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31 de janeiro de 2005

NINGUÉM GOSTA DO CINEMA PORTUGUÊS (NEM O PRÓPRIO)

O Diário de Notícias propõe hoje uma reflexão sobre o divórcio entre o público português e o cinema português, numa peça de Maria João Caetano que, apesar de dar voz a vários intervenientes na discussão, não é capaz de propor uma leitura diferente das coisas.

António-Pedro Vasconcellos fala da "má qualidade dos filmes" - falso, "O Milagre Segundo Salomé" é um bom filme que só fez 20 mil espectadores, "Balas e Bolinhos - O Regresso" é um péssimo filme que já vai em 45 mil, "Zona J" era um telefilme banal e fez 360 mil, "Pesadelo Cor de Rosa" não era bom e fez 185 mil. Está na altura de se abandonar a falácia da qualidade vs quantidade. Sintomático dessa falácia é o destino de "Sorte Nula", de Fernando Fragata, que nem sequer foi mostrado à imprensa, ter feito 46 mil espectadores com uma brutal campanha de marketing.

Mais sintomático ainda dessa falácia é o facto de 46 mil espectadores não ser sequer um número significativo. Um filme estrangeiro (ou seja: americano), lançado com toda a parangona publicitária da praxe, que faça 46 mil espectadores é um fracasso. Segundo os últimos números, "Ocean's Twelve" já vai nos 250 mil em apenas duas semanas: é mais do que o total de espectadores que foram ver filmes portugueses em 2004, segundo os números publicados no Diário de Notícias.

Está, por isso, na altura de nos deixarmos de merdas. João Mário Grilo aponta, com alguma razão, que não se sabe vender o cinema português (fala do caso da Atalanta, mas, francamente, a Atalanta também não sabe vender o cinema português fora do seu nicho), José Carlos Oliveira defende, com alguma razão, que é preciso incentivar o cinema mainstream em português, mas que, pela vossa saudinha, não se confunda uma definição do alvo que se quer atingir com qualidade. Se isso acontecer, óptimo, mas convém recordar que ter espectadores não é sinónimo de qualidade do filme, e ser um bom filme não é sinónimo de sucesso comercial instantâneo. E, acima de tudo, que o filme português de maior sucesso de 2004 só tenha feito 46 mil espectadores não é sinal de que seja um filme de sucesso, quando qualquer filmezinho de segunda linha que a Lusomundo lança no seu circuito faz facilmente 50 mil espectadores em fim de carreira. Convém relativizar.

30 de janeiro de 2005

MARKETING POLÍTICO (v3.0 revista)

Isto de apanhar com outdoors da campanha eleitoral para onde quer que se vá, e sobretudo durante viagens de carro sem mais em que pensar, dá direito a algumas cogitações sobre a adequação da mensagem que se quer fazer passar à forma escolhida para a fazer passar.

O PSD mostra um Pedro Santana Lopes em pose de estado com a mensagem "Contra ventos e marés, a favor de Portugal". Para não falar da deselegância da expressão face à recente tragédia asiática, a fotografia do líder projecta uma aura defensiva, de quem está a jogar pelo seguro e a conter a retórica para evitar que lhe caiam em cima. É um outdoor que, na sua pretendida sobriedade austera, recupera a carta da vitimização que o primeiro-ministro demissionário tem vindo a jogar em discursos. Quanto ao "a favor de Portugal", seria uma frase boa — se não tivesse havido tanta trapalhada nestes breves mas intermináveis meses de governo; se não tivesse havido as confusões dos assessores, as confusões dos impostos e as promessas demagógicas feitas para ganhar eleitorado; se o líder fosse outro, então, seria uma excelente frase, na sua conjugação de invocação patriótica e optimismo vago.

O cartaz da JSD, perguntando ao eleitorado se ele sabe realmente quem é José Sócrates, inaugura a tradição rasteira de atirar lama ao adversário que, por exemplo, se fez sentir na campanha eleitoral americana. Não compreendo como é possível tanta gente de direita indignar-se com o "ataque" de Francisco Louçã a Paulo Portas no célebre debate e deixarem passar com um sorriso beato um outdoor que está exactamente ao mesmo nível daquilo que condenam. Mas, já se sabe, isto do duplo standard...

