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1 de julho de 2004

POLAROID: DEPOIS DA MEIA-FINAL

avenida Álvares Cabral
Uma única janela aberta, acesa, em todo o prédio, de onde vêm sons de música de dança em altos berros e de uma percussão batida arritmicamente. Em contraluz, uma jovem dança e grita, de pé à janela, enquanto toca um instrumento de percussão, com a música a sair de um "tijolo" ao lado.

rua Alexandre Herculano, no cruzamento com a Avenida da Liberdade
Uma família numerosa dirige-se para a concentração celebratória do Marquês de Pombal, com os pais de meia-idade vestidos normalmente, sem as marcas nacionalistas dos filhos e restante família alargada. O pai, de repente, volta para trás dizendo à mãe "esqueci-me do telemóvel".

estação Baixa-Chiado, à espera da ligação para a linha verde
Quatro agentes da polícia, de pé a meio do cais, andam para trás e para a frente, à coca de algum desordeiro. Reparo neles porque um deles é uma bisarma de cabelo rapado que tem ar de quem passa a vida a encher no ginásio, por comparação com a tradicional ideia do polícia português como um barrigudo de meia-idade, e porque duas horas depois, quando fazemos o caminho inverso, eles ainda estão exactamente no mesmo sítio, provavelmente ainda à coca de desordeiros.

no comboio, entre Baixa-Chiado e Marquês de Pombal
Um senhor de meia-idade, de camisa verde, bolsa a tiracolo e panamá camuflado, olhar vítreo, entra no comboio nos Restauradores, acenando uma bandeira e cambaleando. Mais atrás, um grupo de adolescentes entoa cânticos futebolísticos aos quais o senhor, cambaleando pelo corredor, se quer juntar, mas o mais que consegue é fazer ruído com o cabo da bandeira no tecto da carruagem. Na Avenida entram dois ingleses, também já com algum álcool em cima, que se juntam aos cânticos pró-Portugal e com quem o senhor de meia-idade procura entabular conversa, debalde porque eles já estão a conversar com dois casais na casa dos 20 com cachecóis e camisolas de Portugal.

rua Alexandre Herculano, à beira do largo do Rato
Um grupo de jovens cujo carro está estacionado em cima do passeio fazem uma fila na berma, com bandeiras na mão que erguem à passagem de cada carro como se o estivessem a tourear. Mais à frente, uma carrinha comercial, parada, com os quatro piscas acesos, toca em altos berros a canção da Galp: "menos ais, menos ais, menos ais". Já no Rato, um grupo de raparigas de pé no muro que divide as faixas de sentido Álvares Cabral-Marquês de Pombal da faixa bus em sentido oposto, entoa cânticos cujas letras são direcções para um amigo que está em pé no passeio da rua da Escola Politécnica, à espera que o sinal mude para se juntar a elas.

por todo o lado
Uma cacofonia quase concretista de apitos, buzinas, sirenes, cânticos, gritos, toques de telemóvel. Um mar de gente com camisolas e cachecóis a vermelho-selecção ou branco-alternativo, e de carros com piscas acesos, buzinas incansáveis, gente sentada nas portas, bandeiras a esvoaçar no vento forte da noite que se queria estival. Como se mais nada houvesse no mundo a não ser a tal força que não pode parar. Como se mais nada, nem sequer a deriva política, tivesse interesse.

hoje de manhã
Olheiras profundas em quase todos os rostos com que me cruzo.

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