convenhamos que o PCP e o BE não são por si só alternativas elegíveis a um governo PSD/PP.)
Ou seja, a sensação que tudo isto me dá é que a esquerda se decidiu a eleger Sampaio como seu "inimigo", quando o verdadeiro "inimigo" é outro. Não me parece que diabolizar Jorge Sampaio sirva os interesses de quem quer que seja, a não ser os da direita; e, neste momento, Portugal, como qualquer democracia parlamentar, precisa de uma oposição segura e forte como "fiel da balança" de um governo que se começa já a adivinhar impopular. Não creio que seja essa a oposição que agora temos. E parece-me que não é para amanhã que ela se vai endireitar.
Confesso que a parte que mais me incomodou nas últimas 72 horas políticas foi precisamente essa estupefacção perante a decisão de Sampaio, essa sensação de que Sampaio teria traído o clube de esquerda a que era suposto pertencer (mesmo sendo o mais alto magistrado da nação e, por inerência do cargo, alheio a posições de simpatia ou polarizações políticas), cristalizada nos comentários despropositados de Ana Gomes (pode-se louvar a frontalidade sincera da opinião, mas a gaffe é preocupante pela atitude "ela-não-se-enxerga" que dá a entender; é o tipo de coisa que se esperaria de um político populista, não de uma diplomata com a experiência e o crédito de Ana Gomes).
A esquerda ocupou o essencial do fim-de-semana a renegar Sampaio, em vez de começar desde logo a posicionar-se para garantir que, quando as eleições chegarem (daqui a dois anos, ou antes), estará em condições de disputar uma maioria eleitoral legislativa (que, no fundo, é o seu objectivo desde que o PSD subiu ao poder). Em vez disso, o PS acaba de se estilhaçar numa busca de candidatos à sucessão de Ferro Rodrigues; quando o importante seria ter um PS forte e unido para se credibilizar como oposição ao governo, o partido acaba de desviar as suas atenções para a escolha de um novo líder. Custa até a acreditar que Ferro Rodrigues, que a tanto resistiu estoicamente, escolhesse logo a altura em que o partido precisaria de ter uma fachada unida para abandonar o barco (e, numa opinião estritamente pessoal, perdesse toda a moralidade para criticar o que foi definido como a "fuga" de Durão Barroso), considerando que a opção pela continuidade de Sampaio era uma derrota sua pessoal — o que implica que Ferro estaria, assim, a assumir-se como líder (que não era) de uma esquerda unida pelas antecipadas. (E não me estou a esquecer que a esquerda entendida num sentido lato e global não se reduz ao PS, mas convenhamos que o PCP e o BE não são por si só alternativas elegíveis a um governo PSD/PP.)
Ou seja, a sensação que tudo isto me dá é que a esquerda se decidiu a eleger Sampaio como seu "inimigo", quando o verdadeiro "inimigo" é outro. Não me parece que diabolizar Jorge Sampaio sirva os interesses de quem quer que seja, a não ser os da direita; e, neste momento, Portugal, como qualquer democracia parlamentar, precisa de uma oposição segura e forte como "fiel da balança" de um governo que se começa já a adivinhar impopular. Não creio que seja essa a oposição que agora temos. E parece-me que não é para amanhã que ela se vai endireitar.
11 de julho de 2004
MINIMALISMO SONORO
Conheço várias pessoas capazes de dormirem em qualquer sítio, qualquer que seja o ruído que os rodeia. O meu irmão, por exemplo, é perfeitamente capaz de ressonar a sono solto no cinema, mesmo com o Dolby Stereo a plenos pulmões. Eu, pelo contrário, sou como o meu pai e não consigo adormecer se houver algum ruído persistente irritante — como, ontem, o ruído do frigorífico combinado arraçado de arca congeladora em necessária descongelação, das gotas de água do gelo derretido a pingar para o cesto de recolha, dos blocos de gelo que a espaços se desprendiam das paredes ou das prateleiras do congelador e caíam sonoramente na prateleira de baixo antes de se derreterem em direcção ao cesto. Entre a meia-noite e as três da manhã, dormir foi possível apenas intermitentemente, inquietamente, com a insistência da goteira a invadir com uma qualquer urgência indecifrável a necessidade de dormir, o bloco de gelo pontual a sobressaltar o torpor sonolento. Depois, o cansaço acumulado lá venceu, se bem que a muito custo, o minimalismo repetitivo das leis da gravidade e da térmica aplicadas a um frigorífico que necessitava de ser descongelado já há uns valentes meses.
10 de julho de 2004
MARIZA DOS LIMÕES
A minha mãe gosta muito de Fado e tem ideias muito precisas sobre o que é que o género deve ser, quem é fadista e quem não é, enfim, essas coisas: e sempre me disse que achava que a Mariza cantava muito bem e de todas as fadistas novas era a que melhor voz tinha (no que estamos de acordo).
Hoje mostrei à minha mãe um pouco do DVD da Mariza que saiu há pouco. Enquanto ela ouvia, o meu pai entrou na sala, ouviu um pouco, fez um ar enjoado e disse "parece que lhe estão a tirar um dente". A minha mãe só dizia "subiu-lhe à cabeça. Ela não era assim quando apareceu" e, às tantas, lá desabafou: "parece que está a apregoar limões!"
Deixei o DVD com os meus pais. Depois digo-vos os comentários.
Hoje mostrei à minha mãe um pouco do DVD da Mariza que saiu há pouco. Enquanto ela ouvia, o meu pai entrou na sala, ouviu um pouco, fez um ar enjoado e disse "parece que lhe estão a tirar um dente". A minha mãe só dizia "subiu-lhe à cabeça. Ela não era assim quando apareceu" e, às tantas, lá desabafou: "parece que está a apregoar limões!"
Deixei o DVD com os meus pais. Depois digo-vos os comentários.
LOGBOOK #14: A ATRACÇÃO DOS OPOSTOS
Sesimbra: Cabo Afonso, sábado 10 de Julho, 11h14: 8m, 54min, 17º C
É mentira: o computador marcava 14 graus quando saí da água, embora provavelmente a "média" da hora de mergulho fosse de 17. Mas já há umas semanitas que o mar ao largo de Sesimbra não estava tão frio ou tão espesso — uma visibilidade de dois metros no máximo dos máximos, seguir o recorte rochoso do cabo Afonso em grupo reduzido de cinco mergulhadores de experiências diferentes pelo meio de um verdadeiro caldo de partículas em suspensão não é especialmente entusiasmante.
Isto também é uma questão de estar mal habituado, sobretudo face às águas espectaculares das últimas semanas; a lei das probabilidades impossibilita condições ideais sempre. Curiosamente, apesar do dia encoberto e até dos leves chuviscos à saída do porto, não há vento, o mar está chão e sem corrente. Se, a semana passada, o dia não prometia e acabou por ser excelente, hoje foi o oposto: o dia prometia e o mergulho desiludiu (detectarei aqui alguma ironia relativa à situação política?). O que, também, não deixa de ser relativo: entre os nudibrânquios, os cardumes, as laminárias que compõem a paisagem, sem nunca descer abaixo dos 6-7 metros (a cota máxima do dia foi 8), a imponderabilidade faz reset ao stress. E isso não tem preço.
É mentira: o computador marcava 14 graus quando saí da água, embora provavelmente a "média" da hora de mergulho fosse de 17. Mas já há umas semanitas que o mar ao largo de Sesimbra não estava tão frio ou tão espesso — uma visibilidade de dois metros no máximo dos máximos, seguir o recorte rochoso do cabo Afonso em grupo reduzido de cinco mergulhadores de experiências diferentes pelo meio de um verdadeiro caldo de partículas em suspensão não é especialmente entusiasmante.
Isto também é uma questão de estar mal habituado, sobretudo face às águas espectaculares das últimas semanas; a lei das probabilidades impossibilita condições ideais sempre. Curiosamente, apesar do dia encoberto e até dos leves chuviscos à saída do porto, não há vento, o mar está chão e sem corrente. Se, a semana passada, o dia não prometia e acabou por ser excelente, hoje foi o oposto: o dia prometia e o mergulho desiludiu (detectarei aqui alguma ironia relativa à situação política?). O que, também, não deixa de ser relativo: entre os nudibrânquios, os cardumes, as laminárias que compõem a paisagem, sem nunca descer abaixo dos 6-7 metros (a cota máxima do dia foi 8), a imponderabilidade faz reset ao stress. E isso não tem preço.
DÊEM-LHES CORDA
Sim, estou desiludido por Jorge Sampaio ter decidido não convocar eleições antecipadas. Mas, entre o frenesi da esquerda indignada e da direita satisfeita, entre a revolta daqueles que se dizem decepcionados e "enganados" com o Presidente e a satisfação daqueles que consideram ter sido feita justiça, dou por mim a considerar que, qualquer que fosse a decisão que Sampaio tomasse, a rápida radicalização dicotómica que a questão tomou tornou impossível uma qualquer unanimidade em volta da figura do Presidente. Qualquer que fosse a decisão, o outro campo clamaria sempre à injustiça. Se Sampaio tivesse decidido convocar antecipadas, a direita clamaria alto e bom som que o Presidente havia favorecido a família política socialista de onde é oriundo; Sampaio decidiu não o fazer e a esquerda grita bem alto à traição, ao "sellout" à direita. Assim é a política, esse mundo radical onde não há meios-termos: se não estás comigo, estás contra mim.
Mas, se tivesse havido antecipadas, quem nos garante que o PS, na fragilidade sem rumo em que se encontra, venceria? Quem nos garante que Santana Lopes não engrenaria uma daquelas suas operações de charme que lhe valeram as câmaras da Figueira e de Lisboa e acabaria por vencer as antecipadas, "condenando-nos" a um mandato completo de quatro anos em vez de um mandato interino rigorosamente vigiado por uma oposição em overdrive combativa e por um eleitorado cansado de promessas incumpridas?
A verdade é esta: o povo nem sempre vota bem. Prova disso é que pôs Durão no poder e elegeu Pedro Santana Lopes para a câmara de Lisboa.
Pior: o povo nem sempre vota. Prova disso é que a vitória do PS nas europeias corresponde a um universo de votantes inferior a metade da população nacional, levantando a pergunta: foi só o eleitorado do PSD que ficou em casa?
Mais ainda: todas as discussões públicas sobre este tópico nos últimos quinze dias pareceram limitar-se a uma luta de galos por um único poleiro, onde a política se tornara num fim em vez de um meio.
O que ontem se passou faz-me lembrar o título de um álbum dos Clash: give 'em enough rope. Dêem-lhes corda. Talvez eles se enleiem nela sozinhos, sem precisarem da nossa ajuda.
Mas, se tivesse havido antecipadas, quem nos garante que o PS, na fragilidade sem rumo em que se encontra, venceria? Quem nos garante que Santana Lopes não engrenaria uma daquelas suas operações de charme que lhe valeram as câmaras da Figueira e de Lisboa e acabaria por vencer as antecipadas, "condenando-nos" a um mandato completo de quatro anos em vez de um mandato interino rigorosamente vigiado por uma oposição em overdrive combativa e por um eleitorado cansado de promessas incumpridas?
A verdade é esta: o povo nem sempre vota bem. Prova disso é que pôs Durão no poder e elegeu Pedro Santana Lopes para a câmara de Lisboa.
Pior: o povo nem sempre vota. Prova disso é que a vitória do PS nas europeias corresponde a um universo de votantes inferior a metade da população nacional, levantando a pergunta: foi só o eleitorado do PSD que ficou em casa?
Mais ainda: todas as discussões públicas sobre este tópico nos últimos quinze dias pareceram limitar-se a uma luta de galos por um único poleiro, onde a política se tornara num fim em vez de um meio.
O que ontem se passou faz-me lembrar o título de um álbum dos Clash: give 'em enough rope. Dêem-lhes corda. Talvez eles se enleiem nela sozinhos, sem precisarem da nossa ajuda.
9 de julho de 2004
A LEI DE MOORE
Muito se tem por essa blogosfera falado a propósito de "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore, fita que deve estar quase a chegar cá (segundo informação da distribuidora, é já daqui a 15 dias). No interim, achei curioso "responder" aos muitos que citaram o artigo anti-Moore que Christopher Hitchens escreveu na Slate com a opinião da Economist — que, confesso, me surpreendeu pela inesperada imparcialidade que revela, apontando a dado passo que há momentos no filme que indignarão qualquer Republicano digno desse epíteto.
Pessoalmente, reservo o meu julgamento até ver o filme, na certeza de que, pelo menos, Moore não engana ninguém: ele tem uma agenda e este filme é um meio para chegar a esse fim. A honestidade do pressuposto é inatacável, mesmo que a dos métodos possa ser dúbia. E àqueles que insistem que o cinema não deve ser político, não era Jean-Luc Godard (um dos grandes políticos do cinema) quem dizia, em tempos, que um travelling era uma questão de moral?
Pessoalmente, reservo o meu julgamento até ver o filme, na certeza de que, pelo menos, Moore não engana ninguém: ele tem uma agenda e este filme é um meio para chegar a esse fim. A honestidade do pressuposto é inatacável, mesmo que a dos métodos possa ser dúbia. E àqueles que insistem que o cinema não deve ser político, não era Jean-Luc Godard (um dos grandes políticos do cinema) quem dizia, em tempos, que um travelling era uma questão de moral?