A frase "Este sim, sabe quem é" do novo outdoor do PSD que entretanto surgiu (presumo que em articulação com o outdoor da JSD) é absolutamente desastrosa — sabendo Santana Lopes melhor que ninguém como está, neste momento, a ser observado com redobrada atenção, deixar que um cartaz daqueles saia (ainda por cima com o "remate" "Pedro Santana Lopes. Por amor a Portugal") é um convite ao desastre. A não ser que a ideia seja, precisamente, a negação de toda a incompetência, confusão e desorientação, tentar convencer o eleitorado de que vai tudo bem (mas haverá quem acredite ainda nisso?). O que, como política, não é exactamente o mais apropriado nesta altura do campeonato, em que as sondagens não auguram nada de bom. Ah, pois, já me esquecia, eles também acham que as sondagens não são de confiança...

Os outdoors do PS têm um problema: o sorriso confiante de José Sócrates transforma-se no ricto de quem está a ser encandeado pelo sol sem óculos escuros. A frase "Voltar a acreditar" é boa, mas levanta ambiguidades: "voltar a acreditar" no PS, acto de contrição pública depois do período negro com Ferro Rodrigues? "Voltar a acreditar em Portugal", reza outro outdoor, partindo do princípio que neste momento não acreditamos em Portugal. Mas é este PS quem vai conseguir tal milagre, incutindo confiança num eleitorado por natureza desconfiado? "Agora Portugal vai ter um rumo": é uma frase que, ao contrário do indefinido "contra ventos e marés" do PSD, inspira confiança e projecta certezas de que alguém sabe para onde conduzir o barco. Mas os outdoors tópicos — "inglês para todos", "plano tecnológico", "cartão único" — são um disparate liberal. Ninguém ganha eleições a prometer aulas de inglês nem desenvolvimento tecnológico.

"Mais votos na CDU para mudar a sério", prometem os outdoors da CDU, encimados por Jerónimo de Sousa. A frase é infeliz: para mudar Portugal a sério, ou para mudar a CDU a sério, sobretudo face às muito noticiadas crises internas comunistas entre ortodoxos e renovadores? A frase significa uma vontade de mudar Portugal, uma vontade de mudar o Partido ou apenas uma frase sonora de candidatos que sabem não ter hipóteses de vencer as eleições? O azul, contudo, é uma boa escolha, nobre e marítimo.

O Bloco de Esquerda coloca a imagem do líder com a frase "Esquerda de confiança". À imagem do outdoor que já estava exposto de Portas e Santana Lopes com a legenda "Eles divertiram-se...", que marca uma posição e funciona bem enquanto marketing de denúncia, o Bloco sabe usar o outdoor para vender uma atitude e não uma mensagem; não promete nada, deixa que os acontecimentos falem por si, apresenta-se como uma alternativa sóbria e pragmática, ao mesmo tempo que recupera o vermelho que projecta os valores clássicos de esquerda. É um outdoor adequado, no género clássico funcional, mas falta um rasgo qualquer.

Mas a mais inteligente e conseguida das campanhas de outdoors que vi é mesmo a do PP. No outdoor "Voto útil", coabitam uma linguagem gráfica simples e imediatamente compreensível (votar no PP é votar útil) e uma imagem de confiança e segurança (a foto de um Paulo Portas sorridente). Não é surpresa, já todos percebemos que Paulo Portas é um mestre na utilização dos media de massas a seu favor, mas a simplicidade e eficácia do outdoor principal, sem ambiguidades nem falhas, é um exemplo de como fazer passar uma mensagem sem precisar de dizer absolutamente nada. Melhores são os outdoors mais pequenos, com frases como "A competência é útil a Portugal" ou "A convicção é útil a Portugal"; são absolutos que ninguém ousaria contestar e que, ainda por cima, numa primeira leitura nem sequer são afiliadas ao PP, visto que o logótipo do partido está em segundo plano. E assim se sabe fazer marketing político...

28 de janeiro de 2005

PEQUENOS IRRITANTES QUOTIDIANOS #28

Pimenteiros design que parecem não ter buraco, com o resultado desagradável de, à procura do dito cujo, entornar uma grande dose de pimenta preta no tagliatelle vegetariano, que ficou bastante picante e me perseguiu o paladar durante a tarde toda. (E, já agora, a minha estupidez ao não ver os buracos que, afinal, lá estavam escondidos.)

27 de janeiro de 2005

INTERVALO

Desde que o turbilhão começou, vai fazer domingo duas semanas, que acho que esta deve ser a primeira noite sossegada que passo em casa, a ouvir música e a sentir-me minimamente útil enquanto arrumo mais uns discos e organizo algumas coisas no computador, sem ter a sensação de andar a fugir de mim mesmo ou de qualquer outra coisa, sem nenhum complexo de culpa por saber que pouco posso fazer.

