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2 de outubro de 2004

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA #11

Não tenho idade para me lembrar do "Zip Zip"; tinha um ano de idade quando o mais mítico dos programas da televisão portuguesa foi para o ar, e as memórias que dele tenho são aquelas mediadas pelas imagens de arquivo com que fui crescendo e pelo estatuto que foi crescendo à volta do programa na memória colectiva. Porque as minhas memórias de infância, as minhas imagens de infância repartem-se, em partes iguais, pela tela gigante do cinema e pelo grande écrã a preto e branco da velha Grundig que dominava a sala de estar de casa dos meus pais, colocada a um canto a fazer pendant com a cristaleira de mogno que enquadrava o outro canto e, anos mais tarde, já na década de 80, substituida primeiro por um receptor "marca anzol" a cores e só depois por outra Grundig.

As minhas memórias são as da primeira encarnação da TV Guia — uma revistinha grossa de formato "bolso", tipo Crónica Feminina ou Selecções do Reader's Digest, cujo primeiro ano, algures em 1975? ou 1976?, eu guardei religiosamente durante anos numa gaveta da estante que ainda existe em casa dos meus pais. São as dos Festivais da Canção e da Eurovisão que, antes da conversão ao gravador de cassetes em 1976/77, gravávamos em bobines de fita magnética no "magnetophone" de bobines da BASF que ainda existe em casa dos meus pais. São as da "Visita da Cornélia", do "Écran Mágico" (concurso sobre cinema que Rui Mendes apresentava, às terças à noite, no canal 2), são as dos "Jovens Heróis de Shaolin" ou do "Kung-Fu" nas tardes de sábado do canal 1, numa altura em que ainda existiam apenas dois canais públicos.

As minhas memórias são as de uma televisão que era pobrezinha mas honrada e, contudo, dava muitas vezes lições ao que hoje se faz passar por aí como entretenimento televisivo e não passa de formatação calibrada por consultores para apelar ao que de mais básico há em nós. E não consigo deixar de pensar que, com a morte de José Fialho Gouveia, hoje, é também muito dessa televisão carola mas apaixonada que durante tantos anos foi a RTP que morre; talvez porque, ao contrário de outros, Gouveia tenha ficado teimosamente ligado a uma era clássica de TV portuguesa e não tenha sido reaproveitado nem redescoberto para formatos contemporâneos. Com Fialho Gouveia morreu "the real thing", não os ersatz ou recuperações fora de tempo posteriores.

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