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29 de novembro de 2004

IDIOMATISMOS MATERNOS PECULIARES #1

Ouvido no sábado à minha mãe: "vai-te encher de moscas!".

David Cronenberg gostaria certamente da expressão.

28 de novembro de 2004

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #12

É curioso ver como o zapping funciona, às vezes, como um atalho para a nossa memória. Ainda agora passei pelo canal Hollywood e dei pelo carro voador de "Chitty Chitty Bang Bang", que me teleportou instantaneamente para o Verão quente de 1974 ou 1975, em que os meus pais me levaram a vê-lo ao cinema Vox. Curiosamente, a minha ideia do filme é mínima — tenho apenas memória de imagens soltas e do local onde o vi. O Vox era onde é hoje o King Triplex. Era uma sala única, aí de 500 lugares, que tinha umas cadeiras muito anos 60, sem costas, redondas. As actuais entradas dos King 1 e 2 eram as duas entradas principais para a sala (coxias esquerda e direita); o bar ficava onde é hoje a livraria, e o écran era onde é hoje o King 3 (as escadas que levam ao King 3 eram a velha saída de emergência do Vox). Tinha algo de cinema de bairro, mas tinha sempre umas estreias interessantes, muito cinema europeu. Lembro-me de estar de férias em Tavira, na velha casa que a d. Júlia nos alugava, e de ver no jornal do dia o anúncio da reposição do filme; esse tinha sido o primeiro Verão do cinema pornográfico, com salas "sérias" como o Politeama, o Cinebolso (à altura um cinema de "arte e ensaio") ou o Capitólio a exibirem filmes porno, e o Vox foi uma delas, substituindo "Chitty Chitty Bang Bang" por um porno ainda durante o mês que passámos em Tavira. Curiosamente, sei que vi o filme no Vox, mas não me recordo se foi nesse ano ou na temporada de reprises seguinte. Ou talvez a minha memória também esteja a fazer zapping.

Do filme não me recordo nada. Os poucos minutos que vi hoje no Hollywood deixaram-me a impressão de uma coisa enjoativa e datada.

EVGUENI MORAVITCH

A minha mãe tem um sentido muito apurado de como um pivot ou um repórter televisivo deve ser. É normal ouvi-la pronunciar-se em voz alta sobre a (falta de) beleza de quem aparece na televisão com a expressão "Se isto é cara que se apresente! Onde é que já se viu isto na televisão?". (Entre as habituais vítimas dos ataques de indignação da minha mãe contam-se Rosa Veloso, Sandra Felgueiras, Margarida Neves de Sousa, Marta Atalaya, João Ferreira, Luís Branco — enfim, talvez seja melhor dizer que quem NÂO costuma ser alvo de tais ataques são Judite de Sousa, Fátima Campos Ferreira, Manuela Moura Guedes, Rodrigo Guedes de Carvalho e José Alberto Carvalho, porque todos os outros, a dada altura, já por lá passaram ou potencialmente passarão).

Hoje coube a sorte de receber tal mimo a Evgueni Moravitch, o correspondente da RTP na ex-União Soviética, hoje a reportar da crise eleitoral na Ucrânia e que a minha mãe, muito mais directa ao assunto do que é habitual, descreveu logo como "muito feio" mas que apesar de tudo — e à semelhança de Cesário Borga há umas largas semanas atrás — também deve ser casado porque "elas querem é casar".

27 de novembro de 2004

DÚVIDAS EXISTENCIAIS

Não exactamente; mas, tal como as do Palma há uns dias, esta da Naifa (oh, como eu gosto da Naifa, e do seu belo álbum "Canções Subterrâneas" - Columbia/Sony, 2004 - e do seu dub-tecno-fado) resume bem as dúvidas recentes. Chama-se "Queixas de um Utente", poema de José Mário Silva.

pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros

já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum

UMA DE VÁRIAS PERGUNTAS QUE SE IMPÕEM

O problema reside no ser ou no parecer?

Ou, resumindo, o problema está naquilo que se é ou naquilo que se projecta ser? E em que medida aquilo que se projecta ser não é, também, aquilo que se é, em vez de uma fachada que se cria para atraír/sobreviver — ou, melhor, aquilo que se passou também a ser por um sem-número de circunstâncias?