Para os nostálgicos do tecno-pop dos anos 80, "Nightbird" dos Erasure (Mute/EMI, 2005) é um belo disco de pop orelhuda melancólica explorando as sonoridades vintage dos sintetizadores pioneiros. Para quem gosta de guitarras à solta, "Worlds Apart" dos ...And You Will Know Us By The Trail Of Dead (Interscope/Universal, 2005), é um óptimo álbum de caos meticulosamente organizado, onde a melodia do emo e de recentes variações popificadas do punk encontram as ambições megalómanas do rock progressivo no meio de um maelstrom sónico perfeitamente delineado. E para toda a gente com ouvidos, há uma pérola chamada "Ulisses" (Emarcy Classics/Universal, 2005), pela assombrosa fadista-que-nunca-o-foi-e-agora-ainda-menos Cristina Branco, a descobrir com urgência. Pormenor importante: Cristina Branco não foi contratada por uma companhia portuguesa. Isto deve querer dizer qualquer coisa.

(Recado para o Rodrigo C.: paciência; lá chegaremos, mas gosto da canção dos Starlux, "Low Radiation", mesmo que o resto do EP não seja brilhante.)

26 de janeiro de 2005

PUBLICIDADE DESAVERGONHADA v2.0

Era só para dizer que, a partir de agora, o Irmão Escocês, João Macdonald, essa "figura ilustre do jornalismo tauromáquico" para fazer jus às suas sábias palavras e homem honrado a quem tenho a grata alegria de poder chamar amigo, se juntou à lista de intervenientes no sempre incontornável Barnabé.

Para além do João, também o mui estimado Nuno Sousa, alma gémea em algumas devoções sonoras, amigo virtual e apreciador de sumo de laranja, passou a barnabita full-time. O que já são, para quem nunca lá foi (ao Barnabé), duas óptimas razões para passar a ir e, para quem já conhece, duas ainda mais óptimas razões para continuar a ir.

POP CULTURA

Vi hoje, estacionado perto do meu carro, um automóvel de cuja existência nunca suspeitei: uma carrinha (ou station wagon, ou break, ou o que lhe quiserem chamar) da MG que responde pela identidade ZT-T. Será que Trevor Horn sabe?

25 de janeiro de 2005

OSCARES? QUAIS OSCARES?

Vamos lá a ver se entendemos uma coisa: qualquer cerimónia de entrega de prémios que faça as asneiras seguintes não pode ser levada a sério:

1. Mesmo nomeando Jamie Foxx para melhor actor por "Ray", de Taylor Hackford (estreia 10 de Fevereiro), nomeá-lo para melhor actor secundário por "Colateral", de Michael Mann. Quem viu o filme sabe que aquilo não é um papel secundário em lado nenhum do mundo.

2. Nomear Natalie Portman e Clive Owen para actriz e actor secundários em "Perto Demais", de Mike Nichols — filme onde não há papéis secundários, apenas quatro actores em igualdade de circunstâncias (no limite, todos eles seriam secundários, mas isso é falsear a verdade).

3. Nomear Thomas Haden Church e Virginia Madsen para as categorias secundárias em "Sideways", de Alexander Payne (estreia 3 de Março), e não fazer sequer menção a Paul Giamatti.

4. Nomear Kate Winslet para melhor actriz em "O Despertar da Mente", de Michel Gondry, e esquecer Jim Carrey e até Gondry.

5. Nomear "Antes do Anoitecer", de Richard Linklater, para melhor argumento adaptado — adaptado de quê?... E, já agora, porquê sequer nomeá-lo?

DEDICATÓRIA

For David D. — you'll understand why.

honey
it's been a long time coming
and I can't stop now
such a long time running
and I can't stop now
do you hear my heart beating?
can you hear the sound?
'cause I can't help thinking
and I don't look down

and then I looked up at the sun and I could see
oh the way that gravity turns for you and me
and then I looked up at the sky and saw the sun
and the way that gravity pulls on everyone
on everyone

baby it's been a long time waiting
such a long long time
and I can't stop smiling
no I can't stop now
do you hear my heart beating?
oh can you hear that sound?
'cause I can't help crying
and I won't look down

and then I looked up at the sun and I could see
oh the way that gravity turns on you and me
and then I looked up at the sun and saw the sky
and the way that gravity pulls on you and I
on you and I.