BIG BROTHER
De vez em quando, a imprensa musical britânica saía-se com declarações bombásticas do género "comedy is the new rock'n'roll", significando a emergência de algo que parecia estar a "usurpar" o culto, a devoção, o interesse até aí devotados à música rock.
Dei por mim a pensar nisto porque, face à actual crise política nacional, me parece que, aplicando a lógica acima mencionada, a política em Portugal é uma espécie de "reality show", um "Big Brother" onde os "concorrentes" se posicionam para assegurarem que ficam na "casa" - e onde, tal como no programa, vale tudo para manter o "tacho". Desde que o nome de Durão Barroso foi indigitado para a Presidência Europeia, tudo isto parece ter tomado os contornos de um jogo onde não é efectivamente o bem-estar do País que está em jogo (não que eu o pensasse; não sou assim tão ingénuo) mas apenas o estatuto e sua respectiva manutenção por parte dos políticos no activo. Que Portugal se lixe — é muito mais importante determinar se, face a uma Constituição que abre ambas as hipóteses, se mantém a maioria em exercício governativo ou se se convocam eleições antecipadas, e perder tempo a definir prós e contras do assunto, do que fazer coisas no interesse do país. Na ressaca do Euro, esta crise está a paralisar as instituições nacionais.
Invoquem-se as legitimidades que se quiserem, neste momento não acredito que a maior parte dos intervenientes esteja realmente a pensar em Portugal. Portugal, esse, está a pensar neles: só assim se explica o apoio que as sondagens dão a entender existir à convocação de eleições, como uma espécie de (aqui sim) "cartão vermelho" a uma classe política que, toda ela, de um extremo do espectro a outro, fala demais e faz de menos ou finge que faz.
Mas também a política sempre foi a arte de manipular a realidade para a transformar numa ficção conforme a uma única visão do mundo. E, como todos sabemos, a realidade não é nunca unidimensional.
Dei por mim a pensar nisto porque, face à actual crise política nacional, me parece que, aplicando a lógica acima mencionada, a política em Portugal é uma espécie de "reality show", um "Big Brother" onde os "concorrentes" se posicionam para assegurarem que ficam na "casa" - e onde, tal como no programa, vale tudo para manter o "tacho". Desde que o nome de Durão Barroso foi indigitado para a Presidência Europeia, tudo isto parece ter tomado os contornos de um jogo onde não é efectivamente o bem-estar do País que está em jogo (não que eu o pensasse; não sou assim tão ingénuo) mas apenas o estatuto e sua respectiva manutenção por parte dos políticos no activo. Que Portugal se lixe — é muito mais importante determinar se, face a uma Constituição que abre ambas as hipóteses, se mantém a maioria em exercício governativo ou se se convocam eleições antecipadas, e perder tempo a definir prós e contras do assunto, do que fazer coisas no interesse do país. Na ressaca do Euro, esta crise está a paralisar as instituições nacionais.
Invoquem-se as legitimidades que se quiserem, neste momento não acredito que a maior parte dos intervenientes esteja realmente a pensar em Portugal. Portugal, esse, está a pensar neles: só assim se explica o apoio que as sondagens dão a entender existir à convocação de eleições, como uma espécie de (aqui sim) "cartão vermelho" a uma classe política que, toda ela, de um extremo do espectro a outro, fala demais e faz de menos ou finge que faz.
Mas também a política sempre foi a arte de manipular a realidade para a transformar numa ficção conforme a uma única visão do mundo. E, como todos sabemos, a realidade não é nunca unidimensional.
8 de julho de 2004
ARROMBOU A FESTA
Eu sei, eu sei: o melómano que se preze teria sido um dos privilegiados que conseguiu bilhete para ir ver Lhasa de Sela, ontem, no Forum Lisboa, mas francamente a senhora não me diz muito (também nunca a conheci pessoalmente, é certo) e Rita Lee faz parte das minhas primeiras memórias musicais: foi a primeira artista que me provou poder existir no Brasil música moderna para lá dos clássicos da MPB, e a minha adolescência foi pontuada pelos álbuns que eu ia comprando religiosamente em vinil. (A partir de 1986, face à qualidade progressivemente menor dos trabalhos, desliguei.)
O concerto de ontem no Coliseu de Lisboa, longe de perfeito mas significativamente melhor do que eu esperava face à errática reputação da artista, foi por isso um desfiar de canções que, surpreendido, dei por mim a saber de cor apesar de não ouvir a maior parte delas há anos (infelizmente, não existe nenhum greatest hits decente da senhora nas lojas, à excepção do envergonhado "Rita Hits" de 1984 em jeito de "megamix" que trunca as canções). Eu e a quantidade absurda de tios e tias trintões, da esquerda caviar undercover às santanetes disfarçadas, provando que uma boa canção atravessa linhas de batalha.
set principal
A Hard Day's Night
Amor e Sexo
Nem Luxo nem Lixo
A Gripe do Amor
Agora Só Falta Você
Baila Comigo
Top Top
Tudo Vira Bosta
Doce Vampiro
Perto do Fogo
Panis et Circensis
With a Little Help from My Friends
Lucy in the Sky with Diamonds
On the Rocks
Caso Sério
Erva Venenosa
Jardins da Babilônia
Ovelha Negra
encores
Desculpe o Auê
Banho de Espuma
Mania de Você
Lança-Perfume
O concerto de ontem no Coliseu de Lisboa, longe de perfeito mas significativamente melhor do que eu esperava face à errática reputação da artista, foi por isso um desfiar de canções que, surpreendido, dei por mim a saber de cor apesar de não ouvir a maior parte delas há anos (infelizmente, não existe nenhum greatest hits decente da senhora nas lojas, à excepção do envergonhado "Rita Hits" de 1984 em jeito de "megamix" que trunca as canções). Eu e a quantidade absurda de tios e tias trintões, da esquerda caviar undercover às santanetes disfarçadas, provando que uma boa canção atravessa linhas de batalha.
set principal
A Hard Day's Night
Amor e Sexo
Nem Luxo nem Lixo
A Gripe do Amor
Agora Só Falta Você
Baila Comigo
Top Top
Tudo Vira Bosta
Doce Vampiro
Perto do Fogo
Panis et Circensis
With a Little Help from My Friends
Lucy in the Sky with Diamonds
On the Rocks
Caso Sério
Erva Venenosa
Jardins da Babilônia
Ovelha Negra
encores
Desculpe o Auê
Banho de Espuma
Mania de Você
Lança-Perfume
7 de julho de 2004
POR FALAR EM COTA IRRELEVANTE
Olha quem tem disco novo (discurso, obviamente, exclusivamente dedicado aos cotas irrelevantes que ainda sabem quem é o senhor):
Mark Knopfler, é favor ires-te esconder com vergonha.