25 de novembro de 2004

TINONI

A ambulância sai do quartel de bombeiros com os strobes luminosos a flashar a azul. O meu é o único carro que está à frente, mas a rua tem duas faixas no mesmo sentido e portanto ela pode-me ultrapassar se assim o desejar, mas não o faz; mantém a distância até nos aproximarmos da rotunda onde desagua o trânsito de três ruas distintas. Só à vista da rotunda a ambulância dispara o som e acelera a velocidade, ultrapassando-me rapidamente pela esquerda e deixando atrás de si o ruído estridente das sirenes.

23 de novembro de 2004

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #46

Encarquilhado.

SINAIS

(Parental advisory: explicit content)

Andei às voltas com vontade de postar qualquer coisa à volta do «dia da memória» que teve lugar no domingo, à volta da questão dos portugueses serem no geral condutores irresponsáveis e de não haver realmente nenhuma campanha que resulte enquanto cada condutor português não deixar de estar convencido que ele e só ele é que guia bem (e como tal pode fazer todos os disparates que bem entender). E isso é uma coisa de educação, de consciência, de comportamento. As pessoas têm de perceber que é no seu próprio comportamento que as coisas começam a mudar. E sem isso (e como nós sabemos que os portugueses adoram ser do contra e atirar, sempre, as culpas para cima do outro!) nada feito.

Mas achei por bem não escrever nada. Parecia que estava a adivinhar, hoje pela primeira vez em seis anos de carta tive um pequeno acidente, felizmente sem consequências de maior. Uma paragem repentina à minha frente em cima de uma passadeira, uma travagem intempestiva, chiadeira de pneu, ai que eu não páro a tempo, ai que eu não páro a tempo, pára-choques contra pára-choques, barulheira infernal, merda, já está, tenho o carro todo fodido. Uma pessoa nem percebe o que aconteceu e pronto, já aconteceu. Afinal a coisa não passou do susto, de facto bateu-se mas o porta-bagagens do carro da frente abre normalmente, o pára-choques parece não ter problemas, o meu pára-choques também está intacto, trocam-se algumas palavras de circunstância, o condutor da frente irritado, eu dou-me por culpado, ele também, "que necessidade é que as pessoas têm de guiar em cima das outras", diz o outro senhor como quem fala para o ar, eu fico com cara de parvo, não me parecia que estivesse a guiar muito em cima dele, mas a percepção é uma coisa verdadeiramente subjectiva, se calhar até estava, distraído a pensar noutras coisas, é o problema de uma pessoa já conhecer bem o caminho que percorre duas vezes diariamente. Boa viagem, cada um para seu lado, algumas poucas centenas de metros até eu entrar no meu parque de estacionamento e o outro condutor arrumar o carro para analisar melhor eventuais estragos invisíveis.

Não percebi o que se passou, eu não costumo guiar a altas velocidades nem o meu carro velhote de cinco anos as aguenta muito tempo, mas a questão é precisamente essa, numa situação destas nunca se percebe. Olho para trás e tudo parece difuso, nem sei bem o que aconteceu, apenas a surpresa e a incapacidade de reagir ao que quer que seja. Felizmente não houve problemas, só agora, que escrevo, a situação me está a bater, mas quem sabe quão pior podia ter sido? Lembro-me do meu encontro físico, sem carro, com um sinal de trânsito, fez agora dois anos, um destes dias hei-de escrever sobre isso. Sinais. Não sei bem de quê, mas de alguma coisa certamente.

22 de novembro de 2004

PALMA, VEZES DOIS

Duas letras do Jorge Palma para definir, melhor ou pior, as amplitudes térmicas das últimas semanas. São as duas do desigual disco novo, "Norte" (Virgin/EMI).