- Chris Martin para Embrace, "Gravity", in "Out of Nothing" (Independiente/Sony BMG, 2004)

A QUINTA DAS CELEBRIDADES

now there's a lifestyle
with painted lips
now there's a lifestyle
everybody wants it
but it don't exist
and I said
shame
in the dancehalls
and the cinema
shame
on the TV
and the media
shame
we loved you

now there's a lifestyle
with fashion chic
now there's a lifestyle
everybody in it wants to be elite
and I said
"you with yer brand new shoes and
you with yer greasy hair and
you with yer mother's pride and poetry
don’t you want to feel the shame?"
in the dancehalls
can’t you feel the shame?
and the TV
can’t you feel the shame?
we loved you

shame
in the dancehalls
and the cinema
shame
on the tv
and the media
shame
we loved you
at the Lido
and the opera
shame
at the races
and the theatre
shame
we loved you

and they said all we need is love
all we need is love
with the Beatles and the Rolling Stones
day after day
day after day.


- Eurythmics, "Shame", in "Savage" (RCA, 1987)

23 de janeiro de 2005

POLAROID: HCL

As horas das visitas dos hospitais aos dias de semana parecem ser sempre populadas pelo mesmo tipo de pessoas: mulheres de meia-idade, sozinhas ou acompanhadas por outras como elas, de cabelo grisalho ou branco, óculos claros ou tintados, sacos de plástico na mão e mala a tiracolo, prontas a conversar com o primeiro que apareça sobre o atraso da visita, as doenças da vizinha, o motivo porque ali está, o motivo porque ali estamos. Arrastam consigo um cheiro bafiento de vidas tristes e rotineiras, de futuro que nunca aconteceu, uma amargura surda de quem nunca concretizou aquilo que sonhou em nova e, resignada à mediocridade (sub-)urbana em que se acomodou, se delicia com os escândalos e coscuvilhices das revistas de televisão e sociedade e não consegue imaginar a existência de coisas mais importantes.

Mas é verdade que o ambiente dos hospitais, por mais asseado, asséptico, neutro, iluminado que possa ser, predispõe ao tipo de lamentos resignados e cinzentos em que os portugueses são pródigos. O "cá estamos", o "é assim", o "é só chatices" e outro tipo de interjeições que não dizem rigorosamente nada mas são entendidas pelos conversantes como se fossem verdades universai, como se contivessem em si um qualquer segredo que só eles partilham. Uma espécie de vírus da resignação negativista, que proclama como única certeza a morte anunciada e o vale de lágrimas em que a vida se gasta até lá, e a futilidade de procurar lutar contra tão negro e fatalista destino.

Portugal no seu melhor, em suma: velho, gasto, claustrofóbico, sufocante, cinzento, resignado, incapaz de se erguer do lamaçal em que voluntariamente se deixa prender.

20 de janeiro de 2005

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #54

Pitosga.

(por causa dos outdoors da Swatch do hipopótamo pitosga a chamar pelos pais; que me lembraram dos velhos cartoons da UPA do Mr. Magoo, que em português era conhecido pelo Sr. Pitosga)

18 de janeiro de 2005

TURBILHÃO

Entre um regresso ao trabalho após duas semanas de repouso e desagradável hospitalização surpresa da minha mãe (está tudo bem, obrigado por perguntarem), os últimos dias foram um remoínho de emoções complicadas de descrever. Vir para aqui manifestar o meu desagrado com a campanha vitimizatória de Pedro Santana Lopes (será que ainda alguém acredita quando ele faz aquela cara de beicinho, depois de todos os tiros no pé que andou a dar e, pelo que a imprensa vai dizendo, continua a dar?), por muito importante que seja em termos de cidadania, não tem absolutamente nenhuma importância ao pé do que realmente importa, que é ver a minha mãe outra vez em casa a resmungar connosco, em vez de a ver numa cama de hospital a resmungar connosco.

Se este blog andar um pouco às aranhas nos próximos tempos, não se surpreendam. Obrigado pela compreensão.

16 de janeiro de 2005

HCL

Porque é que os hospitais não podem ser sítios iluminados e com aspecto de funcionarem bem, com salas de espera agradáveis e acolhedoras, como nos filmes americanos (excepto o "Serviço de Urgência", entenda-se), em vez de serem prédios vetustos, labirintos kafkianos com iluminação escura e fria, paredes de tinta desmaiada descascada, salas de espera improvisadas num qualquer cantinho de passagem, portas trancadas com folhas de papel escritas a computador, obras de Santa Engrácia por tudo quanto é sítio?