Mark Knopfler, é favor ires-te esconder com vergonha.
6 de julho de 2004
JUSTIFICADO
Sem outra razão que não gostar da canção e da letra.
hope
dangles on a string
like slow-spinning redemption
winding in
and winding out
the shine of it has caught my eye
and roped me in, so
mesmerizing, so
hypnotizing, I am
captivated, I am
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
I am seeing in me now the things you swore you saw yourself
so clear
like the diamond in your ring
cut to mirror your intention
oversized and overwhelmed
the shine of which has caught my eye
and rendered me so
isolated, so
motivated, I am
certain now that I am
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
i am seeing in me now the things you swore you saw yourself
so turn
up the corners of your lips
part them
and feel my fingertips
trace the moment, fall forever
defense is paper thin, just
one touch and I'd be in too
deep now to ever swim
against the current
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip
against the current
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
I am seeing in me now the things you swore you saw yourself
like hope
dangles on a string
like slow-spinning redemption.
- Dashboard Confessional: "Vindicated", in "Spider-Man 2" (Columbia, 2004)
hope
dangles on a string
like slow-spinning redemption
winding in
and winding out
the shine of it has caught my eye
and roped me in, so
mesmerizing, so
hypnotizing, I am
captivated, I am
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
I am seeing in me now the things you swore you saw yourself
so clear
like the diamond in your ring
cut to mirror your intention
oversized and overwhelmed
the shine of which has caught my eye
and rendered me so
isolated, so
motivated, I am
certain now that I am
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
i am seeing in me now the things you swore you saw yourself
so turn
up the corners of your lips
part them
and feel my fingertips
trace the moment, fall forever
defense is paper thin, just
one touch and I'd be in too
deep now to ever swim
against the current
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip
against the current
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
so let me slip away
vindicated
I am selfish, I am wrong, I am right
I swear I'm right
swear I knew it all along
and I am flawed
but I am cleaning up so well
I am seeing in me now the things you swore you saw yourself
like hope
dangles on a string
like slow-spinning redemption.
- Dashboard Confessional: "Vindicated", in "Spider-Man 2" (Columbia, 2004)
(SEM) COMENTÁRIO
Parece-me uma capa apropriada para o momento que atravessamos. (Não estamos aqui a falar da música, atenção.)
5 de julho de 2004
A MONTANHA
domingo, 16h30, na rua da Escola Politécnica
Uma jovem de corpo escultural passa por mim, vestida com uma camisola de alças super-justa, pelo menos três números abaixo do seu número de soutien (que não veste), com os três botõezinhos do decote abertos. A camisola, branca, tem "Portugal" escrito à frente, quase ilegível. Mais à frente, grupos de jovens com bandeiras, cachecóis, camisolas da selecção passam bebendo cerveja de garrafas de litro. Até uma senhora que vem do supermercado com os sacos de plástico cheios de compras na mão vem com uma camisola verde, um boné da selecção e uma bandeira a fazer de xaile. Todos os carros que passam trazem bandeiras desfraldadas, buzinam como se já fôssemos campeões.
domingo, 21h40, final do jogo, à varanda de minha casa
O silêncio é ensurdecedor. Depois das exclamações triunfalistas que acompanharam todos os outros jogos, depois dos vizinhos que cantaram o hino e fizeram cânticos durante a primeira metade do jogo, não se ouve nada. Nem uma buzina, nem um cântico. Apenas silêncio, como se a cidade estivesse deserta. Abandonada. Como se o tempo tivesse parado e nada mais importasse.
segunda-feira, 10h00, balneário do ginásio
Os velhotes que saem ou entram da ginástica matinal praticam o seu melhor linguajar de treinadores de bancada, por entre a meia-dúzia de muletas de linguagem, ditados populares que evitam terem de dizer alguma coisa realmente importante. Sinto a velha atitude de "velhos do Restelo" para quem se estava mesmo a ver que isto ia tudo acabar em desilusão, que já me parecia transparecer da reportagem do Diário de Notícias desta manhã.
segunda-feira, 11h30, pelas ruas de Lisboa
Muitas casas ainda têm bandeiras nas janelas, nas varandas, mas vê-se que houve quem já as começasse a tirar. A quantidade de carros com bandeiras é significativamente menor. Numa atitude que me parece bonita, um vizinho meu que não teve bandeira durante todo o campeonato pôs agora uma, enorme, que lhe ocupa quase a varanda toda.
Muitas das pessoas com quem falo durante o dia, mesmo que digam não se sentirem afectados pela derrota na final, não conseguem afastar um certo desencanto, um certo fado lusitano de quem acha que é bonito mas, se calhar, pouco pragmático acreditar nos sonhos. Gostava de acreditar que toda a auto-estima que se construiu durante este mês não é um mero balão que esvazia à primeira contrariedade. Gostava de acreditar que estas bandeiras e esta fé e esta crença e o termos chegado à final e o termos organizado um campeonato mediaticamente exemplar, por muito irrelevante que sejam para a realidade política, social, económica, tenham mostrado aos portugueses que vale a pena acreditar nas coisas e dar passos (mesmo que pequenos) para mudar, para fazer mais alguma coisa por este nosso cantinho, para irmos mais longe. Gostava de não ser "velho do Restelo" e de acreditar que as coisas, daqui para a frente, poderão ser diferentes. Mas isso não o podemos saber agora. De qualquer maneira, a citação em baixo (retirada da edição da semana passada da revista Time e de um texto que nada tinha a ver com futebol) parece-me apropriada, mesmo que longa.
(...) for most of us, mountaineering brings a peculiarly displaced pleasure: you suffer, mightily at times, in order to reach the summit or the refuge or the top of a slope; it is then, sweetened by the effort, that the payoff comes. Most of humanity would not subject itself to this: why strain and risk falling or frostbite when you can take a chairlift and get the same stunning views? But the views aren't the same, and the pleasure of having gotten there on your own steam is genuine — eventually.
(...) And so we made it (...) It was a moment of marvel rather than reflection, but wasn't being here at the summit the point of all this? Years ago a hiking partner had venomously called me "destination oriented" — definitely not cool in a world where the enlightened supposedly know that der Weg ist das Ziel (the way is the goal). Okay, I plead guilty. Call me a peak-bagger, a misguided apostle of achievement, whatever — I'd done what I set out to do. Later (...) I realized there was more to it than that. I'd gone to my limit, and now it's higher than it was before. There's nothing like a mountain to make that happen.