Esta, "Passeio dos Prodígios", porque é pessoal e intransmissível.

vamos lá contar as armas
tu e eu, de braço dado
nesta estrada meio deserta
não sabemos quanto tempo as tréguas vão durar
há vitórias e derrotas apontadas em silêncio
no diário imaginário
onde empilhamos as razões para lutar
repreendo os meus fantasmas
ao virar de cada esquina
por espantarem a inocência
quantas vezes te odiei
com medo de te amar
vejo o fundo da garrafa
passando mais outro cigarro
tudo serve de cinzeiro
quando os deuses brincam
é para magoar
vamos enganar o tempo
saltar para o primeiro comboio
que arrancar da mais próxima estação
para quê fazer projectos
quando sai tudo ao contrário
pode ser que por milagre
troquemos as voltas aos deuses

entre o caos e o conflito
a vontade e a desordem
não podemos ver ao longe
e corremos sempre o risco de ir longe demais
somos meros transeuntes
no passeio dos prodígios
somos só sobreviventes
com carimbos falsos
nas credenciais
vamos enganar o tempo
saltar para o primeiro comboio
que arrancar da mais próxima estação
para quê fazer projectos
quando sai tudo ao contrário
pode ser que por milagre
troquemos as voltas aos deuses
para quê fazer projectos
quando sai tudo ao contrário
pode ser que por milagre
troquemos as voltas aos deuses
troquemos as voltas aos deuses.


Esta, "Os Demitidos", porque raras vezes terei visto tão bem traduzida a mesquinhez de (do?) ser português.

estás demitido
obviamente demitido
tu nunca roubaste um beijo
e fazes pouco das emoções
és o espantalho dos amantes

estás demitido
obviamente demitido
evitas a competência
não reconheces o mérito
és um pilar da cepa torta

e assim vamos vivendo na província dos obséquios
cedendo e pactuando enquanto der
filósofos sem arte
afugentamos o desejo
temos preguiça de viver

estás demitido
obviamente demitido
subornas os próprios filhos
trocaste o tempo por máquinas
tu és um pai desnaturado

estás demitido
obviamente demitido
arrasas a obra alheia
às vezes usas pseudónimo
tu és um crítico de merda

e assim vamos vivendo na província dos obséquios
cedendo e pactuando enquanto der
filósofos sem arte
afugentamos o desejo
tanta preguiça de viver

estás demitido
obviamente demitido
encostas-te às convergências
nunca investiste num ideal

tu sempre foste um demitido
tu foste sempre um demitido
já nasceste
demitido.


O disco? É só meio disco — mas que grande meio disco.

20 de novembro de 2004

O ESTADO DAS COISAS

Esta forma nova — nem se pode mesmo dizer de fascismo, há demasiada distorção — que existe agora é bem pior, porque será bem mais irrevogável. Tudo será aparentemente agradável, as pessoas pensarão viver num país livre, etc. Acho a evolução actual muito mais deprimente, de certa maneira, porque já não se pode verdadeiramente fazer nada contra ela. Já não há grande diferença entre o vizinho da frente e o chanceler federal — é um homem mesquinho e medíocre, exactamente como o meu vizinho. Eles vão ficar cada vez mais parecidos e por isso as coisas vão-se tornar cada vez mais difíceis para nós, aves do paraíso.

É um excerto de uma entrevista dada pelo falecido cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder em 1978. Encontrei-a num artigo de Alain Bergala na edição de Outubro dos Cahiers du Cinéma, artigo esse escrito em forma de carta a um actor que voltou costas ao teatro "institucional" e arranjou emprego como destilador de whisky por recusar o "teatro de massas" que ele considerava ter substituído o "teatro popular" (interessante distinção) hoje em dia.

Mas, cá para mim, a afirmação — que Alain Bergala diz impressioná-lo pela "justeza da profecia, vivemos bem no centro deste futuro que Fassbinder predisse" — é uma radiografia incisiva do estado das coisas. Que, por acaso, também era um filme alemão.

18 de novembro de 2004

IF THE SHOE FITS...

De facto, tudo seria muito mais simpático, agradável e cultural se não tivéssemos de aturar gente estúpida, incompetente ou ignorante durante o dia.

Infelizmente, levando em consideração que a percentagem de gente estúpida, incompetente e/ou ignorante existente no mundo é bastante elevada, creio que se impõe um estudo apurado e aturado da arte zen de canalizar positivamente as nossas energias negativas.

Um par de tabefes poderá ser um bom princípio, Mestre?

