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22 de agosto de 2005

OBRIGADO, JOÃO MACDONALD

"O Homem sem Qualidades" é o romance de uma vida inteira - as suas 1130 páginas (na tradução inglesa) correspondem a mais de uma década de trabalho deixado incompleto pela morte do seu autor, o escritor austríaco Robert Musil, em 1942. A primeira das três partes que compõem "O Homem sem Qualidades" vira edição em 1930 e a segunda em 1933, a instâncias do editor, cedência de que Musil mais tarde se arrependeria pela impossibilidade de voltar atrás e retrabalhar o que já fora publicado; a terceira parte viu edição póstuma em 1943 pelas mãos da viúva do autor, o que talvez explique a sensação de incompletude que a leitura deixa, como se Musil não tivesse verdadeiramente terminado a sua narração (alguns dos fios narrativos iniciados ficam por resolver). Incompletude que, contudo, em nenhum momento trava a convicção de estarmos aqui perante um objecto esmagador e inclassificável pelo assombroso microcosmos saído da criatividade do seu autor — muito embora não estejamos a falar, apenas, de ficção.

Porque "O Homem sem Qualidades" é a crónica do fim de um mundo — mais especificamente, do império austro-húngaro nos anos anteriores à I Guerra Mundial que destruiria de vez a "velha Europa" imperial, de uma aristocracia quase feudal — vista pelos olhos de Ulrich, diletante intelectual apanhado entre a aristocracia e a burguesia, que vagueia pela alta sociedade vienense e a observa com o distanciamento maçado de quem não sabe onde pertence nem o que procura. Sátira, ensaio, crónica, tudo passa pelas mil páginas deste verdadeiro roman-fleuve que passa da vivacidade de uma conversa de salão repleta de double-entendres à secura implacavelmente lógica e teutónica de uma dissertação teórica sobre o intangível, desenhando no processo o retrato perturbante de uma sociedade que parece ter-se tornado complexa demais para quem nela vive, que levanta mais questões do que aquelas que resolve àqueles que a observam atentamente.

De um humor subtilmente subversivo disfarçado de boutade de salão de fumo, de uma inteligência assustadoramente presciente, "O Homem sem Qualidades" acaba por ser um corte transversal da sociedade moderna — e não tenhamos a mínima dúvida da sua intemporalidade, porque a confusão que reina na "Kakania" (a mal disfarçada Áustria que Musil ficcionaliza muito ao de leve) é gémea e espelho da que reina nos nossos dias. O mundo moderno, no fundo, já foi inventado há um século e é isso que Musil nos diz: a história pode não se repetir, mas os seres humanos são arrepiantemente previsíveis.

Como Eça de Queiroz no seu tempo, Musil é um satirista humanista e melancólico, ciente de que tudo muda para que tudo fique igual — e momentos há neste roman-fleuve (e a comparação majestosa ao rio é apropriadíssima) que são perfeitamente aplicáveis aos nossos dias. Não é só isso o que há em "O Homem sem Qualidades" (que deverá voltar a estar disponível brevemente em tradução portuguesa por João Barrento). Porque este livro é, literalmente, um mundo, e nele poderemos encontrar toda a vida humana — para o bem e para o mal.

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