15 de janeiro de 2005

POLÍTICA

"A política não interessa a ninguém", diz a minha mãe regularmente. Nunca percebi se ela o diz por absoluta crença na afirmação ou como justificaçao para o desinteresse tão tipicamente lusitano que ela tem pela política — na certeza de que ela não vai perder tempo a pensar no assunto, excepto se por alguma razão a afectar.

Mas, esta noite, vendo os telejornais a dissertar sobre a entrevista de Pedro Santana Lopes ao Jornal de Notícias, sobre o protesto de Miguel Relvas quanto às sondagens, sobre a acção de campanha de Pires de Lima colando um outdoor do PP, sobre a presença de José Sócrates no Forum Novas Fronteiras, sobre Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa e Nuno Morais Sarmento atacando o PS, por um lado percebo-a muito bem. Esta política, digo eu da minha ignorância, não me parece política no sentido de preocupação com o bem público, mas sim um jogo de cadeiras musicais onde cada um tenta ganhar posição e espaço à custa do outro.

E, por outro lado, não posso estar mais em desacordo com ela. Porque, no que depender de mim, estes políticos, todos, sem excepção, não merecem estar onde estão, e cabe a cada um de nós mostrar esse desagrado e contribuir para que as coisas mudem. Enquanto continuarmos a achar que "a política não interessa a ninguém" e que cabe aos outros preocupar-se com isso, as coisas nunca mudarão nem melhorarão. Patti Smith (entre muitos outros) dizia, em tempos, que "people have the power". Deixar o poder nas mãos do povo não é necessariamente uma boa ideia (não é verdade, João?), mas deixá-lo nas mãos desta "elite" não é uma alternativa reconfortante.

14 de janeiro de 2005

SOCORRO! ESTOU-ME A VER GREGO

Tenho que agradecer ao meu amigo e vizinho António R. pelo sublime momento kitsch que me proporcionou ontem à noite, ao sacar o seu DVD com os melhores momentos de Demis Roussos e mostrar a figura corpulenta e barbuda do cantor grego, qual grunho novo-rico que se esqueceu de tomar banho, fazendo playback de "Goodbye My Love Goodbye" acompanhado por lacrimejantes movimentos de braços numa estação de comboio de Bruxelas, esforçando-se para não se desmanchar a rir, enquanto um ferroviário local fuma com ar de quem está no filme errado. Momento de rara beleza só ultrapassável por aquele em que ele faz playback de "Schönes Mädchen aus Arkadia" à beirinha do Parténon enquanto brinca com o horroroso logótipo do programa alemão para o qual o filmezinho foi gravado, com um ar de frete insuportável, incapaz de sequer aproximar os movimentos de lábios do que se está a ouvir; ou pelo ramo de oliveira que de repente aparece no enquadramento de Vangelis e Roussos encostados a estátuas gregas no teledisco de "Rain and Tears" dos Aphrodite's Child.

12 de janeiro de 2005

POLAROID: METRO

Sempre achei que as estações da linha do Oriente, dita "linha vermelha", eram estranhas — quase todas de tamanho monumental (cf. Olaias) e desproporcionadas à pouca utilização que sempre lhes vi, sem dúvida relacionada com a sua vocação de ramal quase suburbano e desconexo do grosso da rede (com a Alameda como única ligação, pelo menos até à concretização da extensão que a fará cruzar a "linha amarela" no Saldanha e a "linha azul" em S. Sebastião). A música das estações vai da muzak de flauta de pan a "Music" de Madonna.

Hoje, faço o percurso em "hora de ponta" matinal, acompanhando a "daily commute" de muita gente. Entre Oriente e Alameda, quase ninguém sai; a composição está já cheia quando parte do Oriente, vai apanhando alguns (mas não muitos) passageiros ao longo da linha, sobretudo em Olivais e Chelas (em Cabo Ruivo, espécie de desterro no meio de parques industriais, ninguém entra). Apesar de cheia, a carruagem vai silenciosa; toda a gente está a ler o novo jornal gratuito que começou agora a ser distribuido nas estações, e para além do ruído do comboio a percorrer os carris apenas se ouve a voz pré-gravada que anuncia regularmente a próxima paragem e o volume demasiado alto dos auscultadores de um jovem sentado no banco do lado.