17 de novembro de 2004

POLAROID: LOJA DE CONVENIÊNCIA

Cena a que acabei de assistir na minha loja de conveniência.

Adolescente com cabelo louro surf pede à empregada um cachorro quente e põe em cima da mesa uma lata de guaraná. Empregada responde que o guaraná não faz parte do menu cachorro. "Não faz?" "Não." E a empregada desfia a lista das bebidas que fazem parte do menu. "Então! É o mesmo preço", responde o adolescente. "Pois, mas não faz parte do menu," responde a empregada. "A senhora é nova aqui, não é?" diz-lhe o adolescente. "Não, não sou", respondeu a empregada. "Estou a ver que ainda tem de aprender umas coisas", diz-lhe o adolescente.

O senhor cinquentão que estava atrás de mim para pagar abriu a boca, chocado. Eu acho que a cena dispensa comentários.

16 de novembro de 2004

SO ESTOU BEM ONDE NÃO ESTOU, ETC.

Não sei nunca o quê, mas tenho sempre a sensação inescapável de que, faça o que fizer, escolha o que escolher, está-me sempre, mas sempre, a escapar alguma coisa.

O COMBOIO QUE LEVAVA SAUDADES

Passando há pouco no viaduto da avenida da Índia, um comboio em direcção a Lisboa apitou enquanto passava por baixo do viaduto. Um comboio é sempre uma promessa, pensei para mim. Fiz a ligação com um filme que não devo ver há 30 anos, ligeiramente menos, que vi só uma vez, numa daquelas sessões matinais, "manhãs infantis", que alguns cinemas de Lisboa continuaram a fazer durante os anos 70; acho que foi no Apolo 70, ali ao Campo Pequeno, que era então programado (pasme-se) por Lauro António como uma sala de prestígio, o equivalente anos 70 do King, com muita produção de arte e ensaio.

O filme chamava-se, em português, "O Comboio que Levava Saudades" e adoro o título perfeitamente evocativo de uma era que já passou em que a metáfora do título traduzido era uma arte levada a extremos. Lembro-me que era uma produção inglesa que se passava na transição do século XIX para o século XX, misto de Enid Blyton e James Ivory, com três crianças — três irmãos — e as suas aventuras à volta de uma linha de comboio que lhes passa nas traseiras de uma vivenda modesta ("as saudades que eu já tinha da minha alegre casinha tão modesta que ela é") no campo inglês. Anos mais tarde, reencontrei as coordenadas do filme, nas enciclopédias de cinema: um filme inglês de 1970, dirigido por Lionel Jeffries e intitulado no original "The Railway Children", baseado num clássico da literatura infanto-juvenil britânica. Nunca mais voltei a apanhar com esse filme mas hoje, não sei porquê, o comboio que me passou ao lado trouxe-me saudades dele.

15 de novembro de 2004

PEQUENA AFIRMAÇÃO APENAS APARENTEMENTE MISÓGINA

O meu amigo António tem esta afirmação que me parece muito interessante: "todas" — e ele refere-se, verdadeiramente, a todas — "as mulheres são bonitas até prova em contrário".

Eu, pessoalmente, olho para algumas e, por excelentes pessoas, seres humanos extraordinários, óptimas profissionais, etc, que possam ser, penso logo que devem ser a prova em contrário.

14 de novembro de 2004

:TEN (descubra as diferenças)

(Descobri este fragmento nas minhas arrumações. Um e-mail que enviei em Fevereiro de 2000 a um amigo. É curioso, acho que há aqui muita coisa que ainda se aplica hoje. O que pode ser lido das duas maneiras.)

All I ever wanted was to be noticed.

I was brought up to be quiet, silent, away from my father's eyes so as not to disturb his all-important work at home. Raised among adults who had no time for a young boy with an overreaching imagination, a young boy who wanted to be just like all the other boys his age. But it was not to be. I never felt I belonged anywhere; except maybe at home, probably just because I shared a name and a blood kin to these people.

I still don't.