(James Graff, "Beating the Morning Rush" in Time Europe, vol. 164 nº 1, 5 de Julho de 2004)
Uma jovem de corpo escultural passa por mim, vestida com uma camisola de alças super-justa, pelo menos três números abaixo do seu número de soutien (que não veste), com os três botõezinhos do decote abertos. A camisola, branca, tem "Portugal" escrito à frente, quase ilegível. Mais à frente, grupos de jovens com bandeiras, cachecóis, camisolas da selecção passam bebendo cerveja de garrafas de litro. Até uma senhora que vem do supermercado com os sacos de plástico cheios de compras na mão vem com uma camisola verde, um boné da selecção e uma bandeira a fazer de xaile. Todos os carros que passam trazem bandeiras desfraldadas, buzinam como se já fôssemos campeões.
domingo, 21h40, final do jogo, à varanda de minha casa
O silêncio é ensurdecedor. Depois das exclamações triunfalistas que acompanharam todos os outros jogos, depois dos vizinhos que cantaram o hino e fizeram cânticos durante a primeira metade do jogo, não se ouve nada. Nem uma buzina, nem um cântico. Apenas silêncio, como se a cidade estivesse deserta. Abandonada. Como se o tempo tivesse parado e nada mais importasse.
segunda-feira, 10h00, balneário do ginásio
Os velhotes que saem ou entram da ginástica matinal praticam o seu melhor linguajar de treinadores de bancada, por entre a meia-dúzia de muletas de linguagem, ditados populares que evitam terem de dizer alguma coisa realmente importante. Sinto a velha atitude de "velhos do Restelo" para quem se estava mesmo a ver que isto ia tudo acabar em desilusão, que já me parecia transparecer da reportagem do Diário de Notícias desta manhã.
segunda-feira, 11h30, pelas ruas de Lisboa
Muitas casas ainda têm bandeiras nas janelas, nas varandas, mas vê-se que houve quem já as começasse a tirar. A quantidade de carros com bandeiras é significativamente menor. Numa atitude que me parece bonita, um vizinho meu que não teve bandeira durante todo o campeonato pôs agora uma, enorme, que lhe ocupa quase a varanda toda.
Muitas das pessoas com quem falo durante o dia, mesmo que digam não se sentirem afectados pela derrota na final, não conseguem afastar um certo desencanto, um certo fado lusitano de quem acha que é bonito mas, se calhar, pouco pragmático acreditar nos sonhos. Gostava de acreditar que toda a auto-estima que se construiu durante este mês não é um mero balão que esvazia à primeira contrariedade. Gostava de acreditar que estas bandeiras e esta fé e esta crença e o termos chegado à final e o termos organizado um campeonato mediaticamente exemplar, por muito irrelevante que sejam para a realidade política, social, económica, tenham mostrado aos portugueses que vale a pena acreditar nas coisas e dar passos (mesmo que pequenos) para mudar, para fazer mais alguma coisa por este nosso cantinho, para irmos mais longe. Gostava de não ser "velho do Restelo" e de acreditar que as coisas, daqui para a frente, poderão ser diferentes. Mas isso não o podemos saber agora. De qualquer maneira, a citação em baixo (retirada da edição da semana passada da revista Time e de um texto que nada tinha a ver com futebol) parece-me apropriada, mesmo que longa.
(...) for most of us, mountaineering brings a peculiarly displaced pleasure: you suffer, mightily at times, in order to reach the summit or the refuge or the top of a slope; it is then, sweetened by the effort, that the payoff comes. Most of humanity would not subject itself to this: why strain and risk falling or frostbite when you can take a chairlift and get the same stunning views? But the views aren't the same, and the pleasure of having gotten there on your own steam is genuine — eventually.
(...) And so we made it (...) It was a moment of marvel rather than reflection, but wasn't being here at the summit the point of all this? Years ago a hiking partner had venomously called me "destination oriented" — definitely not cool in a world where the enlightened supposedly know that der Weg ist das Ziel (the way is the goal). Okay, I plead guilty. Call me a peak-bagger, a misguided apostle of achievement, whatever — I'd done what I set out to do. Later (...) I realized there was more to it than that. I'd gone to my limit, and now it's higher than it was before. There's nothing like a mountain to make that happen.
(James Graff, "Beating the Morning Rush" in Time Europe, vol. 164 nº 1, 5 de Julho de 2004)
4 de julho de 2004
POLAROID: ALVALADE XXI
Num concerto de estádio, não é a música que realmente importa; a maior parte das pessoas está sentada suficientemente longe do palco para parecer que está a ver o concerto num écran de televisão pequeno. O que importa é dizer que se esteve lá; é a experiência de estar ali com vários milhares de pessoas e de sentir o seu gosto confirmado colectivamente.
À entrada, percebe-se que o público deste concerto é composto por trintões e tias, famílias alargadas, colegas de trabalho, vizinhos, amigos. É normal, os maiores êxitos de Phil Collins devem ter aí dez, quinze anos (basta ver que os êxitos posteriores a 89 não recebem a mesma reacção eufórica). Muito sapato de vela e sandália de prata, camisola de marca enrolada à cintura.
Há cachecóis e bandeiras portuguesas por todo o lado, como se tivessem vindo assistir a um jogo de futebol. Entre a actuação de Mike & The Mechanics e a de Phil Collins, a bancada superior (os lugares sentados mais baratos, não marcados, e ainda a pretensa bancada de imprensa colocada de lado para o palco) lança uma onda mexicana que se estende fugazmente à bancada inferior, acompanhada por ruidosas salvas de palmas sempre que a onda completa o semi-círculo do estádio. Os cânticos futebolísticos ouvem-se a espaços; atrás de mim, algum suburbano mais nacionalista grita "Portugal!" (e, mais tarde, durante o concerto, "Benfica!") a ver se lança outro cântico, mas geralmente sem sucesso.
O novo Alvalade XXI é enganador: só nas zonas em que as filas de cadeiras são completamente verdes é que se percebe quais os lugares vazios, nas filas furta-cores a ilusão de óptica não permite perceber onde há espectadores e onde não há. O relvado, coberto por tela cinzenta, parece uma praça-forte medieval, isolada das bancadas por um fosso de betão vazio e ligado por passagens com corrimões amarelos. Está cheio até mais de meio.
Durante o concerto, o relvado e as bancadas parecem um mar escuro pontuado pelos pontos fluorescentes dos sticks de luz que oscilam ritmicamente ao som da música. Alguém no relvado inventa um novo jogo: atirar sticks para a bancada. A fluorescência azulada que o vôo dos sticks traça no escuro lembra-me as imagens infra-vermelhas dos bombardeamentos da I Guerra do Golfo.
À entrada, percebe-se que o público deste concerto é composto por trintões e tias, famílias alargadas, colegas de trabalho, vizinhos, amigos. É normal, os maiores êxitos de Phil Collins devem ter aí dez, quinze anos (basta ver que os êxitos posteriores a 89 não recebem a mesma reacção eufórica). Muito sapato de vela e sandália de prata, camisola de marca enrolada à cintura.