À saída na Alameda, o fluir da gente engarrafa temporariamente na escada rolante que dá acesso ao corredor de ligação com o cais da "linha verde" que se dirige para o Cais do Sodré ou para Telheiras. Por entre o mar de gente agasalhada em camisolas e cachecóis multicores distingue-se um militar de casaco de cabedal verde, boina castanha e óculos escuros que transporta um saco ao ombro e duas malas leves nas mãos, as cores desmaiadas da farda realçadas pelas cores primárias que o rodeiam.

Contrasta com o adolescente que entra na Cidade Universitária com destino ao Marquês de Pombal, de cabelo negro com gel e madeixas alouradas no alto do cabelo, pêra minimal cuidadosamente recortada, barba feita para parecer desleixada, um ninho de borbulhas vermelhas na testa, vestindo uma camisola de futebol com as cores e o logótipo do Barcelona por cima de uma sweat-shirt verde-tropa largueirona e calças de ganga de cintura larga e pernas boca de sino, em azul-escuro forte e novo com costuras brancas visíveis, com ténis e mochila de marca. A incongruência da indumentária apenas se deve ao contraste com os casacos quentes, sobretudos de lã e agasalhos forrados que o rodeiam; ele não parece ter frio, mas a moda não se compadece com os seis graus centígrados que os termómetros espalhados por Lisboa anunciam.

Alguém que entra em Entre Campos traz consigo um cheiro intenso a tabaco.

MAIS UMA PEQUENA QUESTÃO RETÓRICA

Porque carga d'água é que é precisamente nos dias em que tenho de me levantar mais cedo que me dá uma espertina filha da mãe?

11 de janeiro de 2005

O FIM JUSTIFICA O MEIO

Há coisas que eu não percebo necessariamente. Percebo a comodidade de um centro comercial, reunindo um sem-número de lojas sob um mesmo tecto. Não percebo porque é que isso torna um centro comercial no equivalente contemporâneo da passeata digestiva de domingo para muita gente.

Hoje, por exemplo, tentei perceber o que é um "outlet". Aproveitando uns diazinhos de férias e uma tarde mais solta, fui ao Freeport de Alcochete (45 minutos de viagem para lá, 45 minutos de viagem para cá, da 24 de Julho a Alcochete e volta) tentar perceber o que é que atrai ali milhares de pessoas ao fim-de-semana. Estava um dia bonito, e num dia bonito admito que um espaço daqueles, ao ar livre, com arruamentos perfeitinhos a cheirar a novinho em folha, de cores alegres e esplanadas e bancos a cada esquina, possa ser mais agradável que um centro comercial, sobretudo se — como hoje — não estiver a abarrotar de gente.

Mas não será na realidade a obsessão portuguesa pela "pechincha" que atrairá ali as pessoas? Aquela sensação de estar a pagar abaixo do preço de custo, de estar a pagar mais barato do que elas custam, aquela mania de andar com roupas de marca caras e saber cá dentro que as comprámos por tuta e meia, como se isso fosse prova de uma inteligência superior, de uma esperteza acima da média? Mesmo que essa "tuta e meia" implique gastar exactamente o mesmo que se gastaria se se fizessem as compras em Lisboa, com a diferença de que, por causa do preço mais baixo, apenas se compram mais coisas para fazer vista — e, provavelmente, mais do que aquelas de que realmente precisamos?

Olho para o Freeport e vejo apenas Portugal a chegar-se aos Estados Unidos e ao conceito "Mall of America", em que a superfície comercial deixa de ser um meio para passar a ser o fim. Um símbolo do consumismo desregrado e do endividamento das famílias.

E não, não comprei nada.

10 de janeiro de 2005

PALAVRAS DE QUE GOSTO MUITO EMBORA NÃO TENHAM GRANDE UTILIZAÇÃO PRÁTICA QUOTIDIANA #52

Cacholada.

(com um obrigado ao Alexandre M., que me recordou dos tempos de miúdo em que eu ouvia o meu pai usá-la na praia)

9 de janeiro de 2005

LOGBOOK #21: O ELOGIO DA LOUCURA

Sesimbra: Baía da Armação, domingo 9 de Janeiro, 10h58: 11.7m, 57min, 13º C

Eu devo é ser maluco, penso para com os meus botões às 7h30 da manhã quando o alarme dispara ao som da TSF e ouço o jornalista de serviço falar da "forte ondulação" que levou ao fecho de barras acima do Cabo Carvoeiro, quando me meto debaixo do chuveiro e saio dele sem conseguir realmente aquecer, quando tomo o pequeno-almoço e me meto no carro com 6º C de temperatura ambiente para ir visitar os peixinhos ao largo de Sesimbra após três meses de ausência causada por uma combinação de trabalho, inércia e cansaço.