I still want to believe that discipline and hard work will make up for the friendship you don't have. Because, to be fairly honest, love never came into it. Love was something I never saw at home. Love was something — is something I can't quite get around my mind. I don't know what it is. Never did. What I'm looking for is not love. It's comfort. It's acceptance. It's feeling I belong somewhere; feeling I have people who care for me, who call me, who want me to be with them once in a while, who write to me, who know my many faults and still want to be with me.

But I have a knack for wanting to be friends with people who have more important things in their lives than me. Like a family of their own. Like a love of their own.

That leaves me back where I started, needing professional psychological advice once every six weeks, feeling lonely and lovelorn. And rather staying at home nursing my invisible wounds when I could, should be out there forgetting theem.

But, whichever way you look at it, isn't the result the same? They never go away anyway. They'll just linger around the darkest recesses of your mind, waiting for the chance to come back and settle again. All you can hope for is a brief respite of the anguish. An evening, a weekend, a week. Because nothing ever lasts forever. It all ebbs and flows, like the waves on the beach.

All I ever do is send out messages in bottles of different shapes and sizes. Everything I do is a cry for help. A call to notice. And people do. For a while. Then they've seen it all and move away. On to the next freak show.

13 de novembro de 2004

WELL I WONDER

Depois de ter assistido aos "highlights" da comunicação de Nuno Morais Sarmento no congresso do PSD, pergunto-me a quem se dirigiria o Ministro da Presidência realmente.

É SÓ ARRUMAÇÃO, ARRUMAÇÃO

Estar com a neura tem as suas vantagens. Uma delas é que, geralmente, me dá para arrumar a casa — e vocês não fazem ideia da quantidade de lixo (menu do dia: caixas de sapatos antigas e sacos de plástico que estavam a ganhar pó há anos numa pequena despensa que tenho em casa, entre outras coisas) que tenho andado a deitar fora nas últimas semanas. Já Thoreau dizia: "simplify, simplify". Para já não falar na questão que, uma vez as coisas limpas e o espaço ganho para arrumar outras coisas, passa a haver espaço para organizar. E eu gosto muito de organizar.

12 de novembro de 2004

ONDE ESTAVAS NO 25 DE DEZEMBRO DE 1974?

Deixei de acreditar definitivamente no Pai Natal numa véspera de Natal, em finais dos anos 70, quando eu tinha 10, 11 anos, em que, enquanto estava a dar "O Feiticeiro de Oz" na televisão, os meus pais desapareceram de repente da sala de jantar e eu fui à procura deles para os encontrar a arrumar os presentes na sala de estar. Eu já não acreditava muito no Pai Natal antes, acho eu, pelo menos do que me recordo, mas nesse ano percebi o esquema todo. E foi também nesse ano que percebi que a quantidade absurda de presentes que me davam era uma maneira dos meus pais compensarem outras coisas que não me sabiam dar.

É uma chatice perceber estas coisas tão novo. Dá-nos cabo da cabeça cedo demais.

11 de novembro de 2004

I STILL HAVEN'T FOUND WHAT I'M LOOKING FOR

No outro dia, falava da minha mãe viver no mundo fechado das suas quatro paredes. Às vezes, descubro que sou mais parecido com ela do que eu próprio penso: também eu vivo no meu mundo fechado. Porque o diâmetro ou a área não têm importância quando o percurso continua a ser um círculo que me leva do ponto A outra vez ao ponto A. Obviamente isto cria os seus problemas: a maior parte do que realmente interessa está lá fora.

A minha mãe sempre disse — geralmente qusndo está a mandar vir — uma coisa com uma certa piada: "nós sempre tivemos muito medo que o ar te chegasse". Parabéns, conseguiram.

10 de novembro de 2004

PEQUENO MOMENTO DE LUCIDEZ ILUMINADA

Percebi que sou um quarentão ressabiado. Isto é muito perturbante porque só tenho 36 anos.

9 de novembro de 2004

QUESTIONÁRIO DE ESCOLHA MÚLTIPLA

Dizia o teaser na caixa multibanco: Sabe qual é o seu nível de açúcar no sangue?. E, depois de levantar os 60 euros, lá veio a resposta: 14 de Novembro - Dia Mundial da Diabetes. X% de portugueses não sabe que sofre de diabetes.

Isto é suposto:
a) gerar sentimentos de culpa por comer doces?
b) assustar-me para ir ao médico já ver o açúcar no sangue?
c) lançar-me em depressão porque tudo o que faço e como pode ser potencialmente perigoso?
d) fazer-me sentir superior aos outros porque controlo o meu açúcar no sangue?

Como podem ver, a trip da culpa não tem escapatória possível. O que nos querem vender não é saúde nem cuidados por si próprios, é mesmo usar a culpa como um motivador. E sabem que mais? Bardamerda para a culpa. Venha daí esse quadradinho de chocolate negro amargo com 70% de cacau.

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #44

Sabujo.

8 de novembro de 2004

DO FUNDO DOS TEMPOS

Na escola primária (terá sido na 3ª classe?), aprendi o que significa as pessoas não acreditarem em nós. Alguém deixou um "presente" desagradável debaixo da minha carteira. Levou-me tempo a perceber de onde vinha o mau cheiro e, quando dei pela sola da bota suja, disse ao professor. Todos pensaram que tinha sido eu. Até o professor. De nada serviram os meus protestos, o meu desespero; fui mandado para o recreio, de castigo. Lembro-me que o dia estava cinzento. Lembro-me que chorei, chorei muito, sozinho no recreio. Lembro-me que os meus pais acreditaram em mim porque me viram transtornado como nunca tinham visto.

Não me recordo como foram os dias seguintes, como ultrapassei o trauma de ninguém acreditar em mim. Talvez nunca o tenha ultrapassado; isto foi quase há trinta anos e recordo-me como se fosse ontem. Nesse dia aprendi a não confiar nas pessoas. Nesse dia aprendi que há amizades — talvez a maior parte delas — que são meros jogos de interesses (e, ao longo dos anos que se seguiram, no ciclo preparatório e grande parte do liceu, apenas o confirmei). Nesse dia aprendi o que é a cegueira dos outros.

Desse dia data a minha necessidade de ser aceite, de ser compreendido, de pertencer — e a minha certeza que, por mais que tente, isso nunca acontecerá.

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

I had a kind of a not sad — well, maybe sad — but an acceptance of who I am as a woman and that maybe who I am as a woman isn't somebody that can be the great partner and wife and also do the things that I want to do (...). I've come to reaize there's a very strong possibility I might be raising my children by myself and have great lovers and friends, but not find that one great love. And that's sad, you know. But better that than hurt somebody or go through another divorce.

Quem diz isto é Angelina Jolie, na edição de Outubro da Première americana. E, transferindo o conteúdo para a minha própria experiência, estou como ela: será melhor partir em busca de um sonho distante (e, talvez, impossível) do que saber desfrutar do que tenho? As dúvidas estão sempre a dar cabo de mim. Acho que é uma herança materna.

7 de novembro de 2004

5 DE NOVEMBRO DE 1929

A minha mãe fez 75 anos na sexta-feira. Recordo-me que, quando o meu pai fez anos, em Março, coloquei aqui um post sobre a ocasião, mas não fiz o mesmo com a minha mãe. Provavelmente, para alguns isto equivalerá a ser um filho desnaturado, ou então será lido como uma manifestação freudiana da clássica preferência por um dos pais.

Lamento desiludi-los; entre o laconismo reservado e repetidamente silencioso do meu pai e os monólogos cada vez mais amargos e histriónicos da minha mãe, não prefiro nenhum. E gosto muito de ambos os meus pais, por muitas dificuldades de relacionamento que tenha com eles. Acontece, apenas, que a minha mãe é uma figura complicada. Uma mulher que cresceu no "obscurantismo" de um tempo onde a célula familiar era rigidamente estruturada e o lugar da mulher era em casa, a tomar conta dos filhos.

