Pesquisa personalizada

16 de julho de 2004

PENSAR O CINEMA

Numa dicotomia básica e evidentemente redutora, costumo diferenciar o raciocínio anglo-americano do raciocínio francês ou francófono pela construção linguística. À imagem da língua, a expressão do pensamento teórico inglês (ou americano) é de uma simplicidade flexível e pragmática, directa ao assunto, de estilo que expressa facilmente a substância, enquanto que a expressão do pensamento teórico francês se perde nos rococós rebuscados e elegantes de uma língua onde a função é tão importante quanto a forma. Basta, aliás, ver como a noção de "crítica cinematográfica" difere de um universo para o outro; ou como a ideia de "cinema de autor" parece quase ser um exclusivo francês.

Isto tudo a propósito de uma simpática e, por uma vez, particularmente pragmática antologia publicada há uns anos pelos Cahiers du Cinéma, intitulada "La Politique des Auteurs — Les Textes". Como toda a gente sabe, o principal contributo francês para a crítica cinematográfica foi a "política dos autores" lançada naquela revista em finais dos anos 50 por uma geração de críticos que ergueram a apreciação cinematográfica ao nível do ensaísmo universitário: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer. Essa mesma geração (a par de contemporâneos como Alain Resnais ou Claude Chabrol) viria a distinguir-se no cinema sob o genérico Nouvelle Vague — praticantes de um "cinema novo" que, paradoxalmente, nada ou muito pouco tinha a ver na prática com os autores e com o cinema americano que os inspirara, e que procurava trilhar novos caminhos.

A frescura da Nouvelle Vague acabaria por contagiar grande parte do cinema mundial não-americano e a política dos autores, estabelecendo o realizador como autor principal do filme, onde se reconheceriam marcas e sinais de um universo próprio que se sobrepunha a quaisquer condicionantes de produção, tornar-se-ia numa espécie de dogma crítico, levando à criação da expressão "cinema de autor" para designar a produção cinematográfica não-"mainstream" ou com pretensões a arte mais elevada e nobre.

O interessante do pequeno volume de bolso onde se reunem alguns dos textos teóricos mais estimulantes publicados nos Cahiers du Cinéma entre 1953 e 1997 e assinados pelos críticos que se foram revezando na veneranda revista é verificar como a própria teoria da política dos autores sofreu alterações com o correr do tempo; depois da sua formulação nos anos 50 assistimos à sua dogmatização, à sua transformação em instituição de referência (e ao nascimento de uma oposição interna nos anos 60 onde a "política dos autores" é renegada pela nova geração de críticos como tendo-se tornado no sistema contra a qual foi criada), e finalmente à sua entronização como modo de linguagem crítica e ao debate sobre a sua relevância contemporânea.

Particularmente notável a esse nível é um ensaio de Olivier Assayas (mais tarde também ele realizador e, actualmente, ex-marido de Maggie Cheung), publicado em 1983 sob o título "Que d'Auteurs, Que d'Auteurs! Sur une Politique" ("Tantos Autores, Tantos Autores! Sobre uma Política" em tradução livre minha), onde Assayas explora elegantemente as contradições que o tempo foi revelando na teoria dos autores, nomeadamente o efeito perverso de circuito fechado que ela veio criar nos cineastas.

De facto, aquilo que nasceu como necessidade de emprestar estatuto a uma arte menor erguendo-a ao nível das artes clássicas como a literatura ou a pintura e como reconhecimento da existência de sensibilidades e qualidades peculiares e específicas dentro de um sistema de produção estandardizado, acabou por criar uma lógica perversa na qual o cineasta se reivindica automaticamente autor e lançar um sistema de produção alternativa em circuito fechado, definindo o célebre "cinema de autor" como um objecto incapaz de comunicar com um público que não aquele que se revê nele.

De uma presciência rara (sobretudo quando se repara que foi escrito há 20 anos), o ensaio de Assayas põe o dedo na ferida de muita da produção cinematográfica europeia contemporânea e revela as limitações de uma política originalmente bem-intencionada que o tempo se encarregou de cristalizar num conjunto de regras de seguimento obrigatório para quem quer ser reconhecido como cineasta. O cinema português quase todo, e não só, continua a segui-las fielmente, incapaz de perceber que novos tempos exigem novos modos de ver e pensar o cinema.

O que este volumezinho prova é que é sensato rever as nossas posições ao longo dos tempos, para garantir que não ficamos presos em passados poeirentos nem fechamos os olhos a futuros intrigantes.

Sem comentários: