Quando cheguei a casa da consoada, a SIC Notícias estava a dar um programa dedicado a Mafalda Veiga e aos seus concertos de há alguns meses no Coliseu. As canções de Mafalda Veiga são um bálsamo pessoal e intransmissível, têm o condão de me devolver um semblante de normalidade em momentos por alguma razão mais complicados. Muitos amigos meus pasmam incrédulos perante este meu gosto que acham aberrante face às coisas que costumo ouvir; e eu já desisti de lhes tentar explicar.
Acontece, apenas, que as canções de Mafalda Veiga conseguem cristalizar em palavras simples e acessíveis toda as complexidades das emoções que nos atravessam no quotidiano. São canções construídas segundo as melhores regras clássicas do songwriting - uma letra e uma melodia em exacto equilíbrio, em perfeita coabitação criativa. Quando ouço as canções de Mafalda Veiga, revejo-me nelas; reencontro as contradições e os prazeres simples que povoam a minha vida. Se eu soubesse escrever canções, gostaria de as escrever como ela.
Há uma que me toca particularmente. Sei que algumas pessoas a acharão poesia adolescente de pré-universitário - é um erro em que por vezes ela se deixa cair, mas isso apenas engrandece os momentos em que ela se transcende - mas, para mim, é uma das mais perfeitas definições daquelas noites que nos marcam para sempre, por vezes até com pessoas que raramente vemos depois, com amigos que se perdem de vista ou amores que nunca o chegam a ser. Chama-se "Cúmplices" e ela escreveu-a para os fãs que a seguem; mas prefiro pensar que ela a escreveu a pensar nas noites que todos nós vivemos a espaços, que acabam cedo demais mas ressoam para sempre, onde parecemos descobrir o segredo do universo nas coisas mais simples. Está no álbum que ela lançou no início do ano, "Na Alma e na Pele", um dos melhores 30 discos que ouvi em 2003. Com a devida vénia, aqui deixo a letra.
a noite vem às vezes tão perdida
e quase nada parece bater certo
há qualquer coisa em nós inquieta e ferida
e tudo o que era fundo fica perto
nem sempre o chão da alma é seguro
nem sempre o tempo cura qualquer dor
e o sabor a fim do mar que vem do escuro
é tantas vezes o que resta do calor
se eu fosse a tua pele
se tu fosses o meu caminho
se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho
trocamos as palavras mais escondidas
que só a noite arranca sem doer
seremos cúmplices o resto da vida
ou talvez só até amanhecer
fica tão fácil entregar a alma
a quem nos traga um sopro do deserto
o olhar onde a distância nunca acalma
esperando o que vier de peito aberto
se eu fosse a tua pele
se tu fosses o meu caminho
se nenhum de nós se sentisse nunca sozinho
Faz-me bem ouvir esta canção.
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