Eu devo é ser maluco, penso quando, animado pelo sol radioso e pelo azul forte do céu de inverno, atravesso a ponte 25 de Abril e dou com um espessíssimo banco de nevoeiro que me acompanha desde que passo a praça da portagem até Cotovia, mesmo à beirinha de Sesimbra. Quando chego, está tudo normal, o mar está bom para sair, mesmo que um pouco agitado, não há muita gente (como é normal aos domingos).

Eu devo é ser maluco, penso quando a curta viagem de barco até à Baía da Armação é feita com vento cortante e alguma onda pequena mas insistente que nos atira com água para cima — a mim e aos outros seis malucos que se lembraram de vir mergulhar neste domingo frio de Janeiro.

Mas não sou nada maluco — abaixo da superfície a agitação do mar desaparece, e a proximidade da costa rochosa enche o local de vida, cardumes enormes que passeiam despreocupadamente. Eu e o meu parceiro José — um rapaz atlético que parece ter pouco mais de 20 anos, que tem chapas militares ao pescoço e que está perfeitamente à vontade dentro de água — andamos por ali, a lanterna pesquisando cada recanto rochoso, cada cavidade onde se possam esconder animais, e somos recompensados por um enorme polvo que se esconde pachorrentamente e que, incomodado pela luz da minha lanterna, se retira para o mais dentro da rocha que pode, por vários peixes-pedra em posição de descanso, uma estrela do mar escura que se arrasta como quem não quer a coisa, uma serpentezinha de focinho cavalar em tons de verde e alga. Fotografamos: ele com uma digital devidamente protegida por uma caixa estanque, eu com uma descartável analógica estanque até 15 metros que trouxe por brincadeira para ver se vale a pena começar a pensar a sério na fotografia subaquática (calha bem, nunca desço abaixo dos 12 neste mergulho soft de reabituação).

Eu devo mesmo ser maluco, penso quando começo a sentir frio dos 13º C que o computador marca mas que não devem de todo ser, face ao frio que começo a rapar já perto do final da hora de mergulho, é capaz de não ser má ideia começar a pensar num semi-seco em vez de um húmido de duas peças (mesmo que de 7mm).

Não sou nada maluco, penso eu quando chego a casa e me retempero com uma sopinha quente enquanto penso na excelente manhã que passei ao largo de Sesimbra e na vontade que já tenho de a repetir. Três meses sem ir ao mar? Eu devo é ser maluco.

8 de janeiro de 2005

UMA PROFISSÃO DE FUTURO

Não, não é a marinha, nem a força aérea, nem nada que se pareça.

Canalizador, meus meninos, canalizador é o que está a dar. Com o preço que eles cobram por 15 minutos de trabalho para desentupir uma retrete emanando um eflúvio infernal (coisa que eu nunca seria capaz de fazer sem a contribuição da maquineta hidráulica manual que o senhor trazia, mas que ele fez enquanto o diabo esfrega um olho), e assumindo que eles devem receber chamadas destas a toda a hora, não estou realmente a ver muitos contras.

7 de janeiro de 2005

VALHA-NOS SÃO ESTEVÃO MÉRITO

Ele e ele decidiram-se a voltar.

Em honra da ocasião vos recomendo fervorosamente dois filmes assombrosos que vi esta semana: "Saraband" de Ingmar Bergman (estreia a 13 de Janeiro, no Alvaláxia, em Lisboa), com Liv Ullmann e Erland Josephson; "Clean" de Olivier Assayas (estreia a 20 de Janeiro), com Maggie Cheung e Nick Nolte (e Béatrice Dalle e Jeanne Balibar).

POLAROID: BARBEIRO

O barbeiro fica inquieto quando entro no salão. Nenhum dos seus colaboradores está, sairam para tomar café, ele está a fazer arrumações e limpezas e procura-os por um instante antes de pôr as limpezas de lado algum tempo para me cortar o cabelo. A um canto do salão, a esposa, cabelo branco e óculos, retrato-robot de uma avozinha portuguesa de subúrbio clássico, entoa num tom paternalista e condescendente uma ladainha destinada a embalar o neto ainda bebé, que não deixa por isso de soltar exclamações pontuais e ameaçar choro. Por um momento, penso que ele está a protestar por ter de ouvir repetido durante tanto tempo "quem é o queridinho da avó", naquela linguagem palradora e perfeitamente irritante que os adultos fazem ideia (errada) que as crianças percebem. Por um instante pensei que era isso que o bebé estava a querer dizer — "cala-te, já estou farto de te ouvir com essa patetice, achas que eu não te topo?". O barbeiro também já parece farto de ouvir a ladainha, às tantas pergunta à mulher num tom ríspido porque não vê se o menino está sujo. Mas a senhora insiste.