Há cachecóis e bandeiras portuguesas por todo o lado, como se tivessem vindo assistir a um jogo de futebol. Entre a actuação de Mike & The Mechanics e a de Phil Collins, a bancada superior (os lugares sentados mais baratos, não marcados, e ainda a pretensa bancada de imprensa colocada de lado para o palco) lança uma onda mexicana que se estende fugazmente à bancada inferior, acompanhada por ruidosas salvas de palmas sempre que a onda completa o semi-círculo do estádio. Os cânticos futebolísticos ouvem-se a espaços; atrás de mim, algum suburbano mais nacionalista grita "Portugal!" (e, mais tarde, durante o concerto, "Benfica!") a ver se lança outro cântico, mas geralmente sem sucesso.
O novo Alvalade XXI é enganador: só nas zonas em que as filas de cadeiras são completamente verdes é que se percebe quais os lugares vazios, nas filas furta-cores a ilusão de óptica não permite perceber onde há espectadores e onde não há. O relvado, coberto por tela cinzenta, parece uma praça-forte medieval, isolada das bancadas por um fosso de betão vazio e ligado por passagens com corrimões amarelos. Está cheio até mais de meio.
Durante o concerto, o relvado e as bancadas parecem um mar escuro pontuado pelos pontos fluorescentes dos sticks de luz que oscilam ritmicamente ao som da música. Alguém no relvado inventa um novo jogo: atirar sticks para a bancada. A fluorescência azulada que o vôo dos sticks traça no escuro lembra-me as imagens infra-vermelhas dos bombardeamentos da I Guerra do Golfo.
3 de julho de 2004
LOGBOOK #13: A CANA DE PESCA
Sesimbra: Ponta da Baleeira, sábado 3 de Julho, 11h22: 13.8m, 52min, 17º C
Muito vento, com direito a banho completo no barco, à ida, a convencer-nos que não vai ser um grande dia de mergulho. Mentira: é verdade que a visibilidade é indiferente, 2-3 metros no máximo; que o Miguel aborta o mergulho durante a descida com problemas de compensação (mais tarde, restabelecido, descerá com outro grupo). Mas não há grande corrente e a visibilidade é perfeita para passearmos por estes desfiladeiros de pedras forradas.
A Baleeira não tem grande reputação, mas o Spínola tinha razão: neste ponto abrigado junto à costa, que sobe dos 13 metros até aos 5, há rochas, há vida, há muito para ver e para nos entretermos durante quase uma hora (e só não foi mais tempo porque o Filipe entrou na reserva). Parece até haver uma gruta de lagostas onde eu, o Pedro e o Filipe não fomos, entretidos a pairar à procura da vida escondida por baixo das laminárias que parece terem feito ocupação selvagem dos fundos costeiros. Como o polvinho muito bem escondido que o Pedro fotografa com a máquina nova e que se recusa pachorrentamente a sair do sítio. Ou a cana de pesca que está caída algures entre as pedras e que eu apanho e decido lá deixar quando vejo que já há vida a subir pelo tubo oco acima.
À volta, o banho é muito menor; o tempo melhorou, o vento amainou um pouco. O tal dia que não ia ser muito grande foi óptimo. "Go with the flow", já diziam os Queens of the Stone Age.
Muito vento, com direito a banho completo no barco, à ida, a convencer-nos que não vai ser um grande dia de mergulho. Mentira: é verdade que a visibilidade é indiferente, 2-3 metros no máximo; que o Miguel aborta o mergulho durante a descida com problemas de compensação (mais tarde, restabelecido, descerá com outro grupo). Mas não há grande corrente e a visibilidade é perfeita para passearmos por estes desfiladeiros de pedras forradas.
A Baleeira não tem grande reputação, mas o Spínola tinha razão: neste ponto abrigado junto à costa, que sobe dos 13 metros até aos 5, há rochas, há vida, há muito para ver e para nos entretermos durante quase uma hora (e só não foi mais tempo porque o Filipe entrou na reserva). Parece até haver uma gruta de lagostas onde eu, o Pedro e o Filipe não fomos, entretidos a pairar à procura da vida escondida por baixo das laminárias que parece terem feito ocupação selvagem dos fundos costeiros. Como o polvinho muito bem escondido que o Pedro fotografa com a máquina nova e que se recusa pachorrentamente a sair do sítio. Ou a cana de pesca que está caída algures entre as pedras e que eu apanho e decido lá deixar quando vejo que já há vida a subir pelo tubo oco acima.
À volta, o banho é muito menor; o tempo melhorou, o vento amainou um pouco. O tal dia que não ia ser muito grande foi óptimo. "Go with the flow", já diziam os Queens of the Stone Age.
2 de julho de 2004
ESTES HOMENS SÃO MUITO BONS
Miguel Sousa Tavares está em grande. (Vasco Pulido Valente também, mas não consigo pôr aqui o link por uma falha qualquer do servidor do DN.)
MARLON BRANDO 1924-2004
A minha memória de cinéfilo guarda três papéis de Marlon Brando. Dois, curiosamente, vistos em reprise na mesma sala, o Quinteto, ou, melhor dizendo, o Cinebolso (ali, ao pé da Estefânia), durante os dois-três anos (1983-1985, salvo erro) em que Pedro Bandeira Freire procurou resgatar a sala ao purgatório do porno como uma extensão do Quarteto: "O Padrinho" e "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, vistos em cópias gastas que regressavam a Lisboa para fazerem a semana durante a hoje desaparecida temporada de reposições de Verão. Em ambos, a sensação de uma cobra enroscada que pacientemente aguarda o seu momento para atacar a sua presa, sublinhada pelos chiaroscuros da fotografia de Gordon Willis em "O Padrinho" e pelos contrastes vermelhos e negros, suados e infernais, de Vittorio Storaro em "Apocalypse Now".
O terceiro é o seu breve cameo como Jor-El, o pai do Super-Homem, na simpática mas hoje datada adaptação cinematográfica que Richard Donner dirigiu em 1978, e que vi no écran descomunal de 70mm do Império, na noite da sua estreia em Portugal, que coincidiu com o dia do meu 11º aniversário.
Lembro-me também do trailer, em efusivo Technicolor tropical, da "Revolta na Bounty" de Lewis Milestone, que vi várias vezes no écran do velho Monumental, em antecipação do filme principal, também durante as temporadas de Verão em que as caríssimas cópias de 70mm ainda podiam ser rentabilizadas em salas que as podiam exibir.
Os papéis que efectivamente o celebrizaram, que explicaram porque é que ele foi o actor mais influente do cinema americano nos anos 50, ficaram para mais tarde; para as tardes e as noites em que as televisões ainda passavam cinema clássico e ainda nos possibilitavam conhecer a história do cinema sem termos de sair de casa.
