Blog-notas de ideias soltas; post-it público de observações casuais; fragmentos em roda livre, fixados em âmbar. Eu, sem filtro. jorge.mourinha@gmail.com
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30 de setembro de 2004
DIVINA EMMYLOU
Ouça-se o que a divina Emmylou Harris faz de "Orphan Girl", de Gillian Welch, na obra-prima "Wrecking Ball" (Asylum/Elektra, 1995): aquilo que noutras mãos seria azeite puro, a história da órfãzinha desgraçada que lamenta o seu triste fado e sonha com o dia em que Deus a leve para junto de si e da família que nunca conheceu, é elevado pela entrega transcendente da cantora, arrancada do fundo da alma, numa das mais puras e extraordinárias manifestações de fé e esperança que já ouvi, suficiente para arrancar uma emoção comovida enquanto, lá atrás, Daniel Lanois encena um carrocel aspiracional de cordas metálicas pontuado por percussões esparsas e tribais (Malcolm Burn, Larry Mullen Jr., Tony Hall).
Composto por canções de Lanois, Neil Young, Steve Earle, Gillian Welch, Bob Dylan, Jimi Hendrix (uma estratosférica reinvenção de "May This Be Love" para tarola seca e tempestade de guitarras eléctricas em descarga brutal), Rodney Crowell ou Julie Miller, "Wrecking Ball" é um álbum assombroso e assombrado, uma série de litanias texturadas que expressam uma religiosidade a um tempo paredes meias com o fundamentalismo e com uma qualquer espiritualidade pagã, entre os pântanos de New Orleans e as florestas do Vermont. Nele Emmylou redescobre uma voz pessoal que reinventa a linguagem da country music como mera matriz composicional, usando as estilizações atmosféricas trazidas pelas texturas das guitarras trabalhadas do produtor Daniel Lanois para transcender as regras e fronteiras de géneros e criar algo que, muito decididamente, não é exactamente rock e também já há muito que deixou de ser country, mas é certamente alternativo a ambos. Que Emmylou tenha sido capaz de se reinventar de modo tão radical numa altura em que muitos outros já arrumaram as botas a um canto e se preferem refastelar nos confortos burgueses é apenas mais uma razão para a venerarmos.
As sequelas, "Red Dirt Girl" (Nonesuch, 2000) e "Stumble Into Grace" (Nonesuch, 2003), sem Lanois mas com Malcolm Burn na produção, são magníficas. Mas "Wrecking Ball" tem lugar cativo como um dos discos da minha vida. E é daqueles álbuns que só devemos partilhar com aqueles que nos são mais queridos e mais próximos. Porque Música destas não se explica; sente-se, apenas.
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