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12 de setembro de 2004

A CHUVA EM ESPANHA

Há bocado, estava a dar na televisão a versão Filipe La Féria da imortal "My Fair Lady" de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe, inspirada por George Bernard Shaw. E, no breve trailer que vi, percebi precisamente porque é que nunca me quis chegar perto de tal objecto; é que me é absolutamente impossível ouvir aquelas canções noutra língua que não o inglês impecável da "received pronunciation", tão sublimemente corporizado na performance truculenta de Rex Harrison, imortal no professor Higgins, primeiro na produção original da Broadway e depois no magnificente filme de George Cukor (que muitos, certamente monstros sem coração nem sensibilidade, teimam em menorizar inexplicavelmente). E, depois, toda a produção visual devia muito (passe o eufemismo minimizador) aos gloriosos cenografia e guarda-roupa de Cecil Beaton. E, por muito que se fechem os olhos e se imagine estar na Broadway sentado no Politeama, Anabela não é Julie Andrews (que criou originalmente o papel em palco) nem Audrey Hepburn (que o retomou no filme; e muito menos Marni Nixon, que dobrou a voz de Hepburn nas canções da versão cinematográfica), e Carlos Quintas muito decididamente não é Rex Harrison.

Nem podem, claro; mas tudo no pouco que vi invocou de tal maneira o filme de Cukor (o mais perto que nos chegámos da criação original da Broadway) que senti as minhas memórias de infância, se quiserem, violadas. Vi pela primeira vez "My Fair Lady" ainda adolescente no esplendoroso 70mm do defunto Monumental, numa das reprises de Verão em que a sala era fértil, como foi pensado para ser visto. Vi-o mais duas ou três vezes em sala — a última delas em meados dos anos 80, numa reprise de Verão no Castil, simpático e espaçoso cinema-estúdio burguês de arquitectura muito anos 70, onde fica hoje a sede do BBVA — e desde então fixou-se, provavelmente, como o filme da minha vida, chegando até a ser objecto de estudo na faculdade a propósito da língua e da linguística inglesa. "My Fair Lady", para mim, só existe falada e cantada em inglês — e quem conhece o original perceberá porque traduzi-lo para outra língua, sobretudo desta forma, é um contra-senso.

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