O terceiro é o seu breve cameo como Jor-El, o pai do Super-Homem, na simpática mas hoje datada adaptação cinematográfica que Richard Donner dirigiu em 1978, e que vi no écran descomunal de 70mm do Império, na noite da sua estreia em Portugal, que coincidiu com o dia do meu 11º aniversário.
Lembro-me também do trailer, em efusivo Technicolor tropical, da "Revolta na Bounty" de Lewis Milestone, que vi várias vezes no écran do velho Monumental, em antecipação do filme principal, também durante as temporadas de Verão em que as caríssimas cópias de 70mm ainda podiam ser rentabilizadas em salas que as podiam exibir.
Os papéis que efectivamente o celebrizaram, que explicaram porque é que ele foi o actor mais influente do cinema americano nos anos 50, ficaram para mais tarde; para as tardes e as noites em que as televisões ainda passavam cinema clássico e ainda nos possibilitavam conhecer a história do cinema sem termos de sair de casa.
AS MURALHAS DE SAMARIS (COM LUCY LIU)
Se fosse um objecto, "Cypher", de Vincenzo Natali (estreou ontem: Alvaláxia, Corte Inglés, Twin Towers, Freeport Alcochete, Braga, Caldas da Rainha, Faro e Santarém), seria a sala de espelhos da "Dama de Xangai" de Orson Welles, onde cada porta abrisse para uma outra sala de espelhos até já não sabermos onde estamos nem quem somos. É apropriado para uma história que é uma metáfora sobre os desafios de assumirmos sermos quem somos: um executivo desempregado aceita tornar-se um espião industrial para uma corporação informática. Jeremy Northam é impecável no papel do homem que assume uma identidade que nunca existiu para poder redescobrir quem é realmente e recuperar a sua própria vida, como Cary Grant na "Intriga Internacional" de Hitchcock.
Vincenzo Natali usa o guião bizantino de Brian King como mera superfície plana para erguer uma elaborada fachada onde o digital substitui o papelão, uma cidade de sombras como a obscura Samaris de Schuiten e Peeters, como a Matrix irreal dos manos Wachowski. E sim, há Hitchcock e Philip K. Dick e muito mais num filme que sabe moldar num todo seu as referências que inevitavelmente surgem. Vincenzo Natali dirigiu antes "Cubo", que teria sido um excelente episódio da "Twilight Zone" se se tivesse ficado pela meia hora; não repetiu o erro em "Cypher", que é um filme de corpo inteiro.
Vi "Cypher" há ano e meio, num Fantasporto onde fui jurado (e lutei para que o filme levasse mais do que meros prémios de consolação), e as suas imagens marcaram-me. Só agora, depois de quase dois anos em carteira, estreia, condenado a perder-se pelo meio dos refugos de Verão. Portugal é dos poucos países onde estreou até agora. O que se passa para que um filme destes se perca miseravel e injustamente?
1 de julho de 2004
POLAROID: DEPOIS DA MEIA-FINAL
avenida Álvares Cabral
Uma única janela aberta, acesa, em todo o prédio, de onde vêm sons de música de dança em altos berros e de uma percussão batida arritmicamente. Em contraluz, uma jovem dança e grita, de pé à janela, enquanto toca um instrumento de percussão, com a música a sair de um "tijolo" ao lado.
rua Alexandre Herculano, no cruzamento com a Avenida da Liberdade
Uma família numerosa dirige-se para a concentração celebratória do Marquês de Pombal, com os pais de meia-idade vestidos normalmente, sem as marcas nacionalistas dos filhos e restante família alargada. O pai, de repente, volta para trás dizendo à mãe "esqueci-me do telemóvel".
estação Baixa-Chiado, à espera da ligação para a linha verde
Quatro agentes da polícia, de pé a meio do cais, andam para trás e para a frente, à coca de algum desordeiro. Reparo neles porque um deles é uma bisarma de cabelo rapado que tem ar de quem passa a vida a encher no ginásio, por comparação com a tradicional ideia do polícia português como um barrigudo de meia-idade, e porque duas horas depois, quando fazemos o caminho inverso, eles ainda estão exactamente no mesmo sítio, provavelmente ainda à coca de desordeiros.
no comboio, entre Baixa-Chiado e Marquês de Pombal
Um senhor de meia-idade, de camisa verde, bolsa a tiracolo e panamá camuflado, olhar vítreo, entra no comboio nos Restauradores, acenando uma bandeira e cambaleando. Mais atrás, um grupo de adolescentes entoa cânticos futebolísticos aos quais o senhor, cambaleando pelo corredor, se quer juntar, mas o mais que consegue é fazer ruído com o cabo da bandeira no tecto da carruagem. Na Avenida entram dois ingleses, também já com algum álcool em cima, que se juntam aos cânticos pró-Portugal e com quem o senhor de meia-idade procura entabular conversa, debalde porque eles já estão a conversar com dois casais na casa dos 20 com cachecóis e camisolas de Portugal.
rua Alexandre Herculano, à beira do largo do Rato
Um grupo de jovens cujo carro está estacionado em cima do passeio fazem uma fila na berma, com bandeiras na mão que erguem à passagem de cada carro como se o estivessem a tourear. Mais à frente, uma carrinha comercial, parada, com os quatro piscas acesos, toca em altos berros a canção da Galp: "menos ais, menos ais, menos ais". Já no Rato, um grupo de raparigas de pé no muro que divide as faixas de sentido Álvares Cabral-Marquês de Pombal da faixa bus em sentido oposto, entoa cânticos cujas letras são direcções para um amigo que está em pé no passeio da rua da Escola Politécnica, à espera que o sinal mude para se juntar a elas.
por todo o lado
Uma cacofonia quase concretista de apitos, buzinas, sirenes, cânticos, gritos, toques de telemóvel. Um mar de gente com camisolas e cachecóis a vermelho-selecção ou branco-alternativo, e de carros com piscas acesos, buzinas incansáveis, gente sentada nas portas, bandeiras a esvoaçar no vento forte da noite que se queria estival. Como se mais nada houvesse no mundo a não ser a tal força que não pode parar. Como se mais nada, nem sequer a deriva política, tivesse interesse.
hoje de manhã
Olheiras profundas em quase todos os rostos com que me cruzo.