A minha mãe sempre se dividiu entre a vontade (em alguns casos, quase necessidade) de se revoltar contra o papel meramente utilitário que a sociedade lhe impunha e o medo de ser incapaz de se aguentar sozinha se mandasse tudo ás urtigas e se revoltasse efectivamente. A minha mãe sempre nos usou a nós, os três filhos que teve, como a sua desculpa para se resignar ao papel que lhe tinham destinado mas que ela nunca quis aceitar. A minha mãe sempre diz que, graças a Deus, criou três bons rapazinhos, honestos e trabalhadores — como se tudo isso fosse a única coisa que valesse a pena. Mas a minha mãe sempre viveu no mundo fechado das quatro paredes do apartamento do Bairro das Colónias onde nos criou, e nunca visitou o mundo fora dessas quatro paredes que tanto gostaria de ter visto. E criou-nos de acordo com valores e experiências de um outro tempo, que não era nem nunca foi o nosso.

A minha mãe fez 75 anos na sexta-feira e não celebrou a ocasião. Há vários anos que ela se recusa a celebrar o que quer que seja, nos diz sempre que não gastemos dinheiro com ela (embora fique ofendidíssima se não gastamos), que se calhar para o ano que vem já cá não está. A minha mãe está uma mulher amarga, que, chegada à velhice e à doença, lamenta tudo aquilo que nunca teve a coragem para fazer, sacudindo muito lusamente a água do capote como se não fosse culpa dela mas um conjunto de circunstâncias. Talvez seja a única maneira que ela tem de não sucumbir ao desespero mais absoluto de se ver uma mulher velha e doente confinada a quatro paredes. E, por isso, este fim-de-semana voltou a ser um fim-de-semana de jantares crispados, em que a palavra mais casual ou a afirmação dita em tom jocoso é virada contra nós para se transformar numa denúncia da santidade dela, numa defesa da sua ser a única verdade possível e existente. A minha mãe é possessiva, centralizadora, sábia (mesmo que inconsciente) manipuladora; daria uma óptima ditadora, mas infelizmente criou filhos libertários. E é por isso que eu não escrevi nada quando a minha mãe fez anos; porque gosto muito dela, mas há alturas em que é muito difícil estar com ela.

AI PORTUGAL, PORTUGAL

Incomoda-me aquela saloiice tipicamente portuguesa que nos faz dar palmadinhas nas nossas próprias costas sempre que há um português que triunfa algures no mundo, como se o seu triunfo fosse também um triunfo nosso, como se nós tivéssemos contribuido, nem que fosse só um pouquinho, para ele.

Tretas. Quem triunfa lá fora fá-lo porque arranjou a força de vontade necessária para partir e não voltar. Hoje, no Telejornal do canal 1 (que, garantidamente, eu cada vez mais só gosto de ver quando é apresentado por José Alberto Carvalho e positivamente detesto quando é feito por Judite de Sousa ou Fátima Campos Ferreira), uma elucidativa reportagem de Márcia Rodrigues sobre um cozinheiro de Viseu que trabalha no hotel Plaza de Nova Iorque, em que a certa altura se dizia com mal-escondido orgulho que tinha sido cumprimentado por Johnny Depp pela qualidade da refeição e que tinha servido Bill Clinton. Como se um cumprimento de um actor de cinema fosse o mais a que um cozinheiro português em Nova Iorque pudesse aspirar, como se esse cumprimento fosse mais significativo do que ter um cargo de responsabilidade num dos mais exigentes hotéis do mundo. Ou como uma coisa realmente digna de orgulho é reduzida à patetice comiserativa do portuguesinho no estrangeiro.

É por estas e por outras que o temperamento português me irrita solenemente.

4 de novembro de 2004

IT'S ONLY A MOVIE



Presumo que muito boa gente vá ficar a toa com a fantasia retro, propositadamente ingénua, de "Sky Captain e o Mundo de Amanhã" (estreia hoje). É normal que assim seja: o filme de Kerry Conran é um misto de ode a e elegia por um cinema clássico que parece irrecuperavelmente fora do nosso alcance, um retorno a tempos mais simples, menos matizados, mais preto-no-branco, de um cinema genuinamente popular. Por isso mesmo, é um filme que só quem muito ama o cinema, e sobretudo os anos dourados dos estúdios de Hollywood, saberá amar, porque nele reconhecerá o deslumbramento maravilhoso e inocente dos tempos em que o cinema era o futuro. E, por 105 minutos, volta a sê-lo — mesmo que esse futuro esteja solidamente ancorado no passado. Mas que futuro nunca o está?