E, quando a filha regressa, descobre-se que o bebé estava realmente sujo.

5 de janeiro de 2005

CÓDIGO DA ESTRADA

Muita gente fala — e com razão — da falta de civismo dos condutores portugueses, mas ninguém fala da falta de civismo dos peões, que atravessam "à Lagardère" pelo meio de faixas de rodagem rápidas, indiferentes ao volume de tráfego, indiferentes às passadeiras ou aos semáforos. Na avenida Infante Santo, na rua Conde Redondo, na avenida Álvares Cabral, é vê-los, até à noite, a atravessarem a avenida ou a pararem em cima do traço divisor como se fosse um passeio. Um pouco por toda a Lisboa, é vê-los a atravessarem intersecções turbulentas como se atravessassem um jardim público. Às vezes, acho que, entre a inconsciência dos condutores que não respeitam a velocidade máxima urbana, o traço contínuo ou as passadeiras, e a inconsciência dos transeuntes que atravessam a rua como se todos os carros tivessem de parar para os deixar passar (recordo-me das vacas sagradas hindus), é um milagre que não haja mais atropelamentos em Lisboa.

PÔNCIO, PILATES

Algo me diz que Pedro Santana Lopes ainda não terminou o seu annus horribilis.

4 de janeiro de 2005

BEM VINDO SR. PRESIDENTE DO CONSENSO CAPICUA

Cada vez tenho mais respeito por Aníbal Cavaco Silva.

VISÃO PERIFÉRICA

Existem coisas que nunca aprendemos realmente. Erros que insistimos em fazer. Armadilhas bem à nossa frente que persistimos em ignorar, como se fossem ilusões que criámos para nós próprios. Mas a única ilusão está em teimarmos que elas não estão lá, e em não percebermos que só nós é que não as vemos.

Chama-se ao processo crescer.

2 de janeiro de 2005

NOT EVERYONE CAN CARRY THE WEIGHT OF THE WORLD

Hoje, uma semana depois, todos os noticiários ocupam 30 minutos a esmiuçar os pormenores da tragédia da Ásia; a repetir até à exaustão os mesmos dados que já todos ouvimos esmiuçados nos últimos sete dias; a convocar os sobreviventes portugueses da tragédia para contarem as suas experiências (como se elas pudessem fornecer-nos um qualquer insight precioso sobre os desígnios insondáveis da natureza). Perturba-me esta exploração, quase pornográfica, da tragédia; perturbam-me os lugares comuns que ouço repetidos vezes sem conta ao dia, perturbam-me as pequenas histórias que todos os dias surgem do milagre da sobrevivência, perturbam-me as imagens de valas comuns e cadáveres que me entram pela sala dentro sem pedir licença.

Não estou a protestar contra a necessidade de informar, porque é urgente ajudar, é urgente tomarmos consciência que este é um só mundo e todos somos afectados por uma tragédia destas, é importante que não nos esqueçamos que as consequências da tragédia afectarão os países durante meses, anos. Mas onde se desenha a fronteira da informação? Quando é que a dignidade cede o lugar à exploração dos sentimentos de culpa ocidentais?

Quando vejo sobreviventes ingleses a chorarem convulsivamente face às câmaras de televisão, sinto-me um intruso num momento catártico que não é, não pode ser público, que tem de ser privado. Quando vejo cadáveres embrulhados em plástico a serem despejados numa vala comum, sinto-me um voyeur perverso, porque aquele é um momento demasiado impressionante para ser repetido ad infinitum num écrã de televisão, que não é para ser visto levianamente à mesa do jantar por entre discussões de futebol e política. E não quero com isto invocar preceitos morais ou éticos de qualquer espécie — apenas que há um respeito que estas incontáveis vítimas merecem que não se compadece com os horários rígidos dos telejornais, com a medição das audiências.

O sofrimento é, sempre foi, algo de privado, de pessoal. Não acredito na sua exibição pública. E há momentos em que o que me parece ver, na procissão de imagens televisivas, é uma mera exposição da dor. Para que os outros se possam considerar sortudos. E essa é a pior das razões para querermos ajudar.