Uma única janela aberta, acesa, em todo o prédio, de onde vêm sons de música de dança em altos berros e de uma percussão batida arritmicamente. Em contraluz, uma jovem dança e grita, de pé à janela, enquanto toca um instrumento de percussão, com a música a sair de um "tijolo" ao lado.
rua Alexandre Herculano, no cruzamento com a Avenida da Liberdade
Uma família numerosa dirige-se para a concentração celebratória do Marquês de Pombal, com os pais de meia-idade vestidos normalmente, sem as marcas nacionalistas dos filhos e restante família alargada. O pai, de repente, volta para trás dizendo à mãe "esqueci-me do telemóvel".
estação Baixa-Chiado, à espera da ligação para a linha verde
Quatro agentes da polícia, de pé a meio do cais, andam para trás e para a frente, à coca de algum desordeiro. Reparo neles porque um deles é uma bisarma de cabelo rapado que tem ar de quem passa a vida a encher no ginásio, por comparação com a tradicional ideia do polícia português como um barrigudo de meia-idade, e porque duas horas depois, quando fazemos o caminho inverso, eles ainda estão exactamente no mesmo sítio, provavelmente ainda à coca de desordeiros.
no comboio, entre Baixa-Chiado e Marquês de Pombal
Um senhor de meia-idade, de camisa verde, bolsa a tiracolo e panamá camuflado, olhar vítreo, entra no comboio nos Restauradores, acenando uma bandeira e cambaleando. Mais atrás, um grupo de adolescentes entoa cânticos futebolísticos aos quais o senhor, cambaleando pelo corredor, se quer juntar, mas o mais que consegue é fazer ruído com o cabo da bandeira no tecto da carruagem. Na Avenida entram dois ingleses, também já com algum álcool em cima, que se juntam aos cânticos pró-Portugal e com quem o senhor de meia-idade procura entabular conversa, debalde porque eles já estão a conversar com dois casais na casa dos 20 com cachecóis e camisolas de Portugal.
rua Alexandre Herculano, à beira do largo do Rato
Um grupo de jovens cujo carro está estacionado em cima do passeio fazem uma fila na berma, com bandeiras na mão que erguem à passagem de cada carro como se o estivessem a tourear. Mais à frente, uma carrinha comercial, parada, com os quatro piscas acesos, toca em altos berros a canção da Galp: "menos ais, menos ais, menos ais". Já no Rato, um grupo de raparigas de pé no muro que divide as faixas de sentido Álvares Cabral-Marquês de Pombal da faixa bus em sentido oposto, entoa cânticos cujas letras são direcções para um amigo que está em pé no passeio da rua da Escola Politécnica, à espera que o sinal mude para se juntar a elas.
por todo o lado
Uma cacofonia quase concretista de apitos, buzinas, sirenes, cânticos, gritos, toques de telemóvel. Um mar de gente com camisolas e cachecóis a vermelho-selecção ou branco-alternativo, e de carros com piscas acesos, buzinas incansáveis, gente sentada nas portas, bandeiras a esvoaçar no vento forte da noite que se queria estival. Como se mais nada houvesse no mundo a não ser a tal força que não pode parar. Como se mais nada, nem sequer a deriva política, tivesse interesse.
hoje de manhã
Olheiras profundas em quase todos os rostos com que me cruzo.
TANGUÉDIA
Em conversa virtual com um amigo, ontem, discutíamos paixões desencontradas. Depois, à noite, vendo Rodrigo Leão apresentar perante uma audiência convidada o seu novo e belo disco "Cinema", numa das duas únicas passagens por reportório anterior, descobri em "Pasión" uma resposta possível às nossas dúvidas, em tom de falso tango onde, por trás da fachada canalha, se esconde o desesperado pragmatismo da solidão.
no
me olvides que yo me muero
amor
mi vida sufrimiento
yo
te quiero en mi camino
por vos
cambiava mi destino
ay
abrazame esta noche
y aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acercate a mi
abrazame a ti por Dios
entregate a mis brazos
tengo
un corazón penando
yo se
que vos lo estas escuchando
con
mil lagrimas te quiero
pasión
son mi amor sincero
ay
abrazame esta noche
aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acercate a mi
abrazame a ti por Dios
entregate a mis brazos.
- Rodrigo Leão com Rui Reininho, "Pasión" (in "Pasión", Columbia, 2001)
no
me olvides que yo me muero
amor
mi vida sufrimiento
yo
te quiero en mi camino
por vos
cambiava mi destino
ay
abrazame esta noche
y aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acercate a mi
abrazame a ti por Dios
entregate a mis brazos
tengo
un corazón penando
yo se
que vos lo estas escuchando
con
mil lagrimas te quiero
pasión
son mi amor sincero
ay
abrazame esta noche
aunque no tengas ganas
prefiero que me mientas
tristes breves nuestras vidas
acercate a mi
abrazame a ti por Dios
entregate a mis brazos.
- Rodrigo Leão com Rui Reininho, "Pasión" (in "Pasión", Columbia, 2001)
ENCONTROS E DESPEDIDAS
Não gosto de melodramas. Não gosto do apelo lacrimejante da história da desgraçadinha. Mas gosto, e muito, de "A Minha Vida sem Mim", de Isabel Coixet (estreia hoje: Alvaláxia, Corte Inglés, Monumental, Quarteto, Freeport Alcochete, Cascais Villa, Cidade do Porto e Parque Nascente), porque é um melodrama que é resolutamente tudo menos lacrimejante. O ponto de partida seria ideal para fazer as tias das Avenidas Novas gastarem maços inteiros de lenços de papel: a rapariga na flor da idade a quem é diagnosticado um tumor fatal e incurável.
Mas, em vez da lamechice melosa ao som de violinos lancinantes, Isabel Coixet prefere evitar os rodriguinhos, rejeitar a lamechice, fugir a sete pés do caso da vida. Ann (sublime interpretação de Sarah Polley) não quer piedade, compaixão, pena; não é a desgraçadinha condenada a um destino horrível; é uma mulher normal, frustrada, que quer apenas que a deixem viver o tempo que lhe resta como ela quer. Por isso, não diz a ninguém que vai morrer. A realização seca, rigorosa, de Coixet, câmara à mão como se fosse um documentário interior, foge a sete pés dos lugares-comuns, busca uma verdade emocional que se esconde nas interpretações uniformemente excelentes dos actores e que transcende as acusações de implausibilidade que já vi atiradas ao filme.
E, ao contrário do que parece, "A Minha Vida sem Mim" não é um filme sobre a morte, mas sim sobre a vida e sobre os pequenos momentos que lhe dão todo o seu significado, sobre a música do acaso que por vezes deixa tudo à nossa volta deserta para, mais tarde, conseguir que tudo se alinhe para cumprir o desejo. "A Minha Vida sem Mim" não puxa uma única vez à lágrima fácil e, contudo, é capaz de ser um dos mais devastadoramente comoventes melodramas que já vi. Por acaso, ou talvez não, é produzido por Pedro Almodóvar, coisa que a publicidade portuguesa não se coíbe de explorar. Mas se isso levar mais gente a ver este filme sereno e tocante que estreia em plena era de defesos e refugos, ainda bem.
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