3 de novembro de 2004

PEQUENA MEDITAÇÃO ELEITORAL

Parece-me que todos os cidadãos portugueses que se sentem decepcionados com a vitória de George W. Bush, independentemente de estarem no seu pleno direito, se esquecem fundamentalmente de uma coisa que poderá servir de consolação, mesmo que fraca: também não votaram em Pedro Santana Lopes e levaram com ele na mesma.

Pronto. Mais animadinhos?

O MISTÉRIO DO AUTO-RÁDIO TEMPERAMENTAL

O meu auto-rádio deu em interromper a cassete (ontem: "High", dos Blue Nile; hoje: "The Capitol Years", de Frank Sinatra) quando a TSF acciona o RDIS das indicações de trânsito, o que é uma chatice (imaginem "I Would Never" ou "Because of Toledo"; ou "I Get a Kick Out of You" ou "Young at Heart" interrompidos pelo acidente na A8 ou na fila nas portagens de Vila Franca e tirem as vossas conclusões).

O que eu só não percebo, mesmo, é porque só agora, ao fim de cinco anos, é que isto acontece.

MUNDO LIVRE S/A

I sit at my table and wage war on myself
it seems like it's all...it's all for nothing
I know the barricades, and
I know the mortar in the wall breaks
I recognize the weapons, I used them well

this is my mistake. let me make it good
I raised the wall, and I will be the one to knock it down

I've a rich understanding of my finest defenses
I proclaim that claims are left unstated,
I demand a rematch
I decree a stalemate
I divine my deeper motives
I recognize the weapons
I've practiced them well. I fitted them myself

it's amazing what devices you can sympathize... empathize
this is my mistake. let me make it good
I raised the walls, and I will be the one to knock it down

reach out for me and hold me tight. hold that memory
let my machine talk to me. let my machine talk to me

this is my world
and I am the world leader pretend
this is my life
and this is my time
I have been given the freedom
to do as I see fit
it's high time I've razed the walls
that I've constructed

it's amazing what devices you can sympathize... empathize
this is my mistake. let me make it good
I raised the walls, and I will be the one to knock it down

you fill in the mortar. you fill in the harmony
you fill in the mortar. I raised the walls
and I'm the only one
I will be the one to knock it down.


- Michael Stipe para R. E. M., "World Leader Pretend", in "Green" (Warner Bros., 1989)

2 de novembro de 2004

FUGAS PARA A FRENTE

É, realmente, verdade: mesmo aquilo de que mais gostamos no mundo, quando o temos de fazer todos os dias, se pode banalizar e tornar em "apenas" mais uma coisa. Nessas alturas, é preciso arranjar estratégias para manter o entusiasmo. O problema é quando arranjar essas estratégias é, em si próprio, uma tarefa banal.

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #42

Ignóbil.

1 de novembro de 2004

POLAROID: TÁXI

Cheiro intenso a fumo, como se o táxi estivesse fechado 24/7 numa tabaqueira. Janela do condutor aberta, com o resultado da deslocação a velocidades habitualmente excessivas para o trânsito lisboeta criar uma rapidíssima circulação de ar frio do anoitecer no interior do veículo. Rádio em altíssimos berros na Orbital, que transmite uma qualquer melopeia disco na melhor tradição Village People. Rádio CB dos Rádio Taxis emitindo as habituais mensagens roufenhas "...táxi ao número tal e tal da rua não sei quantos...". E o taxista, de cabelo ralo espicaçado pelo gel, a dissertar com propriedade sobre ser espantoso como, quando ele precisou de ir à garagem mudar não sei o quê, só lhe saírem serviços para o outro lado da cidade e, desde que veio da garagem, todos os serviços o levarem à rua da dita cuja garagem.

O CONSUMIDOR RECLAMA

Ocorreu-me hoje que andamos todos à busca de qualquer coisa para preencher as nossas solidões — uns chamam-lhe amor, outros chamam-lhe amizade, outros ainda desejo. Mas, seja ela o que for, conheçamo-la nós por que nome, quando a encontramos ela nunca corresponde na realidade àquilo que nos foi prometido. Àquilo a que temos direito. Talvez devêssemos exigir o livro de reclamações.